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Underground
O último dos moicanos

O underground dividia as opiniões quando foi sinônimo de rebeldia. Mas, hoje, esse misto de ser do contra e apreciar exclusivamente o novo ainda resiste?

No início foram os beatnicks. Era começo dos anos de 1950 e o mundo vivia o pós-guerra. Os EUA, despontando como grande potência bélico-econômica mundial, construíam o que entraria para a história como american dream (sonho americano). Mas sua juventude encontrava-se perdida em meio a um pesadelo de incertezas e sentimentos de desajuste. Costumes antigos não mais cabiam na nova época. A saída? Abandonar tudo e experimentar novos lugares, novos hábitos e tudo mais que houvesse de novo. É este inclusive o mote do livro On The Road (algo do tipo "na estrada"), escrito por Jack Kerouac, considerado precursor do beatnik e da beat generation. A literatura beat, embora nascida em textos de poesia ou prosa, trazia forte componente filosófico e musical, além de forte interesse por tudo o que quebrasse o discurso do establishment - político e cultural.
No entanto, as placas tectônicas do comportamento se encontravam em pleno movimento, e as coisas ainda tinham que mudar bastante. Segundo Cláudio Willer, pioneiro tradutor de literatura beat no Brasil e também poeta, o movimento existiu em um contexto relativamente curto no tempo, encerrando-se em seu formato original no final dos anos de 1950. Dele, no entanto, nasceria o primo famoso, o movimento de contracultura, que se fez conhecer mundialmente por meio da figura dos hippies. "Digamos que os beats do final de 1950 foram substituídos - ou sucedidos - pelos hippies a partir de meados da década de 1960", esclarece Willer. "A contracultura nasce dentro da geração beat ou a partir dela." Nessa linha do tempo, o poeta aponta como decisivo fato desencadeador a participação de Allen Ginsberg em manifestações pacifistas a partir de 1963, quando o autor voltou de uma longa viagem ao Oriente e passou a prestar especial atenção a tudo o que fosse alternativo. "Além de sua aproximação com Bob Dylan e grupos de rock", complementa Willer.

A sunga do Gabeira
No Brasil, a exemplo do que acontecia no resto do mundo - pelo menos o ocidental -, a contracultura, sua música e, principalmente, sua atitude fariam surgir outra vertente que igualmente ficaria na história - e que, segundo alguns, ainda continuaria em voga: o underground. "Nos anos 60, quando Caetano (Veloso) e (Gilberto) Gil fizeram a Tropicália, embora eles quisessem arrebentar com a coisa toda, na verdade eles faziam uma pequena cultura underground. A Gal Costa também, quando faz, em seu segundo disco, uma lista das coisas alternativas que ela gostava", explica o escritor e dramaturgo Antonio Bivar, participante do projeto Underground - Passado/Presente?, no Sesc Consolação.
Com o País vivendo sob uma ditadura militar que tentava calar artistas e intelectuais numa época em que o mundo fervilhava de novidades, o movimento nasceu ligado fortemente a um desejo de liberdade. O artista plástico José Roberto Aguilar pinta um quadro da época: "Muito do underground, mesmo nas lutas políticas, partiu para um lance de conduta e comportamento, e isso foi fantástico. Além disso, havia o 'faça amor, não faça guerra', a permissividade sexual, os novos comportamentos. O underground nasceu assim. Se o sistema é alienante, então, simplesmente não combata o sistema, crie uma via alternativa". Como exemplo dessa postura, Aguilar cita o hoje deputado federal Fernando Gabeira e sua polêmica sunga de tricô e a "turma" que se auto-exilou na Inglaterra neste período, inclusive ele próprio. "Eu fui para Londres nos anos de 1970 com aquele ideal esquerdista, partido comunista, luta social etc. Mas entrei num outro universo, o do comportamento, de experimentar drogas, experiências místicas, relacionamentos abertos; numa época em que tudo o que dizia respeito à sociedade era castrador: Deus, pátria e família."

Só restou o punk?
Mas e hoje? O underground sobrevive, faz-se notar? "Acredito que exista sim", responde Antonio Bivar. "Eu acho que é bem diferente do espírito dos anos de 1950 e 1960, porque hoje nós temos coisas como a internet, etc. Mas existe um underground via internet que é muito forte (ver box), e um movimento punk forte também. A idéia do punk, por exemplo, é sempre underground." Bivar explica que, hoje, essa postura que prima pela sucessão do novo pelo novo, flertando um pouco com o espúrio, aparece como uma atitude. "O Mário Bortolotto, por exemplo, faz uma espécie de teatro underground", avalia. "Embora o Raul Cortez esteja encenando um texto dele no teatro da Faap, há anos o Mário preservou seu estilo sem trair a sua idéia. É uma atitude meio beatnick; ele tem uma identificação com isso. As peças dele retratam uma subcultura, uma pobreza, hotéis de quinta na Estação da Luz." Já entre os espaços para teatro que poderiam ser considerados underground em São Paulo, Bivar cita o Next e o Espaço dos Satyros, ambos no centro. "Isso tudo eu acho que tem essa proposta. E tem público para isso, porque tem esse glamour, tem uma coisa que arrepia e horroriza as pessoas 'bem comportadas' - e isso é atitude."
Já o crítico musical e DJ Kid Vinil não quer muito saber de underground. Não propriamente por achar que não exista, mas por não simpatizar com o caráter restritivo da expressão. "O termo, às vezes, me assusta porque, para mim, é algo para meia dúzia de pessoas", analisa. "E eu acho que fica muito restrito. Eu estou fazendo rádio (Brasil 2000) e gostaria de falar para 50 ou 100 mil pessoas; hoje eu falo para uma média de 15 mil. Mas a minha meta seria falar para mais." Porém, mesmo esses 15 mil, que ele considera pouco numa cidade como São Paulo, não poderiam ser chamados de underground, segundo ele, só porque ouvem um tipo de música, digamos, incomum. E ele tem um bom exemplo: "O cara que mora do lado do meu apartamento é um pai de família, tem três ou quatro filhos, é um executivo, e ele ouve a rádio", conta Kid. "Ele não é underground, ele é um executivo bem-sucedido na vida, só que ele gosta de música, ele é um cara com seus trinta e poucos anos de idade que gosta de White Stripes e de Pink Floyd." De fato, o vizinho do Kid Vinil não parece ter um perfil underground. Aliás, pasmem, nem o próprio Kid se considera um. "Eu ouço música sertaneja, ouço pagode, axé, tudo isso. Eu sempre gostei de rock, mas não deixo de ouvir as outras coisas, não digo 'ah, eu odeio isso!'. Eu sou brasileiro, nasci aqui, cresci ouvindo música sertaneja. Meu pai gostava de Elvis e Tonico e Tinoco", conta, destruindo a concepção de muitos de nós.
E com essa confusão toda, quem é underground? "Não sei, mas ele existe, e em todos os tempos", resume Aguilar. "Inclusive hoje existe o underground da gente, que era underground. Mas, por outro lado, o Gil era underground e hoje é ministro...", lembra o artista.


Passado e presente - Projeto realizado no Sesc Consolação coloca lado a lado o movimento de ontem e de hoje
Beatnicks, hippies, punks e outras denominações que eventualmente foram inventadas para designar pessoas ou grupos que se levantaram contra a ordem estabelecida encontraram seu espaço nos porões do Sesc Consolação. Durante duas semanas, no final de março, o projeto Underground - Passado/Presente? reuniu performances, shows, oficinas, debates, apresentações teatrais, mostra de fanzines e exposição de fotografias. "É um jeito de mostrar um tipo de cultura, e o Sesc faz muito isso", analisa o dramaturgo e escritor Antonio Bivar, que participou do debate Re existe Underground?, parte do projeto. "Por exemplo, há 22 anos eu organizei no Sesc Pompéia, junto com os punks, algo que ficou na história: o festival O Começo do Fim do Mundo. Aquilo não poderia ser mais underground, concentrou mais de quatro mil punks, e isso nunca tinha acontecido nem no Brasil nem no mundo até então. Ou seja, o Sesc sempre foi palco para muita coisa." Sobre o atual projeto, Bivar afirma que considera o Sesc antropofágico, por "absorver as culturas e trazê-las à tona". "O Sesc mostra o que existe de bom em todas as manifestações, inclusive no underground", sentencia.
O crítico de música e DJ Kid Vinil, também convidado do projeto, mostra-se satisfeito com a discussão do movimento underground, embora ache o termo um tanto nebuloso. "Para mim é tudo cultura musical", resume. "É importante que iniciativas como essa abram espaço para novas propostas, assim como é importante que haja gente interessada nessa história (do underground). Porque se não toda a cena morre, e não se pode deixar isso acontecer."
Entre murais com trabalhos do cartunista Angeli, oficinas de fanzine com Silvio Ayala, shows de Jorge Mautner e Aguilar e sua Banda Performática, os visitantes puderam passear pela ambientação criada pelo cenógrafo Ulisses Cohn, que reproduzia um túnel em construção forrado por fotografias de Ignácio Aronovich, que, por sua vez, traduziam os inúmeros subsolos da cidade em diversas leituras do que seria o urbano que ninguém vê e/ou conhece - locais onde, ao menos segundo a mística da coisa, agiam e agem os inquietos e inconformados. "O projeto é importante como memória", afirma Aguilar. "Omitir isso seria um assassinato cultural que pode ser danoso para toda a cultura brasileira." Irreverente como sempre, o artista plástico brinca: "É bom para ver se os caras ainda mordem", provoca, referindo-se aos nomes consagrados convidados para o projeto, inclusive o seu. "É um desafio para mim mesmo."


Beco digital - Atividades no ciberespaço são consideradas a contracultura dos tempos modernos
De acordo com a definição original, o underground está ligado às sombras, à marginalidade e à minoria. E nada une mais essas características do que os chamados hackers - a saber, aqueles gênios do computador que usam os seus poderes em nome do caos e da desordem, invadindo sistemas de grandes corporações mundiais ou simplesmente infestando o nosso computador com vírus virtuais (arquivos que apagam documentos ou coisa pior). É uma atividade ilegal, penalizada com prisão - é bom avisar antes de qualquer coisa. "Eu conheço muito pouco do que seja underground hoje, mas acho que existe um movimento digital, formado por hackers, que é muito presente em termos de socialização digital e interação social", afirma o artista plástico Aguilar. O matemático Regener Fortes, que participou de uma palestra sobre o assunto dentro projeto Underground - Passado/Presente?, acrescenta que esses, digamos, arautos de uma ordem paralela na internet podem ser tanto mocinhos quanto bandidos. "Nós mostramos um documentário no Sesc Consolação de um grupo que ataca tanto grandes corporações de internet quanto pequenas empresas", conta o matemático, também produtor de sites. "Esse documentário traz o caso de duas empresas que tinham quase o mesmo domínio (endereço de internet), e a maior conseguiu que a menor tirasse o seu site do ar e ainda pagasse um dinheiro pelas perdas que, hipoteticamente, ela poderia ter tido. O pessoal da empresa prejudicada entrou em contato com um grupo de ativistas na internet (leia-se hackers), e esse grupo bombardeou o site dessa empresa grande durante quase um mês. Os 'grandões' devolveram o domínio e o dinheiro e se comprometeram, por escrito, a nunca mais usar esse tipo de tática. Para a empresa pequena, eles são mocinhos; para a grande, bandidos." No entanto, Regener observa que, de fato, existem nesse universo "piratas" que estão puramente interessados em barbarizar os sete mares da rede, por protesto ou pelo simples prazer de ver uma ordem estabelecida com as calças na mão, frágil, confusa e, até certo ponto, ridicularizada. "O ciberativismo é o underground do underground", define Regener.


A história do udigrudi
Segundo Luiz Carlos Maciel, Glauber Rocha inventou esse termo para "sacanear" o pessoal do Julio Bressane e Rogério Sganzerla, ou seja, o cinema underground, críticos do Cinema Novo. "E a palavra é horrível, ela manifesta uma ignorância não só do inglês como do português também", enxerga Maciel. "A palavra underground para quem sabe inglês é pronunciada "andergraund"; quem não sabe, lê ao pé da letra; agora falar udigrudi mostra que o sujeito é um débil mental." Por isso diz-se que a 'tradução' foi uma tentativa de Glauber ridicularizar o movimento. "Ele quis reduzir o underground, principalmente no cinema, porque o pessoal desse movimento na época era uma geração que vinha contestando Glauber. Embora eles fossem meio filhos dele, eles queriam contestar seu poder paterno. E Glauber se sentia sacaneado por aqueles fedelhos e inventou esse termo." No entanto, os representantes do underground adoraram a idéia, achavam que tinham de fato provocado com sua atitude contracultural e resolveram assumir o termo. Dessa forma, muitos começaram a se chamar de udigrudi, a despeito da intenção original do termo.


Sem mais perspectivas utópicas - por Luiz Carlos Maciel
"Existe uma coisa meio misteriosa que se pode chamar de o espírito do tempo. Esse fenômeno, que é uma coisa meio inapreensível pelos quadros de conhecimento que existem - sejam sociológicos, econômicos ou filosóficos -, apresenta uma sucessão de fases diferentes. Nos anos de 1960 e 1970 havia uma convicção de que os erros cometidos durante séculos de civilização ocidental tinham resultado numa situação intolerável, numa coisa que provocava o sofrimento dos indivíduos, algo que fazia as pessoas sofrerem - tanto que elas tinham de recorrer a drogas, psicanalistas e fanatismo para compensar essa dor. Isso determinava uma disposição positiva para a transformação. Não no sentido político tradicional, como o marxismo, por exemplo, ou a revolução comunista e socialista. Mas uma transformação interna que afetava a maneira de viver das pessoas no sentido mais amplo, inclusive o modo de produzir arte e cultura. E tudo foi muito radical; houve um rompimento com muitos padrões estabelecidos e a necessidade de novos valores. Por exemplo: a repressão sexual era uma norma. Logo, 'abaixo a repressão sexual'. O que se passa a procurar é um sexo livre, saudável, natural, sem as oposições neurotizantes da repressão, que já haviam, inclusive, sido suficientemente denunciadas pela psicanálise. Aliás, com essa parte da crítica a contracultura não se preocupou muito. Não existem teses que embasem teoricamente a contracultura; ela está cheia de constatações que já haviam sido feitas antes, como a miséria individual, verificada por Freud; e a miséria coletiva, verificada por Marx. Isso já era uma etapa superada.
O que se impunha era um momento positivo e criativo. Abandona-se a maneira vigente de viver. As pessoas procuram as praias, cachoeiras, querem ficar nuas. Era a chamada sociedade alternativa, tão cantada pelo nosso Raul Seixas.
Depois do esvaziamento desse projeto, a juventude veio muito mais realista, considerando o sistema algo mais ou menos imutável. Na verdade, essa maneira de viver passou a ser imutável para a juventude, e ela começou a desenvolver maneiras de viver melhor e obter a sua felicidade e prazer dentro dos quadros vigentes. Ou seja, não houve mais um movimento alternativo, mas sim um movimento de procurar ser criativo dentro do que está estabelecido. As novas gerações encaram a realidade sem mais perspectivas utópicas de que todo mundo vai ser mais feliz, de que a vida vai mudar. A vida não vai mudar, só se for para pior."

Luiz Carlos Maciel é escritor e já foi chamado de guru da contracultura. Título que ele recusa vigorosamente: "Não posso ficar preso a nenhuma imagem".