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A saga do café

Bebida que fez história no país enfrenta modernidade e concorrência

SUELI MELLO


Foto: Henrique Pita


Histórias não faltam acerca das origens do café. Conta-se que seus frutos avermelhados foram descobertos por volta do ano 800, na Abissínia (hoje Etiópia, na África), por um pastor que ficou impressionado ao ver suas cabras saltitantes depois de comê-los. Ele decidiu experimentá-los e também se sentiu animado e bem-disposto. A "novidade", porém, demorou a se espalhar.

Foi somente cerca de 600 anos mais tarde, em meados do século 15, que o café chegou até os árabes, que se encantaram com o sabor e os efeitos da bebida. Segundo uma lenda persa, entretanto, o profeta Maomé, que viveu na Arábia entre os séculos 6º e 7º, já teria experimentado a bebida, oferecida pelo anjo Gabriel. E, após saboreá-la, ele teria declarado que se sentia "capaz de enfrentar quarenta cavaleiros e de possuir cinqüenta mulheres". Seja como for, o fato é que, por muito tempo, os árabes tentaram guardar para si o precioso segredo, permitindo a exportação apenas de frutos fervidos, para evitar que germinassem em outras terras. Mas não adiantou. Os holandeses conseguiram contrabandear alguns frutos frescos e, já a partir de 1690, cultivavam cafezais em suas colônias asiáticas (Java, Ceilão - hoje Sri Lanka - e Sumatra) e, posteriormente, nas Antilhas Holandesas, na América Central. No continente sul-americano, as primeiras mudas foram plantadas na Guiana Holandesa (atual Suriname), em 1718.

Na Europa, à medida que se tornava conhecido, o café foi alvo de paixões e ódios. Na Inglaterra, as mulheres, enciumadas dos maridos que o consumiam nas elegantes coffee houses, chegaram a fazer um manifesto para que fosse proibido pela Igreja. Na Itália, muitos cristãos reivindicavam que o papa Clemente VIII o condenasse. Ao prová-lo, porém, o pontífice teria declarado: "Seria um pecado deixar tamanha delícia somente para os infiéis". E foi assim, abençoada, que a bebida ganhou o mundo.

Berço esplêndido

No Brasil, o café chegou pela região norte, por Belém, em 1727, trazido pelo sargento-mor Francisco de Melo Palheta, numa ação que alguns interpretam como patriótica, outros como romântica, mas que hoje seria considerada biopirataria. O militar foi enviado a Caiena, capital da Guiana Francesa, onde a planta já era explorada comercialmente, a pretexto de resolver questões de fronteira, mas na realidade sua missão era conseguir algumas mudas. Como a venda de café a estrangeiros havia sido proibida por Claude d’Orvilliers, o governador da província, para alcançar seu intento Palheta decidiu aproximar-se da esposa do mandatário e conquistar-lhe a confiança. Suas artimanhas surtiram efeito: a dama o presenteou com sementes e cinco pequenas mudas de café, que ele trouxe escondidas na bagagem.

Por sorte, as plantas vingaram, e a cultura se disseminou pelo Pará, embora o clima da região não fosse dos mais propícios a essa lavoura. De lá, o café foi levado por viajantes e mascates para o nordeste, atravessando Maranhão, Ceará, Pernambuco, Bahia, até chegar, em 1760, ao Rio de Janeiro. Foi somente no final do século 18 que o cultivo atingiu São Paulo, pelo vale do Paraíba. Dali se expandiu até alcançar Minas Gerais e, posteriormente, o Paraná. Na região sudeste, além de condições climáticas e solo mais adequados, a existência de recursos então subutilizados nas áreas mineradoras decadentes e nas lavouras tradicionais facilitou a implantação da cafeicultura. Com isso, já em meados do século 19, a produção das terras fluminenses e do vale do Paraíba fazia do país o maior produtor mundial, posição que ocupa até hoje.

No Brasil, o café é uma espécie exótica, ou seja, não faz parte do ambiente natural, e por isso mesmo pode ser um fator de desequilíbrio de ecossistemas. Na época de sua chegada, porém, ninguém dava muita importância a questões ambientais, e o resultado foi devastador, não tanto devido a seu exotismo, mas principalmente pela adoção do sistema de plantation (monocultura), agravado por desmatamento, queimadas e falta de cuidados com o solo.

Segundo Mário Mantovani, diretor de Relações Institucionais da Fundação SOS Mata Atlântica, dizer que naqueles tempos não havia preocupação com o meio ambiente é apenas meia verdade. "O Código Florestal brasileiro data de 1930 e já previa uma reserva de 20% da cobertura vegetal nativa em cada propriedade. Essa determinação, no entanto, não foi cumprida e, como conseqüência, restam atualmente apenas 9% da Mata Atlântica, que chegou a ocupar todo o litoral do país", afirma.

Mas, muito antes do surgimento do código, a expansão cafeeira já havia se imposto, na forma de monocultura de latifúndio, substituindo a mata e também outras lavouras. Em relação ao desmatamento, é preciso dizer que o café não foi o único culpado, pois esse processo começou com a exploração do pau-brasil, a cultura da cana-de-açúcar e o próprio povoamento. Segundo o engenheiro agrônomo José Peres Romero, cafeicultor de Ouro Fino (MG), "naquela época a única alternativa foi desmatar, pois as condições de vida eram muito difíceis e os fazendeiros devem ser vistos como desbravadores, responsáveis pelo progresso do país".

Impacto econômico

A partir da segunda metade do século 19, os "barões do café", cujas propriedades se localizavam em terras fluminenses, estendendo-se para dentro de São Paulo pelo vale do Paraíba, vão perdendo espaço na esfera de decisões econômicas do Império para os produtores do interior paulista. Começava a surgir uma elite com nova mentalidade, interessada na criação de uma infra-estrutura comercial e financeira, na ampliação do sistema de transporte ferroviário para escoamento das safras e na substituição do trabalho escravo. A cafeicultura tornava-se, então, uma potente fonte geradora de divisas, o que permitiu a importação de máquinas e equipamentos destinados ao nascente processo de industrialização nacional.

Esse surto de progresso, porém, esbarrou na própria estrutura mantida no Brasil, que continuava girando em torno do setor agroexportador e dependia de uma política protecionista. Crises financeiras, de origem interna e externa, passaram a ser periódicas. De 1865 a 1870, por exemplo, a Guerra do Paraguai provocou um verdadeiro desastre na economia do país.

Desde o início do período republicano, os cafeicultores paulistas compunham o grupo econômico mais poderoso do Brasil. Quando Campos Salles assumiu a presidência da República, em 1898, as oligarquias de São Paulo e de Minas Gerais, grande produtor de leite, estabeleceram uma aliança que permitiu aos dois estados se revezarem no poder até 1930. Esse "arranjo" ficou conhecido como política do café-com-leite.

No final do século 19, as altas cotações internacionais estimulavam a expansão da cafeicultura nacional, o que provocou outro problema: a superprodução. Com a oferta superior à demanda, os preços despencaram. Para dar suporte aos produtores, foi adotada, então, uma política de desvalorização cambial pelo governo, que por causa disso foi obrigado a emitir papel-moeda para evitar uma crise de insolvência. As conseqüências dessas medidas foram inflação e aumento da dívida externa.

Em 1906, o Brasil mais uma vez colhia uma safra maior que as necessidades do mercado. Para impedir que os preços se deteriorassem, os estados produtores se reuniram para tomar medidas destinadas a evitar a desvalorização do café. Nesse encontro, que marca o início da intervenção oficial no setor e ficou conhecido como Convênio de Taubaté, estabeleceu-se que os excedentes seriam comprados pelos governos estaduais, com o objetivo de retirá-los do mercado, e que ficava proibida a expansão da lavoura cafeeira. Essa decisão obrigou o país a tomar um vultoso empréstimo no exterior para financiar o processo de estocagem, o que mais uma vez teve impacto na dívida externa.

Em 1929, quando ocorreu a quebra da Bolsa de Nova York e teve início a Grande Depressão, o Brasil se encontrava mais uma vez em clima de superprodução. Os estoques acumulados exigiam dos produtores maior capacidade de crédito e, com a falta dele, vieram as falências.

Segundo a historiadora Maria Aparecida Franco Pereira, desde 1920 os cafeicultores vinham gradativamente perdendo influência nas decisões governamentais, e, com o golpe que levou Getúlio Vargas ao poder em 1930, termina sua hegemonia. Apesar disso, ao assumir o controle do país Vargas adotou medidas para recuperar a economia cafeeira, de modo a evitar um desastre maior: cancelou metade das dívidas hipotecárias das fazendas produtoras, limitou as taxas de juros, aboliu impostos e procurou expandir as exportações. Durante a primeira década de seu governo, para evitar a deterioração de preços, foram incinerados excedentes num total de mais de 70 milhões de sacas, quantidade suficiente para suprir o consumo mundial da época por três anos.

Nesse período, as operações comerciais do setor cafeeiro estavam centralizadas na Bolsa Oficial de Café de Santos, cujas funções eram classificar os grãos, estabelecer normas reguladoras e divulgar informações referentes a estoques, preços e a situação do mercado. O órgão funcionou de 1922 até o final da década de 1950, num prédio suntuoso, com piso de mosaicos de mármore importados da Europa e mobiliário de madeira de jacarandá. Hoje está instalado no edifício o Museu dos Cafés do Brasil, inaugurado em 1998, que abriga registros históricos do produto que foi por muito tempo a base da economia do país. A decoração e as características originais da construção foram mantidas, incluindo obras de arte, entre as quais se destacam três painéis e um vitral assinados por Benedito Calixto.

Caldeirão cultural

A despeito dos alardeados ideais iluministas, segundo os quais todos os homens nascem iguais e têm direito à liberdade, a abolição da escravatura no Brasil veio, fundamentalmente, atender aos interesses da Inglaterra, que, a partir da Revolução Industrial, buscava ampliar seu mercado consumidor. Após a assinatura da Lei Áurea pela princesa Isabel em 13 de maio de 1888, grande parte dos negros foram tentar a vida nas cidades, onde conseguiam apenas trabalhos pouco valorizados. A maioria acabou voltando para as fazendas, na condição de empregados, mas nem por isso sua situação melhorou, já que os patrões chegavam a exigir que trabalhassem 14, às vezes 18 horas por dia, como na época da escravidão.

À medida que o tempo passava e as lavouras se expandiam, começou a faltar mão-de-obra no campo, e essa situação levou os cafeicultores paulistas a elaborar um plano de imigração: asiáticos e europeus, principalmente italianos, que enfrentavam tensões, guerra e miséria em seus países de origem, foram atraídos pela propaganda de oportunidades de trabalho e da possibilidade de conseguir terra própria. Quando desembarcavam no porto de Santos (SP), após uma longa e penosa viagem de navio, eles eram levados para a Hospedaria de Imigrantes em São Paulo e de lá encaminhados para as fazendas.

Essas pessoas tiveram não só de superar dificuldades de adaptação, mas também de enfrentar as duras condições de trabalho locais. Ainda assim, foi expressiva sua contribuição à sociedade brasileira, pois foram responsáveis pela introdução de novos instrumentos agrícolas e métodos de manejo de animais, além de terem influenciado profundamente, assim como os negros, nossa cultura, nossa culinária e até nossa religiosidade.

O café trouxe muita riqueza para os produtores e também importantes transformações. Ao mesmo tempo em que a onda verde se alastrava pelo interior, os fazendeiros erguiam enormes casarões em suas propriedades rurais e verdadeiros palacetes nas cidades, cujo mobiliário, além de louças e objetos de arte e de decoração, era trazido da Europa.

A princípio o choque cultural foi grande, pois nem todos acompanhavam as mudanças. Segundo o sociólogo William Ferreira de Oliveira, que nasceu e cresceu na cidade de Bananal (SP), no vale do Paraíba (a maior produtora de café do país por volta de 1800), os fazendeiros traziam da Europa orquestras para tocar em festas e pintores para decorar os salões. Uma história que virou folclore aconteceu numa dessas ocasiões: o proprietário de um rico palacete, em que dom Pedro I teria chegado a se hospedar certa vez, mandou trazer gelo do Rio de Janeiro para uma festa. Quando o garçom foi servir um "coronel", este lhe estendeu o prato com feijão. O serviçal observou que o gelo era para ser colocado na bebida, ao que o outro, para manter a pose, teria respondido: "Eu gosto é com feijão!"

O presente

Atualmente, no Brasil, que ocupa a posição de maior produtor e exportador de café - o país é responsável por mais de um terço da produção mundial -, a atividade gerada pela cafeicultura responde por 7 milhões de empregos diretos e indiretos e movimenta anualmente cerca de R$ 10 bilhões. Mesmo assim, o setor tem seus momentos de dificuldade, como a queda do consumo interno ocorrida nos últimos anos, atribuída à crise do desemprego, mas que já começa a se dissipar. Segundo Nathan Herszkowicz, diretor executivo da Associação Brasileira da Indústria de Café (Abic), neste momento assiste-se a uma redescoberta do café. Isso pode ser constatado no interesse demonstrado por varejistas em trabalhar com produtos diferenciados, na proliferação de casas que oferecem variedades especiais e no aumento da importação e comercialização de máquinas de café expresso.

Paralelamente, vêm surgindo no mercado internacional exigências relativas às formas de produção e comercialização, em que conceitos como segurança ambiental e responsabilidade social são imensamente valorizados. Atento a essa tendência, que num futuro próximo pode levar os países desenvolvidos a criar barreiras não-tarifárias, o Brasil procura enquadrar-se nos novos parâmetros para não ser surpreendido pelos concorrentes, entre os quais se destacam Vietnã e Uganda.

Enquanto isso, aquela velha história de que o brasileiro toma café de baixa qualidade porque os melhores são exportados está sendo superada, ao menos para os que estão dispostos a pagar mais. O país produz hoje, a partir da seleção dos melhores grãos, cafés especiais que, à semelhança do vinho, são identificados por tipo, safra e região de origem. Segundo Edgard Bressani, secretário executivo da Associação Brasileira de Cafés Especiais (BSCA), o mercado interno absorve apenas 3% das vendas, mas a demanda tem crescido, em média, 15% ao ano.

Em sua opinião, embora o custo de produção seja até 20% mais alto, esse é um investimento que compensa, uma vez que o quilo de café especial custa de R$ 25 a R$ 32, enquanto o preço do comum gira em torno de R$ 8. E o consumidor também acaba ganhando, pois, diz Bressani, "a experiência de saborear uma boa xícara de expresso ou de cappuccino, preparada com grãos especiais, é única". No mercado externo, o Japão é o maior comprador: "É para lá que exportamos vários lotes premiados em nossos concursos de qualidade (Cup of Excellence e Brazil Late Harvest Competition), em que o quilo do produto chega a custar US$ 100".

Entre os especiais, o café orgânico também vem ganhando espaço no mercado externo, até porque seu modo de produção, que exige certificação, atende perfeitamente às exigências internacionais. Segundo o engenheiro agrônomo Cássio Franco Moreira, presidente da Associação de Cafeicultura Orgânica do Brasil (Acob), com sede em Machado (MG), uma saca de 60 quilos de café convencional de qualidade custa ao importador estrangeiro cerca de US$ 80, ao passo que pelo orgânico ele pode chegar a pagar até US$ 140. Essa é uma das razões pelas quais a modalidade vem apresentando expressivo crescimento: em 2003 foram comercializadas cerca de 80 mil sacas, e em 2004 calcula-se que tenham sido vendidas 250 mil.

A cafeicultura, de modo geral, tem motivo para estar otimista diante do futuro. Em agosto do ano passado a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) anunciou a conclusão do seqüenciamento genético do café, que permitiu aos pesquisadores brasileiros criar o maior banco de dados sobre o produto no mundo, com 200 mil seqüências de DNA. Agora, o objetivo é identificar a função dos principais genes a fim de produzir novas variedades. O projeto contou com a cooperação técnica de diversos parceiros, entre eles a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) e o Instituto Uniemp (Fórum Permanente das Relações Universidade-Empresa).

Durante dois anos, apenas instituições de pesquisa brasileiras terão acesso a esse banco. Após esse período, as consultas serão liberadas a empresas públicas ou privadas, nacionais ou estrangeiras, mediante o pagamento de royalties. Para o pesquisador Antônio de Pádua Nacif, que coordenou os trabalhos, "é importante usar esse tempo para conquistar vantagem comercial, tirando o maior proveito possível desses conhecimentos, antes que outros países tenham acesso a eles".

As expectativas são de que dentro de dez anos comecem a surgir novas variedades, de melhor qualidade, com mais aroma e sabor. Mas a característica mais aguardada é o aumento da resistência das plantas a pragas e doenças, o que possibilitaria a diminuição do uso de inseticidas, além da perspectiva de estender a vida útil das lavouras de 15 para 30 anos. Tudo isso contribuiria para elevar a competitividade do café nacional, ao mesmo tempo em que favoreceria a queda dos custos.


Curiosidades

Conta-se que, entre os árabes, o café se tornou tão importante a ponto de, nas cerimônias de casamento, os maridos prometerem a suas esposas provê-las da bebida por toda a vida. E, se o compromisso não fosse cumprido, poderia justificar o divórcio.

A bebida também já inspirou importantes obras artísticas, como o quadro "Café", pintado por Cândido Portinari em 1935, e a "Cantata do Café" ("Kaffekantate"), de Johann Sebastian Bach, composta em 1732.

Além de ser um dos produtos mais consumidos no mundo, o café possui também um lado místico. Por muito tempo, diversos povos cultivaram a crença de que as figuras formadas pela borra no fundo da xícara - para que isso ocorra é preciso que a bebida não seja coada - têm o poder de revelar fatos sobre a vida da pessoa que a tomou. Essa prática recebe o nome de cafeomancia e, há quem diga, já foi responsável por algumas decisões de vulto na história.

No brasão nacional do Brasil há um ramo de café, o que demonstra sua importância para o país.

 

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