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Moeda forte

A opção preferencial do Banco Central pelo controle da inflação

OSWALDO RIBAS


Foto: Henrique Pita

Há 40 anos o Brasil começava uma nova e fascinante etapa da sua turbulenta história econômico-financeira. Em 31 de dezembro de 1964, por meio de um decreto, o então emergente regime militar, sob o comando do marechal Humberto Castello Branco, criava o Banco Central do Brasil (BC), numa iniciativa destinada não só a modernizar as relações entre os agentes econômicos - quem poupa, investe ou simplesmente toma emprestado ou consome -, como também a trazer estabilidade ao poder de compra da moeda brasileira, saneamento às deficitárias contas públicas de Brasília e mais eficiência ao sistema financeiro nacional.

Centenas de anos depois de os BCs já terem se tornado um instrumento indispensável à organização dos sistemas econômicos e monetários da Europa, como é o caso do Banco da Inglaterra, e meio século após os Estados Unidos terem criado seu Federal Reserve (Fed) no formato em que ele atua hoje, o Brasil adotava seu próprio "banco de governo", ou seja, uma instituição com poderes para monitorar o Tesouro Nacional - o caixa do poder público que capta recursos no mercado financeiro por meio de emissão de títulos - e executar a política monetária mais adequada às necessidades do crescimento econômico sustentável do país.

Chamado de "guardião da moeda", por ter como meta principal evitar a erosão do valor do dinheiro na sociedade, ao BC cabe, entre outras atribuições, estabelecer mecanismos de controle à expansão do crédito e das taxas de juros; realizar os ajustes cambiais necessários para manter a paridade da moeda e disciplinar as emissões de títulos públicos do Tesouro, cuja missão é a rolagem da dívida interna. Ao BC compete ainda ser o agente fiscalizador por excelência de todas as instituições financeiras e bancárias em operação no país, assim como atuar como órgão regulador da execução dos serviços de operações eletrônicas, compensação de cheques e outros papéis.

"Com o sistema financeiro sob o comando de um BC atuante e forte, torna-se improvável, por exemplo, a quebra repentina de um grande banco comercial ou instituição de crédito, numa ocorrência que poderia levar pânico ao mercado", declara Maryse Farhi, professora e pesquisadora do Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

O BC brasileiro, em tese, nascia com a tarefa de, finalmente, apresentar ao mundo uma nova feição do país: de maior credibilidade e seriedade monetárias, componentes indispensáveis para atrair investimentos externos, sejam eles destinados a ampliar a capacidade produtiva nacional ou a fortalecer o mercado de capitais interno.

Muitos zeros

Mas, embora a missão do BC fosse estabilizar a unidade monetária, paradoxalmente o que se observou no país entre a década de 1960 e princípio da de 90 foi a mais extraordinária devastação do valor da divisa nacional. Do início de 1965 ao final de 1993, a moeda brasileira passou por quatro operações de corte de três zeros antes da vírgula. Grosso modo (ver texto abaixo), seria como se 1 cruzeiro real, a unidade que entrou em vigor em 1993, valesse 1.000.000.000.000 (1 trilhão) dos cruzeiros de 1965, ano da estréia efetiva do BC. Se considerarmos a moeda atual, verificaremos uma perda de valor ainda maior, já que o real, ao ser implantado, em julho de 1994, chegou à praça valendo 2.750 cruzeiros reais.

Na história contemporânea, desvalorizações dessa magnitude foram observadas apenas em países em situação extremamente crítica, como a que a Alemanha viveu na primeira metade do século 20. Como pôde, então, o Brasil, com toda a sua tradição pacífica e dinamismo econômico, seguir essa devastadora rota de destruição de sua moeda, num período em que o BC já estava devidamente instalado em Brasília?

"O Banco Central brasileiro já nasceu sem a credibilidade exigida para uma instituição dessa envergadura", afirma a professora Maryse, autora de vários estudos sobre política monetária. "Ele se desgastou ao tentar administrar a altíssima inflação sem os instrumentos adequados e, lembremos, nesse período esteve sujeito à influência política, que tem sempre um viés inflacionário."

Apesar de o decreto-lei de criação do BC ter previsto sua total independência dos demais poderes da nação - Executivo, Legislativo e Judiciário -, a instituição permaneceu vulnerável a todo tipo de interferência até pelo menos 1999, quando entrou em vigor o recurso das "metas inflacionárias". Esse mecanismo de política monetária, adotado pelo governo do então presidente Fernando Henrique Cardoso, concedeu, na prática, autonomia ao BC para que, a despeito de pressões ou lobbies políticos, pudesse perseguir as metas de inflação fundamentalmente por meio de uma avaliação mensal das taxas de juros feita pelo Comitê de Política Monetária (Copom), subordinado ao BC.

A Sumoc

Antes da criação do BC, o papel de autoridade monetária no Brasil era desempenhado pela Superintendência da Moeda e do Crédito, a célebre Sumoc, instituída em 1945, com o fim da 2ª Guerra Mundial, exatamente para preparar o caminho de consolidação do BC. Por um período de 20 anos, muito além do tempo previamente pretendido, a Sumoc exerceu o controle monetário, fixou os percentuais obrigatórios de reservas dos bancos comerciais, as taxas de empréstimo e dos juros sobre os depósitos bancários. Só que sua atuação foi bastante limitada, uma vez que importantes funções, como financiar as operações do governo, controlar atividades de comércio exterior, do câmbio e das empresas públicas, eram divididas entre o Banco do Brasil (BB) e o Tesouro Nacional. Com o surgimento do Banco Central, a Sumoc saiu de cena, mas, convenientemente para os propósitos políticos dos governos que se sucederam no regime militar, foi mantido o modelo de autoridade monetária que vinha sendo exercido de fato pelo BB desde os anos 1940.

De 1965 a 1986, funcionou no Brasil a dobradinha BB-Tesouro, em que as autoridades monetárias brasileiras, ao mesmo tempo em que "zelavam pelo controle monetário, eram também as agências de fomento que financiavam, por meio do Banco do Brasil, a indústria, o comércio e a agricultura", revela o professor José Cezar Castanhar, especialista em finanças da Fundação Getúlio Vargas (FGV).

Apêndices de última hora do orçamento federal ficavam por conta do BB e do Tesouro, que não só cobriam os rombos das empresas públicas, com seus quadros inchados de funcionários, como financiavam os projetos ambiciosos do governante da vez. Boa parte das grandes obras públicas do período e da manutenção de empresas estatais foi realizada com a emissão de títulos do governo e mesmo papel-moeda sem nenhum lastro.

O "dragão da inflação"

Essa "política monetária híbrida", embora tenha financiado a incipiente industrialização do país e a modernização do Estado, apresentou também como resultado prático a enorme desvalorização da moeda. Fato é que, num período inferior a 30 anos, a população viu-se obrigada a conviver com nada menos que seis padrões monetários (sem considerar as duas vezes em que a moeda mudou de nome mas não de valor), uma especulação financeira sem precedentes e componentes psicossociais que moldaram a mente de duas gerações de brasileiros, desacostumados a eleger seus representantes políticos e a saber o preço do pão no dia seguinte.

A corrosão da moeda na segunda metade dos anos 80 chegou a ser tão forte que um produto de consumo básico, como o leite, podia ter um preço remarcado pela manhã e outro à tarde. Era comum nos supermercados, numa época em que o Índice de Preços ao Consumidor (IPC) mensal chegou a dar saltos de até 80%, ouvir o ruído incessante das máquinas de etiquetar preços nas mãos de equipes de funcionários.

"É esta memória, diga-se de passagem, que acabou tornando a nação brasileira refém da atual política de estabilidade monetária, que, sob o pretexto de impedir o retorno do ‘dragão da inflação’, asfixia o setor produtivo e os consumidores com as taxas de juros reais mais altas do mundo", protesta Castanhar. Crítico, ele afirma que o BC, para recuperar a credibilidade perdida, aferra-se a uma ortodoxia radical, que o coloca, hoje, entre os mais exigentes do mundo, esquecendo que seu papel primordial, ainda que seja o de dar estabilidade ao sistema financeiro, também é o de possibilitar o crescimento sustentável do Brasil. "Somos um país em desenvolvimento e, como tal, exigimos crescer e criar empregos, nem que seja à custa de alguma inflação", argumenta.

Autonomia em questão

Do outro lado, os técnicos do BC discordam e afirmam que, para romper o círculo vicioso da espiral inflacionária, foram necessários mais de uma década de esforços, reformas radicais, como o processo de desindexação da economia, a privatização das empresas estatais, uma ampla abertura do mercado interno à competição global e o empenho do governo - na gestão de Itamar Franco e nos dois mandatos de Fernando Henrique Cardoso - para consolidar o Plano Real, até o BC ser capaz de adotar a política das metas de inflação que, na prática, vem proporcionando à instituição a almejada independência na atual administração do presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

"Esta é uma política que está dando certo", afirma o presidente do BC, Henrique Meirelles, referindo-se ao compromisso de utilizar todos os meios necessários, entre eles as polêmicas remarcações da taxa Selic (juros que remuneram os títulos públicos e servem de parâmetro para todo o mercado), pelo Copom, para manter a inflação dentro dos limites previamente acordados com o Fundo Monetário Internacional (FMI). Para 2005, por exemplo, a taxa a ser perseguida é de 5,1%.

"O país se prepara para entrar num ciclo duradouro de crescimento, e os bons resultados estão aí para quem quiser ver", acrescenta Meirelles, referindo-se à elevação das exportações, à taxa prevista de expansão do PIB de 2004, de 4,5%, e a um parque industrial operando a plena capacidade.

Roberto Luis Troster, economista-chefe da Federação Brasileira de Bancos (Febraban), engrossando o coro dos que consideram estar a política monetária no rumo certo ao combater ferozmente a inflação, rebate a crítica de que os juros altos só favorecem os bancos e que, portanto, a gestão do BC teria como objetivo beneficiar as grandes instituições financeiras do país. "Aos bancos, como a todos os demais setores produtivos, interessa um país em crescimento, já que assim podem engordar sua carteira de créditos e realizar mais negócios."

Troster, no entanto, como a maioria das entidades representativas do setor industrial e comercial, acha que, talvez, tenha chegado a hora de os destinos da política monetária brasileira contarem com a participação não apenas de técnicos do BC e do Ministério da Fazenda, mas de outras pastas, como o Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior, e representantes dos trabalhadores e de empresários do setor privado.

Para economistas e teóricos do sistema monetário brasileiro como o ex-ministro Maílson da Nóbrega e o ex-presidente do BC, Gustavo Loyola, a ampliação do Conselho Monetário Nacional e do Copom representaria, de fato, um retrocesso nas conquistas de autonomia e independência do BC. Ambos dizem temer que vozes não comprometidas com a estabilidade da moeda poderiam reacender o jogo político dos lobbies e provocar um eventual reaquecimento da inflação.


Dos réis ao real

Durante o Estado Novo, o governo brasileiro decidiu criar uma moeda forte e moderna, que exprimisse, para o mundo, a nova imagem brasileira de prosperidade e progresso industrial. Em 5 de outubro de 1942, há pouco mais de 62 anos, era criado o cruzeiro, a moeda-símbolo do Brasil, que posteriormente viria a ser ressuscitada várias vezes, sem êxito. Com equivalência de 1 mil-réis (o padrão monetário em vigor durante toda a República), o cruzeiro chegava acompanhado da sua fração, o centavo, correspondente à sua centésima parte.

É interessante notar que o centavo foi a primeira vítima da perda de poder de compra da moeda, e em dezembro de 1964, um pouco antes da criação do Banco Central, a fração do cruzeiro, já sem valor que justificasse sua existência, era abolida. Os brasileiros, assim, passaram a conviver com uma moeda cuja menor fração equivaleria a 1 cruzeiro.

Menos de um ano depois, em novembro de 1965, foi instituído o cruzeiro novo, cuja paridade equivaleria à de mil cruzeiros antigos. A nova moeda passou a circular fisicamente a partir de fevereiro de 1967, mas uma resolução do Conselho Monetário Nacional, de 1970, restaurou a denominação cruzeiro - com suas frações em centavos, que, dessa forma, retornavam à praça -, com o mesmo valor do cruzeiro novo. Esse padrão se manteria vigente até o fim do regime militar e o início do governo de transição do presidente Tancredo Neves e seu vice, José Sarney, eleitos indiretamente pelo Congresso Nacional, em 1984. Nesse mesmo ano, em agosto, novamente o centavo viria a ser extinto, preparando o caminho para, em fevereiro de 1986, junto com um audacioso plano de moratória unilateral da dívida externa, ser criado o cruzado, novamente com centavos, com equivalência a mil cruzeiros.

Num dos períodos mais turbulentos da história econômica nacional, quando se preparava, politicamente, o retorno das eleições diretas à presidência da República, o cruzado teve vida curta e, pouco antes de completar três anos, foi substituído pelo cruzado novo, que valia mil cruzados velhos.

Em março de 1990, junto com o maior confisco de ativos financeiros da história brasileira, o então recém-eleito governo civil do presidente Fernando Collor anunciava o terceiro restabelecimento do cruzeiro como a moeda nacional. A mudança foi automática: 1 cruzeiro igual a 1 cruzado novo, sem corte de zeros. Novamente imersa em aguda crise política que culminou com o afastamento de Collor da presidência, a nação começou a ser preparada pelo então ministro da Fazenda, e depois presidente, Fernando Henrique Cardoso, para se familiarizar com uma nova e até agora "definitiva" moeda: o real.

Para que essa unidade monetária entrasse efetivamente em circulação, no entanto, o Brasil ainda iria assistir à maior recomposição de valor de uma divisa já presenciada na história nacional. Precedida por um processo iniciado em julho de 1993, durante o qual houve um corte de três zeros, dando origem ao então chamado cruzeiro real (a divisa transitória), a nova moeda, o real, só passaria a circular fisicamente em 1º de julho de 1994, incorporando a Unidade de Referência de Valor (URV). Ou seja, em valores nominais, cada real chegava ao mercado com o poder de compra de 2.750 cruzeiros reais e paridade superior à do dólar norte-americano. Na época, era preciso 1,20 dólar para comprar 1 real. Hoje, são necessários cerca de 3 reais para adquirir 1 dólar.

 

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