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Piratas modernos

O país sempre enfrentou corsários, mas eles nunca foram tão ousados

CECÍLIA ZIONI


Arte PB

O Brasil é alvo de piratas desde sempre, a começar pelo século 16, quando corsários ingleses - sob velada proteção da Coroa britânica - saqueavam cidades e apresavam cargas de navios. Também franceses e holandeses achavam-se no direito de estabelecer colônias no Brasil, tanto que foi durante a ocupação holandesa que a região nordeste do país viveu um de seus melhores quartos de século, a partir de 1630.

Decorridos mais de quatro séculos, os piratas continuam agindo no país. Mudaram apenas de procedimento e de objetivos, que agora são comerciais, e causam sérios danos à competitividade das empresas legalmente estabelecidas. Deve-se mencionar, também, o risco a que se expõe o comprador desses produtos, fabricados clandestinamente, sem observar quaisquer exigências de qualidade, normatização, higiene, salubridade. Um exemplo: pilhas feitas em países asiáticos, com teores de mercúrio, cádmio e chumbo superiores aos limites fixados pelo Brasil, são vendidas, sem restrições, por camelôs do Rio de Janeiro - o preço baixo é o chamariz.

No centro da capital paulista, na região da Praça da Sé, contam-se 32 mil ambulantes para 1,2 mil estabelecimentos comerciais formais. A prefeitura de São Paulo lançou, ainda sem resultados visíveis, o programa dos Pop Centros, uma espécie de shopping para ambulantes que se comprometam a não vender contrabando, produtos roubados ou pirateados.

Pressões internacionais

O moderno ato de piratear está, como reza o dicionário, em "copiar ou reproduzir, sem autorização dos titulares, livros ou impressos em geral, gravações de som e/ou imagens, marcas ou patentes, software, etc., com deliberada infração à legislação autoral".

Hoje, quase não há produtos imunes a essa ação predatória. De bonecos, camisetas e relógios a peças de avião e próteses ortopédicas, passando por CDs, medicamentos e programas de computador, a pirataria não faz cerimônia. Segundo a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) que funcionou na Câmara dos Deputados de março de 2003 a julho de 2004 para investigar essa questão, os países que estão no topo do ranking mundial de consumidores de produtos piratas são China, Rússia, Paraguai e Brasil.

O campo esteve livre para os espertos por tanto tempo que o Brasil agora está sendo pressionado pelos Estados Unidos (EUA) e pela União Européia (UE) para apertar, por sua vez, o cerco à contravenção, sob risco de ser submetido a sanções comerciais.

Segundo a International Intellectual Property Alliance, grupo de lobby que representa 1,3 mil companhias norte-americanas, soma US$ 800 milhões a perda anual provocada pela pirataria no Brasil e, sob sua pressão, o governo norte-americano ameaçou excluir produtos brasileiros do Sistema Geral de Preferências (SGP) - que reduz tarifas de importação -, medida que Brasília considera discriminatória e que pode vir a questionar na Organização Mundial do Comércio (OMC).

Também nas prolongadas e ainda infrutíferas negociações com o Mercosul, a UE tem exigido do bloco latino-americano severas medidas de repressão contra a pirataria de direitos intelectuais, atribuindo a si mesma o direito de punir, com elevação de tarifas, o país acusado de infração.

No âmbito da Organização Mundial da Propriedade Intelectual (Ompi), Japão, EUA e UE defendem novos tratados para aumentar a proteção aos detentores de patentes, alvo certo dos modernos piratas. O Brasil, à frente de um grupo formado por Argentina, Cuba, Bolívia, Venezuela, Irã e outros, apresentou proposta mais ampla, de imediato rechaçada pelas nações mais ricas: o combate mais eficaz à pirataria no Terceiro Mundo se faria pela ampliação da transferência, por meio de investimentos norte-sul, da tecnologia do conhecimento e dos avanços de pesquisas científicas, além de apoio à criação de leis nacionais de propriedade intelectual de acordo com o nível econômico de cada país.

Essa reação das nações mais ricas parece indicar que pirataria é exclusividade de país pobre. Nada disso: o cineasta Steven Spielberg, por exemplo, teve o desprazer de ver a China inundar o mundo com cópias de vídeo piratas de seu filme Shrek 2, três meses antes do lançamento oficial. Outro evento curioso foi a polêmica que se formou em torno de um final diferente que Gabriel García Márquez teria criado para seu último livro, Memoria de mis Putas Tristes, devido a uma edição pirata que chegou ao mercado antes da obra original.

Perdas e danos

Pesquisa feita em agosto pela Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp) com 64 sindicatos patronais indica que a pirataria e a informalidade prejudicam, pela concorrência desleal, 80% dos setores industriais representados pela entidade. E levantamento realizado pelo Brazil-US Business Council, órgão de promoção de investimentos e comércio bilateral, mostra que o comércio de produtos pirateados provoca perda anual de US$ 1,6 bilhão em vendas e o fechamento de 1,5 milhão de vagas no comércio formal. O Sindicato Nacional dos Técnicos da Receita Federal (Sindireceita), por sua vez, calcula as perdas de arrecadação com vendas ilegais no país em mais de R$ 30 bilhões ao ano.

Esses números são apenas estimativas, dada a informalidade específica desse mercado. As perdas localizadas são mais bem identificadas por setores mais organizados - entre eles a indústria fonocinematográfica, de informática, de fumo. Ainda segundo o Council, são ilegais, piratas ou irregulares 61% dos softwares vendidos no Brasil, 34% dos cigarros, 52% dos CDs e 30% dos DVDs.

A moderna pirataria também passa do produto ao serviço: no Rio de Janeiro, prospera uma curiosa TV a gato, operada por empresas informais, com clientela estimada em 600 mil assinantes, moradores de áreas não servidas pelas operadoras legais de TV a cabo, por desinteresse econômico ou dificuldade técnica. O problema é tão grande que, além de o governo estudar uma solução para isso, as próprias operadoras procuram montar parcerias comerciais entre si.

Algo parecido ocorre no setor fonográfico: uma dezena de entidades vinculadas à Associação Brasileira dos Produtores de Discos criou a União de Combate à Pirataria. A facilidade de download pela Internet levou as grandes gravadoras e as independentes a lutar lado a lado pela defesa de seus interesses.

Diante do cerco interno e externo, o governo brasileiro deu alguns passos mais firmes contra o avanço da pirataria, a partir do segundo semestre de 2004. Ainda é cedo para apurar se as medidas tomadas terão eficácia, mas colocá-las em vigor já é um avanço.

Em outubro, foi instalado o Conselho de Transparência Pública e Combate à Corrupção - sugerido pela CPI da Pirataria -, com a incumbência de debater e sugerir medidas de aperfeiçoamento dos métodos de controle, o incremento da transparência na administração pública e estratégias contra a prática de corrupção e a impunidade. O órgão substituirá um comitê interministerial de combate à pirataria, criado em março de 2001, dedicado principalmente à educação do consumidor. O novo conselho pretende ir diretamente de encontro à chamada máfia da grande pirataria, deixando para segundo plano tanto a repressão aos pequenos camelôs quanto a motivação do comprador.

Projetos

Em agosto, a CPI da Pirataria concluiu seus trabalhos, iniciados em maio de 2003, denunciando mais de cem pessoas por envolvimento com quadrilhas ligadas à pirataria, ao contrabando e à evasão fiscal (policiais, juízes, empresários e políticos, entre outros) e pedindo o indiciamento de 50 pessoas. O Ministério da Justiça decidiu abrir processo para expulsar todos os estrangeiros citados no relatório.

A CPI também produziu cinco projetos de lei, um dos quais modifica a pena dos crimes de contrabando e receptação, acrescentando à privação de liberdade a restrição de direito (ou seja, comerciante que vender mercadorias ilegais será impedido de exercer o comércio e quem transportar produtos contrabandeados perderá o veículo com o qual o crime foi cometido). No Superior Tribunal de Justiça (STJ), estuda-se a criação de varas especializadas no julgamento de casos de pirataria e contrabando.

Ainda em agosto, o Brasil firmou com o Paraguai - de onde procedem 90% dos produtos pirateados e contrabandeados - acordos para restringir essa atividade criminosa. O governo também iniciou contatos com a China, outra grande fornecedora, com o mesmo objetivo.

E, desde outubro, a Empresa Brasileira de Infra-Estrutura Aeroportuária (Infraero) e a Receita Federal passaram a estudar formas conjuntas para modernizar os serviços de fiscalização de bagagem e de passageiros nos aeroportos internacionais do país. Pretendem, por exemplo, fazer uso intensivo de aparelhos de raios x e informatizar a declaração de bagagem.

Tiro pela culatra

Para reagir às pressões norte-americanas, o governo retomou o mecanismo bilateral de consultas e recebeu a visita de autoridades do Departamento do Comércio e do Escritório de Representação Comercial (USTR). Preparou-lhes um extenso dossiê sobre as ações de controle postas em vigor, com o objetivo de propor um acordo bilateral de combate à pirataria. Com isso, pretende evitar a exclusão do Brasil do SGP, que tem permitido exportações de US$ 2,5 bilhões por ano de produtos brasileiros isentos de qualquer tarifa. Nessa briga de cachorro grande, o Brasil não deixa de dar sua estocada e, no documento, mostra que o tiro pode sair pela culatra: dos US$ 2,5 bilhões de produtos exportados pelo SGP, quase um terço provém de vendas de filiais norte-americanas no Brasil para suas matrizes. Se os EUA tirarem o Brasil do SGP, os importadores norte-americanos acabarão sendo onerados em cerca de US$ 100 milhões ao ano.

No mercado interno, a pressão contra a pirataria também tende a se intensificar, mesmo sob algum ceticismo quanto aos resultados que podem ser obtidos. No caso das indústrias, por exemplo, dos 64 sindicatos que informaram à Fiesp sofrer concorrência desleal, só 22% chegaram a mover alguma ação judicial contra isso. É que a legislação brasileira tem sido ineficaz: não há registro de um único caso de violação dos direitos de propriedade intelectual em que o responsável fosse condenado à prisão, diz o presidente da Associação Brasileira da Propriedade Intelectual (ABPI), Gustavo Leonardos, para quem a situação só mudará se o governo decidir aumentar a repressão, iniciar um plano de educação dos consumidores potenciais e promover a desoneração fiscal das empresas formais.

Falta na legislação do país um mecanismo que, além de punir os infratores, incentive a proteção do direito autoral, segundo Carlos de Souza, professor da Escola de Direito de São Paulo, da Fundação Getúlio Vargas, que também sugere mudança na estratégia das gravadoras para maior exploração da negociação de músicas pela Internet. Aliás, é na música que a moderna pirataria encontra um dos campos mais abertos. A Associação Protetora dos Direitos Intelectuais Fonográficos do Brasil (APDIF) calcula prejuízo de R$ 1 bilhão para as empresas formais, que, em cinco anos, fecharam 56 mil postos de trabalho. De janeiro de 2003 a agosto de 2004, agentes da Receita Federal apreenderam 25 milhões de CDs, entre pirateados e virgens.

Para estancar essa torrente, pelo menos parcialmente, o país incluiu nos acordos de combate à pirataria celebrados com o Paraguai a proibição de trânsito em portos brasileiros de CDs virgens com destino a outros países.

Programas piratas

Campo muito fértil para a moderna pirataria, aqui e no mundo, é o mercado de programas de computador. Dos US$ 80 bilhões movimentados, US$ 51 bilhões referem-se a vendas regulares e US$ 29 bilhões a produtos pirateados, segundo a Business Software Alliance (BSA), que apura o movimento de sistemas operacionais e de softwares em âmbito mundial. A média geral de pirataria nesse setor é de 36%. O menor índice é o dos Estados Unidos (22%) e os maiores, da China e do Vietnã (92%). O Brasil apresenta 61% e, aqui, as vendas de programas ilegais somam US$ 520 milhões, informa a BSA.

O controle desse tipo de pirataria está se tornando muito eficiente no país. O número de denúncias de uso ilegal de programas dobra a cada três meses, estima a Associação Brasileira das Empresas de Software (Abes), que atua em parceria com a BSA. Na fiscalização de 1.030 microcomputadores, por exemplo, a arrecadação de indenizações somou R$ 1 milhão, e a maior parte das ocorrências se verificou no setor industrial (57% do total) e na área de serviços (32%). Segundo a CPI da Pirataria, a sonegação fiscal gerada pela falsificação de programas de computador chega a R$ 480 milhões por ano.

Outro alvo bastante visado pela pirataria é a TV a cabo: além da chamada TV a gato, haveria 300 mil conexões domésticas piratas, o que provoca a perda de receita anual para as operadoras de R$ 200 milhões.

A pirataria não faz discriminação: de computador a isqueiro e cigarro, vale tudo. De 145 bilhões de cigarros fumados por ano no Brasil, 34% são falsificados. O comércio ilegal de isqueiros - cópias de marcas ou modelos - equivale a 15% a 25% do mercado, ou seja, até 24 milhões de unidades por ano. Isso leva a indústria regular a operar a meia capacidade, e - o mais irônico - até o controle à fraude é oneroso: incineração, transporte e armazenagem de 14 milhões de isqueiros, por exemplo, geraram despesa de R$ 420 mil.

Um grupo de empresas - Bic Brasil, Henkel Loctite, Souza Cruz, Philip Morris, Nike do Brasil e Louis Vuitton - desenvolve um programa contra a falsificação de marcas e já realizou seminários em cidades-chave, como Paranaguá e Foz do Iguaçu (PR), Santos (SP), Ponta Porã (MS), Porto Alegre, Recife e Fortaleza. Mais de 1,5 mil fiscais federais e estaduais da Receita e policiais federais já foram treinados.

Segundo o Brazil-US Business Council, nos EUA a pirataria afeta 12% do mercado de brinquedos (por ano, 1,5 milhão de bonecas Barbie são falsificadas), 40% do de discos e 70% do de óculos. Na área de direitos autorais, as perdas vão a US$ 800 milhões, dos quais US$ 14 milhões no mercado livreiro.


Os crimes dos piratas

Sob o título de pirataria abrigam-se os crimes de falsificação de marca ou de produto e concorrência desleal, além de violações à propriedade intelectual - conceito cuja definição é discutida na Organização Mundial da Propriedade Intelectual, que também debate formas de proteção nas relações comerciais internacionais. Pelas leis brasileiras, a pirataria pode implicar pena de 3 a 12 meses de prisão, além de multas. No Congresso, tramita projeto de lei que prevê ampliação do período de reclusão para 24 a 48 meses e multas de até 3 mil vezes o valor da obra pirateada.

A proteção de marcas está na Constituição Federal, na Lei de Propriedade Industrial (9.279/96), no Código de Defesa do Consumidor, no Código Civil. Pelo Código Penal, artigo 184, a violação de direito autoral acarreta pena de 3 a 12 meses de detenção ou multa. Se houver intuito de lucro, o período de reclusão passa a ser de 12 a 48 meses.

Em âmbito mundial, a pirataria é condenada pela Convenção de Paris, de 1883, e pelo Acordo sobre os Aspectos de Direitos da Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio (Trips), da OMC, do qual o Brasil é signatário.

O combate à pirataria não é tarefa fácil para as empresas brasileiras e exige estratégias curiosas. Não é raro, por exemplo, uma empresa escolher um pirata e autorizá-lo a continuar a falsificação, desde que isso reverta em denúncias contra outras pessoas envolvidas com esse crime.

 

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