Sesc SP

Matérias da edição

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Ficção Inédita
João & Maria

Baseado em Fatos Realistas!
Fernando Bonassi


João é desses sujeitos que servem de objeto direto pras mais convencionais dentre as medíocres teses de sociologia geral, onde tudo o que há de específico sobre qualquer um parece ser apenas e tão-somente a enorme semelhança indiferenciada dos nossos preconceitos... Pais desconhecidos. Infância por baixo de marquises, entre gangues de comedores de lixo e batedores de carteiras magras. Fome, frio, cola, maconha, pão e cachaça. João aprendeu a se virar em pátios cercados, em beliches amontoados e na rua mesmo, onde liberdade e risco andam de caso. Ele foi fichado em todos os casarões de parede cinzenta e reformatórios pré-fabricados por arquitetos comunistas, tomando todas as porradas de monitores, inspetores e policiais que um moleque tem direito quando se começa assim, com o destino de nascer desgraçado num lugar perdido.
Não era bom. Era, segundo ele próprio, "meio ruim". "Ruim" de um modo "mal". Não "mau", ele queria dizer... e sim como algo que não funciona bem, que enguiça, pois essa ruindade do "mal" funcionamento repentino faz parte das coisas e das pessoas em medidas variadas. "As pessoas não vêm com assistência técnica ou garantia", João dizia. E João veio com uma fome indigesta desde sempre. Não uma "fome de comida", como se exprimia... mas, segundo ele próprio, "uma fome maior", que parecia querer comer a paisagem, com viadutos, asfalto e tudo.
Por essas e outras, João especializou-se em automóveis. Era capaz de abrir e saquear um deles muito rápido. Não do jeito limpo, porque trabalhava com paralelepípedo, mas era rápido. E rápido arranjava um talão de estacionamento, um toca-fitas ou bolsa esquecida, que davam pra ir carregando. Guarda-chuva ele nunca pegou. Não gostava. Segundo João, "dava azar"; não um azar "constante, bíblico ou maldito", mas um desses "casuais", que criam "minúsculos problemas infinitos".
Depois inventaram aqueles aparelhos com bandejas, que os babacas carregavam abraçados pro cinema, teatro e pra pizzaria, espancando as costas das noivas e das casadas cansadas...
Mais recentemente foram esses CDs cheios de segredos indecentes, que se desmontam de uma parte, deixando o resto chumbado no painel estatelado...
Podem ter sido essas pequenas revoluções tecnológicas que abalaram sua eficiência ou talvez ele estivesse apenas de saco cheio de fazer aquilo, vai saber... o fato é que quando Jotaérre ensinou como faturar com pedra, João mudou de ramo.
Como tudo o que era malandragem, João aprendeu depressa. Sempre conforme Jotaérre ensinara: a primeira dose, quando o cliente ainda sabia o mal que estava se fazendo, devia ser das pedras mais graúdas; já da segunda em diante, quando fulano é a química necessidade pura, bem... então podia se oferecer o que tivesse, do tamanho que fosse e pedir o preço que quisesse que o idiota ia pagar.
Pagavam: "Uma em cima da outra enquanto decaíam pra trás..."
João ficava com dois em cada cinco. Às vezes pedia sete. Foi juntando até comprar um carro. Era um Escort conversível. Tinha o chassi emendando, mas a solda parecia firme e o documento... ora, se a polícia parasse, não ia ser o carro o maior dos problemas.
Por um bom tempo João também seguiu à risca um outro conselho de Jotaérre; antigo, dos velhos traficantes de cocaína que sobreviveram aos anos oitenta: "Quem vende, não usa".
Acontece que João conheceu Maria. Ele se apaixonou por ela no instante em que a viu tomando banho no chafariz da praça da Sé. Ficou um bom tempo reparando o vestido molhado batendo naquele corpo. Maria era pouco mais que menina, mas com a roupa grudada daquele jeito parecia pronta pra tudo que se desejasse. Verdade...
Logo ele percebeu que ela "não prestava". Não de um modo "violento ou cruel", mas, segundo fazia questão de explicar, "docemente", um não prestar de nascença, "natural da pessoa".
Maria não teve história muito diferente de João. Nunca soube quem foi seu pai e a mãe preferiu esquecer. Ele tinha lá suas broncas e, pra muita gente, também não valia grande coisa. João sabia que Maria não era fácil e por isso ficou ainda mais interessado. Gostava de mulher nervosa: "Arranhada, batida e esfolada, dava mais interesse na disputa".
Demorou pra João se aproximar. Nessa época ele ainda dormia naqueles hotéis de cinco reais na Baixada do Glicério, donde se via a Radial Leste serpentear na direção da Penha, como uma cobra que trocasse a pele de fogo. Foi pra lá que levou Maria quando a pegou desmaiada perto da Catedral. Cuidou dela, trouxe de volta pra essa vida e a colocou pra vender com ele. No começo os dois se deram bem. Eram capazes de desovar entre trezentas e quinhentas pedras por semana, que pegavam com a Tia Aparecida, na Bela Vista.
Maria não tinha a mesma disciplina de João e começou a fumar o que era de vender. Pra não ficar atrás, desanimado quando a mulher queria subir pelas paredes, João começou a usar. Foi ficando cada vez mais difícil pagar a Tia Aparecida. Atrasavam, esqueciam, desapareciam. Pagavam só quando a cobrança rondava mais perto, de arma em punho. Davam desculpa, diziam que tinham estado presos e outras coisas que se diz, que ninguém acredita, mas que servem pra não deixar que tudo exploda. O Escort conversível foi vendido a preço de banana d´água porque uns credores andaram passando a peixeira na capota de vinil e nos assentos de couro preto que ainda cheiravam novíssimos.
Do hotel eles também acabaram saindo, que nem sempre a ressaca deixava tempo de chegar até a cama, já que vinham trançando e a pé.
Começaram a ficar por baixo dos viadutos da Vinte e Três de Maio. Sabendo que vira e mexe parava alguém e descarregava o revólver na entrada do buraco, dormiam onde achavam que as balas não podiam atingi-los, bem encostados na parede, num canto cego qualquer. Conseguiram ficar vivos que, segundo João, "a vida teima nessa idade".
O crack foi levando o pouco que tinham guardado até deixá-los pelo dia: o que conseguiam de manhã, fumavam de tarde; o que conseguiam ao entardecer, fumavam de noite... então deixaram de se preocupar e fumavam o tempo todo, dando os truques que podiam.
Maria desaparecia. Dizia que ia visitar amigos e passava semana longe. Pra João ela dava por dinheiro, ou por pedra mesmo, que eles tinham perdido todo o crédito financeiro. Baixou cacete nela. Ela negou. Depois Maria ficou grávida e João passou uns meses desconfiado. Porque desconfiava, batia. Porque batia, a criança acabou vindo antes. No fim dos sete meses, quando a menina nasceu, João viu que "lhe parecia". E tranqüilizou.
Agora, onde dois fumavam muito, um tinha de comer alguma coisa! Comiam. Mal e mal. Maria teve leite, é preciso que se diga. Deu pra criança. Não devia ser bom, porque a menina dormia pouco e vivia irritada.
João, que não tinha espelho, aprendeu a se enxergar na expressão daqueles que cruzava. Percebeu que estava acabando pela quantidade de horror que a cara dos pedestres lhe devolvia. Cada vez mais envergonhado, que vergonha ele ainda tinha, foi ficando fraco. O peito zuncando. As pernas trêmulas. Paranóico.
Depois dos toca-fitas foram as trombadas. Trombava, mas ficava cada vez mais difícil de correr. Até que não agüentou mais dar aqueles piques e foi pego com duas carteiras que não eram dele. Não deu tempo de se desfazer dos documentos e "deu-se o flagrante". Assinou na marra por umas coisas que não fez, mas entre "o que se faz" e o que se "deveria fazer", pra ele tinha "nenhum de diferença". Nesse meio tempo João não percebera um outro "acontecimento histórico": tinha ficado "de maior". Nessa primeira vez "devidamente responsável por seus atos", amarrou três anos no pavilhão sete do Carandiru. Foi lá que nos conhecemos, na terceira ou quarta reincidência, que ele era tão bom naquilo que seu lugar ficava guardado na ausência de uma fuga ou, o que era menos freqüente, cadeia vencida.
Quanto às besteiras de Maria, sempre soube, de um jeito ou de outro, que esse tipo de coisa não faltava gente pra contar. Maria descia direto. Caía mais baixo a cada notícia. Um dia, lá pelo meio de uma dessas penas, alguém visitando alguém veio lhe bater que a mulher tinha perdido a criança. E mais os "detalhes maldosos": que ela tinha dormido em cima da menina, que a tinha matado afogada com "o peso do próprio do corpo".
João começou então a contar os dias. Só pensava no que ia fazer com "aquela". Nada que ele pensava fazer dela era bom. Aliás, era "muito ruim", como ele dizia; não daquela "ruindade geral", mas, conforme explicava, de "uma outra", mais específica, a "maldade do pai que não era mais".
Não pensou muito e resolveu pela faca, que não fazia barulho, não custava nada e dava aquele tempo necessário praquele que morria ver aquele que matava e praquele que matava ver a vida sumir dos olhos do que morria, porque João sabia que os olhos embaçavam quando a alma "se evadia definitivamente do corpo de uma pessoa".
Quando recebeu o alvará, era uma terça-feira. Atravessou a Cruzeiro do Sul e roubou uma dessas facas de serra no primeiro restaurante de quilo com churrasco que encontrou. Pegou da mesa perto da calçada e saiu correndo. Simplesmente. Simplesmente correu que nem louco, até perceber que ninguém o seguia e andar feito gente.
Passou a procurar por ela pelos piores lugares e não demorou a encontrar, se oferecendo embaixo de uma árvore na Barra Funda. Naquele momento Maria ainda abriu os braços como se fosse abraçá-lo. Ele deixou chegar, então, numa rasteira ele já a tinha jogado na calçada, a lâmina encostada na garganta. Maria não reagiu mais que esse susto da surpresa. João também não foi além dessa ameaça. Ficou olhando bem pra dentro do olho dela, como os outros assustados nunca o olhavam pela rua diária da amargura azeda. Procurou por aquele brilho que queria roubar com a faca, mas era apenas uma coisa sem fundo. Esperou um tempo enorme pra que a alma aparecesse à flor daquilo... e nada. Então se ergueu, bateu o pó das calças e foi embora sem olhar pra trás. Não que ele "se arrependesse", que arrependimento era, segundo ele mesmo, algo que "não aprendeu na escola". Era mais que seria "desnecessário", pois João, tendo olhado daquele jeito dentro do que sobrara de Maria, entendera que o melhor, por ser pior, era deixar que o resto dessa vida se vingasse nas burradas dela.

Fernando Bonassi é autor, entre outros, de Prova Contrária (Editora Objetiva, 2003).