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Mestres importados
Nosso patrimônio cultural é europeu, e sobretudo francês
CECÍLIA PRADA
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Este 2005, que é "o ano do Brasil na França" e vem sendo marcado por um sem-número de eventos oficiais que se propõem aprofundar o relacionamento entre as duas culturas, nos dá ensejo para refletir também sobre um certo nacionalismo bastante simplório que anda nos rondando - em nome de uma "cultura popular", ele tem atacado o que seriam "vestígios de cultura elitista" e proposto medidas "saneadoras" que, felizmente, não pegaram. Registram-se algumas raras manifestações, mas sempre dignas de nota, de repúdio à vinda de professores e cientistas estrangeiros para ensinar em nossas universidades. Tentativas também já foram feitas de supressão da exigência de conhecimento de línguas mesmo em atividades que não podem dele prescindir - como a diplomacia.
Quanto à cultura francesa - cuja influência tem sido, há mais de 200 anos, predominante no campo da filosofia e das ciências humanas, em nível universitário -, é de se lamentar que, no ensino médio, haja atualmente um absoluto descaso, uma ignorância quase total dela, quer pela ausência do idioma de nossos currículos escolares, quer pela falta de coordenação de políticas culturais eficientes entre o Brasil e os países de línguas latinas, pois estamos igualmente afastados do convívio com espanhóis e italianos. Cedendo aos modismos e interesses comerciais que nos impõem hoje não certamente o que há de melhor na cultura norte-americana (e, de fato, há muito nela), mas a absoluta mediocridade de sua cultura de massas, vamos esquecendo, ou mesmo renegando, os aspectos mais fundamentais e legítimos de nossa própria - que é, sim, de origem européia e latina. E empenhados em defender, com razão, os aportes das culturas minoritárias que integram a nossa nacionalidade - africanas ou indígenas - caímos atualmente no extremo oposto. Esquecemos que a maior parte de nosso patrimônio cultural é européia, que somos europeus transplantados e miscigenados - essa a nossa diversidade, a nossa riqueza.
Uma história de idéias
Os primeiros elementos de educação formal européia que chegaram ao Brasil - e que permanecem até hoje como substrato de nossa cultura - foram trazidos pelos jesuítas. Pelo seu empenho em transplantar e infundir, meio que à força, os moldes do ensino tradicional europeu de início nos curumins, que para fins educativos eram inclusive mantidos em isolamento e afastados das famílias aos 5 anos de idade, e depois nos numerosos colégios e seminários da Companhia de Jesus, que desde fins do século 16 vieram se estabelecendo nos principais centros urbanos do país. O latim era a base do ensino jesuítico e sua metodologia, a Ratio Studiorum - que abrangia do nível fundamental ao superior, e que se compunha de três cursos sucessivos, Letras, Filosofia ou Artes e Teologia. Às disciplinas específicas juntavam-se noções de matemática, física, biologia, astronomia e cosmografia. Mas tudo rigorosamente embasado na ideologia da Contra-Reforma e na dialética de Aristóteles, definida como o supra-sumo da verdade, a "base da árvore dos saberes" - retomada e ampliada, com São Tomás de Aquino, para fornecer à cristandade, já ameaçada pelas idéias "modernas", argumentos favoráveis à submissão ao autoritarismo unívoco da Igreja Católica.
A partir de 1750, as reformas ilustradas, promovidas em Portugal e na Colônia pelo marquês de Pombal, mudariam radicalmente esse panorama - culminando na expulsão dos jesuítas do Brasil, em 1759, e no desmantelamento (provisório, pois eles retornariam a partir de 1841) de suas instituições de ensino. Era o auge do pensamento iluminista na Europa, e da sua disseminação no resto do mundo ocidental. Assim, podemos dizer que sua influência nos veio em primeiro lugar via Portugal, e imposta pela curiosa figura de Pombal - um aristocrata despótico que, movido pelas "novas idéias", pretendia ser também um intrépido reformador.
Examinando o aporte do pensamento francês à gênese e ao desenvolvimento das idéias filosóficas brasileiras, disse recentemente o escritor e cientista político Sérgio Paulo Rouanet (em um simpósio realizado em Paris) que a influência da França "foi tão predominante que uma história da recepção das idéias filosóficas francesas se confunde, em grande parte, com a própria história da filosofia no Brasil". Essa influência foi iniciada bem antes da Independência, pois "os mestres de pensamento dos conspiradores que fizeram, um ano antes da queda da Bastilha, as primeiras tentativas de romper os laços políticos com Portugal chamavam-se Voltaire, Rousseau, Montesquieu, Mably".
Quando dom João VI transferiu-se para o Rio de Janeiro, em 1808, um sopro cultural vivificante foi dado à Colônia; embora viesse fugida das tropas napoleônicas, a Corte manteve e transmitiu à sociedade brasileira seu modo de vida e os padrões culturais que seguiam o estilo francês. Em 1816 o monarca promoveu a vinda de uma Missão Artística Francesa, com o objetivo de desenvolver atividades artísticas e fundar no país uma Academia de Belas-Artes. Chefiada por Joachin Lebreton, ela contava com pintores como Jean-Baptiste Debret e Nicolas Antoine Taunay, com o escultor Auguste Taunay e com o arquiteto Grandjean de Montigny.
Durante todo o tempo do Império, e nos primórdios da República, o Brasil, muito embora em matéria de economia estivesse mais ligado à Inglaterra, continuou a ser influenciado, na vida cotidiana e nos vários campos culturais, pela França - da moda (mesmo no rigor do verão carioca mulheres e homens vestiam-se segundo figurinos franceses, com trajes pesados, botas, chapéus) à literatura, às artes plásticas, à arquitetura. Nossas capitais guardam ainda vestígios da Belle Époque - os teatros copiados do Théâtre de l’Opéra de Paris, as residências dos barões do café, cujo maior prazer era viver em Paris bebendo champanhe em sapatos de cocottes, os bulevares abertos no Rio de Janeiro e em São Paulo para "metropolizar" urgentemente nossas cidades bisonhas e coloniais.
Nossa literatura, após a Independência e durante todo o século 19, refletiu sempre as tendências européias, principalmente francesas - romantismo, realismo, simbolismo, todos os movimentos tiveram sempre sua contrapartida no Brasil. Um "mimetismo" obrigatório que às vezes chegava ao extremo de entronizar autores que eram pouco ou nada importantes, aos olhos dos europeus. Antonio Candido fala desses exageros, dessa nossa "dependência crônica, um provincianismo cultural que leva a perder o senso das medidas e aplicar a obras sem valor o tipo de reconhecimento e avaliação utilizados na Europa para os livros de qualidade".
A partir de 1870, o positivismo de Auguste Comte passou a ser o pensamento dominante no Brasil. Ele pregava o culto positivo da ciência e transmitia a idéia de uma recuperação moral da humanidade, por meio de uma política científica. Essa mentalidade sobrepunha-se ao "bacharelismo" que até então caracterizara nossa educação e estabelecia fundamentos para o grande sonho republicano em que se empenhou a nova elite pensante - formada em boa parte por matemáticos e engenheiros e tendo ao fundo a Escola Militar. A maior figura que emergiu desse período foi Euclides da Cunha - capaz de criar obra tão poderosa e sui generis como Os Sertões, misto de ensaio, ficção e jornalismo. Nossa bandeira mantém até hoje um dístico de inspiração positivista: "Ordem e Progresso".
Positivista foi também a primeira feminista brasileira, Nísia Floresta Brasileira Augusta (1810-1885). Jornalista e escritora, fundou no Rio de Janeiro um "revolucionário" estabelecimento educacional para meninas, o Colégio Augusto - onde se ensinavam ciências e línguas, e não bordados e catecismo. Em 1849, desgostosa com a perseguição implacável que lhe faziam por suas idéias, deixou definitivamente o país para ir viver na França. Lá, conheceu o próprio Auguste Comte e conviveu com escritores e artistas importantes.
Durante todo o século 20, e até nossos dias, a influência do pensamento francês no Brasil prosseguiu - do espiritualismo cristão dos anos 1930/40 (Bergson, Maritain) ao existencialismo de Sartre do pós-guerra, ao estruturalismo, ao desconstrucionismo de um Derrida, à arqueologia do saber de um Foucault, ao lacanismo, ao marxismo revisto de um Althusser, à interdisciplinaridade de um Edgar Morin.
Um centro de saber
A fundação da Universidade de São Paulo (USP), em 25 de janeiro de 1934, a primeira do Brasil, constituiu um marco de significância ímpar: agrupou as faculdades já existentes (Direito, Medicina, Politécnica, Medicina Veterinária, da capital, e a Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz, de Piracicaba) e, mais importante, criou a primeira Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (FFCL) - um centro de saber. A sua pedra angular seria a contratação, por ordem do governo, de uma equipe de professores europeus já renomados em suas áreas. Os franceses predominavam, principalmente no campo de humanas, razão pela qual o grupo ficou conhecido como a "segunda missão francesa".
A proporção era de 16 professores franceses para 2 ingleses, 8 italianos, 5 alemães e 3 portugueses. Os da área científica vieram em maior número da Itália, indicados pelo matemático brasileiro Teodoro Ramos, que fazia um estágio na Sorbonne, na época. Destacam-se entre eles o matemático Luigi Fantappié, o grande cientista Gleb Wataghin, de origem russa. O poeta Giuseppe Ungaretti foi contratado para a cátedra de Língua e Literatura Italiana. Para a área de humanas, chegaram os franceses Fernand Braudel, Pierre Deffontaines, Robert Garric, Emile Cornaert, Paul Arbousse-Bastide, Etienne Borne, Pierre Hourcade, Jean Maugüé, Michel Berveiller, Jean Gagé, Pierre Monbeig, Claude Lévi-Strauss, François Perroux, Pierre Fromont, Roger Bastide e Alfred Bonzon. De Portugal vieram Fidelino de Figueiredo, Urbano Canuto Soares e Francisco Rebelo Gonçalves.
Lembrando os anos iniciais da USP, diz o professor aposentado José Aderaldo Castello, que de 1967 a 1981 foi diretor do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB): "Quando comecei meus estudos, em 1940, a FFCL contava os primeiros anos áureos, com a presença de seus iniciadores brasileiros e estrangeiros. Quando o Brasil declarou guerra ao Eixo, os professores oriundos de países não-aliados foram obrigados a regressar às origens. Ao iniciar meu curso ainda tive aulas com dois estrangeiros: Urbano Canuto Soares, da Universidade do Porto e professor de latim, e Vittorio de Falco, da Universidade de Nápoles, que ensinava língua e literatura grega. E ouviria também Roger Bastide, em sociologia da educação. O professor De Falco, sempre querido e lembrado dos seus alunos, foi um dos que se viram obrigados a retornar à Europa".
Cumpre lembrar que essa atitude de considerar "perigosos inimigos" os estrangeiros não-aliados chegou a criar dificuldades para muitos dos contratados pela USP. O físico Giuseppe Occhialini, que foi professor e mais tarde companheiro de pesquisas do maior físico latino-americano, o brasileiro César Lattes, foi obrigado a deixar repentinamente seu posto na universidade. De agosto de 1942 a setembro de 1943, ele teve de viver escondido em uma cabana, na região de Itatiaia (RJ), e sobreviveu trabalhando como guia de montanha, até poder regressar à Itália. Depois da guerra, porém, o fluxo normal de professores entre o Brasil e a Europa foi restabelecido.
Instituída pelo esforço de alguns representantes da elite paulistana, que viam nela a possibilidade de um "berçário de idéias" e, sobretudo, um local de formação para futuros dirigentes da nação, a USP - ou antes, o núcleo da FFCL, emprenhado do que havia de mais atual e sofisticado no pensamento europeu - dentro de poucos anos apresentaria uma verdadeira "inversão de expectativas" e tomaria um rumo autônomo, transformando-se num dos baluartes do moderno marxismo. Por ocasião do golpe de 1964, seu ideário já estava constituído e sua congregação foi, segundo diz o filósofo Paulo Eduardo Arantes, em seu livro Um Departamento Francês de Ultramar, a única a não soltar manifesto de apoio aos generais. Os episódios subseqüentes, com a "batalha da Rua Maria Antônia", o incêndio do prédio, que deixou um morto e fez numerosos presos, passaram à história do país, deixando às gerações seguintes um testemunho glorioso de resistência intelectual e moral à barbárie.
No ano passado, ao comemorar seus 70 anos, a veterana instituição reuniu e divulgou os testemunhos diversos dos que, em todas as áreas do saber, passaram por ela, como estudantes, ou como pesquisadores e professores. Desse imenso material escolhemos, para terminar este artigo, alguns dados sobre três intelectuais vindos na primeira leva de professores importados da França, e que muito contribuíram para a formação de nossos mais renomados mestres - Fernand Braudel, Claude Lévi-Strauss e Roger Bastide.
Fernand Braudel
É considerado um dos maiores historiadores do século 20. Desde a publicação de sua obra principal, La Méditerranée et le monde méditerranéen à l’époque de Philippe II, em 1949, sua influência nos estudos históricos tem sido reconhecida de forma inequívoca. Integrou, com Marc Bloch e Lucien Febvre, o grupo conhecido como dos Annales - o nome deriva de uma revista que Bloch e Febvre criaram, enquanto eram professores da Universidade de Estrasburgo, "Annales d’histoire économique et sociale", para divulgar um conceito novo e provocativo de história, "mais amplo e mais humano", que analisava profundamente as forças econômicas e sociais do processo histórico.
Quando foi contratado pela USP, em 1935, Braudel contava em sua experiência dez anos de magistério secundário, na Argélia, e três anos em liceus franceses. Mas sua vida mudaria totalmente, ao aceitar a oferta brasileira - pela primeira vez assumiria uma cátedra universitária. Diria, mais tarde, que se tornara "inteligente" enquanto estava no Brasil - isto é, quando teve uma oportunidade de contrastar o saber europeu tradicional com os aportes de uma realidade social e cultural "diferente". Permaneceu entre nós somente três anos, mas foi notável a influência que exerceu sobre seus alunos - entre eles, Gilberto Freyre. Foi no Brasil também que se encontrou com Lucien Febvre, embora se correspondesse com ele desde 1927. Febvre dava uma série de palestras em Buenos Aires quando foi combinado entre os dois que passariam juntos algum tempo, tanto em São Paulo como na Bahia e no Rio de Janeiro. Como Braudel resolvera voltar à Europa, os dois historiadores puderam também partilhar a viagem de regresso, de duas semanas, o que fortaleceu os laços de amizade e de trabalho entre eles.
Não foi muito fácil a vida de Braudel, de volta à Europa. Alistando-se no exército francês em 1939, foi feito prisioneiro dos alemães em 1940 - mas aproveitou os anos de cativeiro para dedicar-se, com grande sacrifício, a escrever sua obra-prima. Em 1947 pôde apresentá-la, em forma de tese de doutorado, de mil páginas - mas não conseguiu o que pretendia, obter uma posição na Universidade de Paris. Em 1956, após a morte de Lucien Febvre, Braudel sucedeu o amigo, na Ecole Pratique des Hautes Etudes e na revista "Annales". Reuniu então ao seu redor alguns dos mais brilhantes talentos do século 20 - como Roland Barthes, Michel Foucault, Jacques Lacan, Claude Lévi-Strauss, Pierre Bourdieu, entre outros. Com seu auxílio pôde finalmente realizar, mas somente em 1970, um sonho que acalentava desde 1958 - a criação da Maison des Sciences de l’Homme.
Faleceu em 1985, após longo período de isolamento, em Châteauvallon, no sul da França.
Claude Lévi-Strauss
Mas não foi somente para Braudel que a experiência brasileira se tornou "o momento da inteligência" - o fenômeno é comum sempre que uma pessoa, embebida em uma cultura, ao mergulhar em outra, inteiramente "diferente", consegue separá-las, situar-se do ponto de vista de um "olhar distanciado" e assim estudá-las, até formar uma síntese. Foi exatamente esse olhar, lançado sobre as peculiaridades tanto urbanas como "selvagens" de nosso trópico "triste", que possibilitou ao antropólogo Claude Lévi-Strauss as intuições que o levaram a suas obras maiores e à organização de seu método - o estruturalismo.
Em entrevista a "Matchdumonde" (abril/maio de 2005), em pleno vigor de seus 96 anos, Lévi-Strauss ainda falou da "série de choques" que recebeu ao chegar ao Brasil, em 1935: primeiro, o impacto da natureza, o contraste entre o porto de Santos e a capital no planalto, separados pela floresta; depois, o contato com uma sociedade urbana que "pela rapidez de seu desenvolvimento e pelos restos de um passado recente, ainda subsistentes, já era uma experiência etnográfica". Refere-se sempre, o mestre francês, ao período que aqui passou: "Conservei laços com o Brasil e sei que na Universidade de São Paulo há uma cátedra que tem o meu nome. Mantive-me muito ligado aos alunos dos que foram meus alunos".
Mas a lucidez com que soube dissecar a sociedade paulistana em que viera cair foi várias vezes mal-entendida por seus contemporâneos, que viam na expressão do seu "choque cultural" mera crítica, ou comezinho desprezo de europeu diante de semicivilizados. Tanto Lévi-Strauss como Jean Maugüé, professor de filosofia, escreveram sobre o clima festivo contínuo, a teatralização dos cursos na USP, o "deslumbramento" (como diríamos hoje) dos jovens da elite social paulistana, que mantinham "uma pequena corte" em torno dos professores franceses. Dizia o primeiro: "(...) nossos estudantes queriam saber tudo; fosse no campo que fosse, somente a teoria mais recente parecia-lhes digna de ser retida. Enfastiados com todos os festins intelectuais do passado, que, aliás, não conheciam senão de ouvir dizer, pois não liam as obras originais, conservavam um entusiasmo sempre disponível pelos pratos novos (...) Idéias e doutrinas não ofereciam, segundo eles, um interesse intrínseco, pois as consideravam instrumentos de prestígio cuja primazia era preciso assegurar". Maugüé acrescentava: "Deixávamos os anfiteatros como se fôssemos virtuosos deixando a sala de concertos. Éramos na realidade julgados menos pelo assunto que havíamos tratado do que pelo talento de ator que havíamos manifestado", mas reconhece: "Como cada um de nós era livre para transmitir aquilo de que mais gostava, podia assim dar o melhor de si. A faculdade pôde ouvir um Braudel, um Lévi-Strauss, que a universidade francesa não deixaria de reprimir durante anos, antes de deixá-los falar".
Relembrando seus tempos de estudante na FFCL, Antonio Candido e sua mulher, Gilda de Mello e Souza, testemunham como se deixavam envolver, ouvindo esses professores estrangeiros, em "uma doce miragem civilizada" - superposta "à cidade provincial e modesta, onde a vida para quem queria um pouco de cultura era praticamente nula", e onde a recém-fundada USP trabalhava para mudar o conceito de pesquisa científica e investigação intelectual, introduzindo no país uma consciência crítica. Mas não faltaram xenófobos de plantão, que tentaram até mesmo destruir a jovem universidade. Definida como "um luxo da burguesia", que iria "estrangeirizar São Paulo", a instituição sofreu campanhas sistemáticas, após o golpe de Estado de 1937. Como diz ainda Antonio Candido: "Um jornal, ‘A Gazeta’, que não existe mais, era pelo seu fechamento. Um interventor, Adhemar de Barros, tomou providências para fechá-la. Nomeou um diretor para esse fim, o professor Alfredo Éllis Junior. Mas este gostou da faculdade. Era um historiador, reconhecia a importância de cursos superiores na área e passou a defendê-la".
Roger Bastide
O melhor exemplo, ainda no âmbito da USP, de intercâmbio entre as duas culturas - européia e brasileira - é encontrado na vida e na obra do sucessor de Claude Lévi-Strauss na cátedra de sociologia, Roger Bastide. Foi ele, de todos os professores franceses, quem mais se demorou aqui (de 1938 a 1954) e tornou-se o mais apaixonado pesquisador das múltiplas manifestações artísticas e culturais do Brasil. Segundo seus biógrafos, devia sua grande abertura de espírito, sua capacidade de se colocar sempre acima de preconceitos e limites de sua época, à sua formação protestante, em uma família do sul da França, de origem cátara (isto é, descendente dos hereges que já nos séculos 11 e 12 haviam tentado se liberar do autocratismo da Igreja romana). Nunca se enquadrou definitivamente em uma escola de pensamento. Quando veio para o Brasil dedicava-se com mais ênfase à sociologia das religiões, mas não gostava de se definir como sociólogo, antropólogo ou psicólogo social.
Em uma viagem a Minas Gerais, deslumbrou-se com a arquitetura barroca e utilizou-a em um curso em que ressaltava o caráter integrativo da arquitetura, da pintura e da escultura e da paisagem, antecipando-se também em relação à música barroca - cuja existência intuía, mesmo antes das descobertas realizadas pelo musicólogo Curt Lange. E se ao chegar ao Brasil dera cursos sobre sociologia das religiões e sobre o método em sociologia, gradativamente foi ampliando seus interesses e começou a ler obras brasileiras, ensaios e literatura. E concentrou suas pesquisas sobre os negros, sua cultura, suas manifestações - nesse trabalho teve como alunos e depois como assistentes Florestan Fernandes e Fernando Henrique Cardoso. Roger Bastide, que faleceu na França em 1974, deixou 17 livros sobre o Brasil, dos quais o mais famoso é O Candomblé na Bahia.