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A cidade se reconstrói


Projeto do novo Mercado Municipal / Divulgação

Arquitetos que assinam projetos de recuperação falam da capital

ROBERTO HOMEM DE MELLO

São Paulo comemora seu 450º aniversário em obras. Nenhuma novidade, pode-se dizer, pois esse é o estado permanente da metrópole paulistana. No entanto, alguns dos tapumes e andaimes são especiais. Eles encobrem presentes que homenagearão a história da cidade da melhor maneira possível: projetando-a para o futuro. Dentro do movimento de revalorização do centro da cidade, iniciado há alguns anos, estão sendo recuperados edifícios importantes do patrimônio histórico, como o Mercado Municipal, a Estação da Luz e a Biblioteca Mário de Andrade. A seguir, os autores desses projetos – Paulo Mendes da Rocha, Pedro Paulo Saraiva e Fábio Penteado – comentam os desafios da metrópole. Nessa empreitada, são acompanhados pelos jovens arquitetos Marcelo Morettin e Vinicius Andrade, responsáveis pelas obras de revitalização da também histórica Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP) e mostram a cara da geração que comandará as próximas transformações da megalópole.

Faz parte do ofício de arquitetos e urbanistas procurar antever as mudanças da cidade. Por isso, observar os movimentos desses profissionais pode ser revelador sobre o que eles estão enxergando. Pois bem: dos cinco arquitetos entrevistados nesta reportagem, três trabalham atualmente na região central de São Paulo: Fábio Penteado, Paulo Mendes da Rocha e Pedro Paulo Saraiva. E os outros dois, os jovens Marcelo Morettin e Vinicius Andrade, querem mudar o escritório que mantêm em sociedade para lá, onde já estão morando.

Abandonado à própria sorte durante décadas, o berço da cidade volta a despertar o vivo interesse dos formadores de opinião, do poder público e do mercado imobiliário, que realiza diversos empreendimentos na região. "Se eu fosse um grande investidor, como George Soros, compraria o bairro de Santa Cecília inteiro", diz Morettin, apostando na valorização dos imóveis do local, hoje relativamente baratos devido à degradação a que ainda estão associados.

Pode-se com toda a razão desconfiar da representatividade da amostra. Mas supondo que os arquitetos estejam realmente sinalizando que aquela área tem um futuro interessante, ainda resta uma pergunta importante: por quê?

O centro da capital continua a ser considerado por boa parte dos paulistanos um lugar violento, sujo e dominado por vendedores ambulantes, moradores de rua e outros personagens que causam arrepios na classe média. Afinal, há muitos anos esses têm sido os aspectos mais ressaltados da realidade da região.

No entanto, a imagem repulsiva agora parece estar sendo aos poucos substituída por outra, de lugar charmoso, vibrante e extremamente prático. "Lá estão todos os equipamentos da cidade", observa Morettin, utilizando um jargão que abrange várias das vantagens do centro, como transporte coletivo farto e poderosa infra-estrutura de energia e comunicações. Muitos arquitetos e urbanistas sustentam que é um desperdício um local como esse ser utilizado praticamente só durante o horário comercial, como ocorre atualmente. Para eles, é preciso que mais gente more naquela região. E isso já estaria começando a acontecer. Andrade e Morettin, autores do projeto de ampliação e modernização da Faculdade de Medicina da USP (ver texto abaixo), têm visto jovens como eles entusiasmados com os encantos da região central.

Impulso

A tendência de ver o centro com outros olhos pode ter vários motivos, mas é inegável o impulso dos primeiros projetos de revitalização de bens do patrimônio histórico da cidade. Um deles envolveu a Estação Júlio Prestes, projetada nos anos 1920 por Cristiano Stockler das Neves. A partir de uma iniciativa da atuante ONG Viva o Centro, a antiga estação da Estrada de Ferro Sorocabana passou a abrigar a celebradíssima Sala São Paulo, sede da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo (Osesp) e um dos pontos obrigatórios do circuito dos concertos internacionais.

Outra iniciativa de extrema importância nesse processo resultou nas atuais instalações da Pinacoteca do Estado. Assinado pelo premiadíssimo arquiteto Paulo Mendes da Rocha, o projeto alcançou repercussão internacional ao propor um diálogo instigante entre a construção de estilo neoclássico e a inserção de elementos modernos e ousados, que lhe conferiram novas possibilidades, como as passarelas metálicas que cruzam os amplos pátios internos do edifício. "O visitante pode enxergar o lugar como antes só as andorinhas eram capazes de fazer", diz o arquiteto.

Ao valor arquitetônico somou-se a qualidade das exposições que passou a abrigar, amplamente divulgadas nos meios de comunicação. Resultado: o lugar se tornou um dos pontos de lazer cultural mais visitados da cidade. Integrada organicamente ao bicentenário Jardim da Luz, também recuperado, a Pinacoteca proporcionou um novo olhar sobre todo o entorno, configurando-se como um dos melhores argumentos a favor do ambicioso Projeto Luz. Financiado pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e pelos governos federal, estadual e municipal, o programa pretende impulsionar a renovação de todo o bairro, de grande valor histórico, mas há muito tempo degradado sobretudo pela prostituição e pelo tráfico de drogas.

Mendes da Rocha é também um dos arquitetos envolvidos numa obra importante nesse contexto, embora formalmente ela faça parte de outro projeto, financiado por recursos públicos e privados: a recuperação e renovação da centenária Estação da Luz, que abrigará um pioneiro centro de referência da língua portuguesa e está sendo preparada para o aumento considerável de público que ocorrerá quando se efetivar a integração entre os trens urbanos e o metrô da futura linha 4. O movimento diário deve saltar de 40 mil pessoas para 300 mil.

Embate obrigatório

O projeto teve de ser reformulado para contornar restrições dos órgãos de preservação. Como a estação é triplamente tombada, entra-se num labirinto de siglas e burocracia: a intervenção precisa ser aprovada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), federal; pelo Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado de São Paulo (Condephaat), estadual; e pelo Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental da Cidade de São Paulo (Conpresp), municipal.

Nesses projetos de intervenção em construções de valor histórico, o embate com os órgãos de preservação é quase obrigatório. Qualquer ação que transcenda o caráter de puro restauro inevitavelmente estará interferindo em alguma característica do bem que se deseja preservado.

Quando o mesmo bem é tombado por vários órgãos, que respondem a diferentes esferas de poder, como é o caso da Estação da Luz, o problema se potencializa. E ganha ainda mais intensidade quando um dos lados tem um ponto de vista bem peculiar sobre o que é preservação. "Para conservar é preciso atualizar, de algum modo viver lá dentro", diz Mendes da Rocha.

Uma aplicação prática, embora hipotética, desse conceito: o arquiteto lembra que, quando a Escola Caetano de Campos, projetada por Ramos de Azevedo e localizada na Praça da República, passou a ser servida pelo metrô, foi fechada e transformada em secretaria. "A única forma de preservá-la seria fazer as crianças voltarem a estudar lá", diz.

Outro problema de caráter teórico diz respeito ao nome mais adequado a esse tipo de ação: recuperação? recomposição? reciclagem? A lista pode ir muito longe, mas a palavra talvez mais usada seja revitalização.

"Eu não concordo com esse nome. O centro nunca deixou de ter grande vitalidade. O que se está fazendo é mais uma requalificação", diz Pedro Paulo Saraiva, provavelmente tendo bem presente a referência do projeto que está realizando no efervescente Mercado Municipal (ver texto abaixo).

Acampamento

Assim como as palavras possíveis para defini-las, as intervenções em bens de valor histórico surgem aos borbotões, aproveitando a ocasião dos 450 anos da cidade. Há dezenas de projetos concluídos, em curso e em planejamento no centro histórico, comandados pelo poder público ou pela iniciativa privada.

Claro que ainda é muito menos do que o desejável para aquela área voltar a ser o efetivo coração da cidade. No entanto, não seria possível nem razoável investir numa reforma maciça de toda a região. A idéia por trás dessas intervenções é o seu provável poder multiplicador: os investimentos pontuais, se bem executados, desencadeariam um processo de renovação nas imediações, graças ao valor que agregam ao local. Um fenômeno que o urbanista e político Jaime Lerner costuma chamar de acupuntura urbana. Ou seja, uma ação pontual com reflexos no todo.

Um exemplo muito citado de um processo como esse é o ocorrido após a instalação do Museu Guggenheim em Bilbao, na Espanha. E, por que não, o que aos poucos começa a ocorrer no bairro da Luz e em todo o centro. "A minha intuição é que ainda está longe de se recuperar, mas mais perto de voltar a ser um local interessante do que de continuar a ser o que era", diz Morettin.

Ao concentrar ações de renovação urbana no centro, tenta-se revitalizar aquela importante região. Mas o recado vai além, pois São Paulo não acaba ali: "Lá está sendo criado um ambiente favorável, que é o ponto de partida para a recuperação da cidade", diz Andrade.

Para isso, no entanto, o caminho é tão longo e cheio de contratempos quanto as surradas ruas da cidade. "São Paulo não é uma, são 39", diz, referindo-se às recém-instituídas subprefeituras, o arquiteto Fábio Penteado, responsável pelo projeto de recuperação da Biblioteca Mário de Andrade. Em alguns casos, os problemas são muito maiores que os do centro. Quando o núcleo da cidade deixou de ser suficiente para comportar seu crescimento explosivo, em meados do século passado, a Paulicéia começou a se espalhar desenfreadamente em direção à periferia, de maneira cada vez mais caótica. Na falta de ordenamento, cada loteamento instituiu regras próprias, sem se importar com o vizinho. A população ficou à mercê do mercado imobiliário, que com freqüência age de forma predatória e absolutamente despreocupada com a noção de espaço coletivo. "Se o poder público não estabelecer critérios muito claros, eles vendem até a calçada", diz Penteado. "Não vejo São Paulo mais como cidade, e sim como um acampamento", costuma dizer o arquiteto.

Diáspora

Quando houve planejamento, foi para abrir alas para a passagem desimpedida dos automóveis, sempre priorizados em detrimento do transporte público. Boa parte da classe abastada aproveitou as vias expressas para ir residir cada vez mais longe do convívio com a população menos favorecida. "A cidade, bem ou mal, é um espaço democrático. A classe dominante a abandona e vai procurar recintos privativos. Negar a cidade é afirmar o metódico desmantelamento", diz Mendes da Rocha.

Pedro Paulo Saraiva lembra a responsabilidade do próprio poder público nessa diáspora. "A partir de meados do século passado, o governo, que freqüentemente fala em prestigiar o centro da cidade, fugiu de lá, e atrás dele foram os outros", diz ele.

O arquiteto cita órgãos públicos que, um atrás do outro, saíram da região. Primeiro, para a área da Avenida Paulista; depois, para a Avenida Faria Lima; e, mais recentemente, para a região da Avenida Luiz Carlos Berrini. Ou seja, cada vez mais longe da Praça da Sé. Saraiva considera que o brasileiro, "talvez pela herança paternalista portuguesa", sempre espera pela ação do governo.

Se isso é verdade, menos mau que a ação atual – consensual a ponto de reunir de um mesmo lado rivais políticos como os tucanos do governo estadual e os petistas da prefeitura – seja de clara afirmação do valor do centro, não apenas investindo em projetos de recuperação da região como também trazendo órgãos públicos de volta a ela. O próprio governador vai passar a despachar semanalmente na Rua 15 de Novembro, e a prefeita mudará seu gabinete para a Praça do Patriarca. Será o começo de uma nova cidade?

Elevados

Mas o que os arquitetos acham possível fazer para melhorar São Paulo? Quase todos eles mencionam o leito das ferrovias e seus galpões abandonados, uma área enorme e praticamente central, que poderia ser aproveitada para beneficiar a população, de diversas maneiras.

Para Pedro Paulo Saraiva, os horríveis elevados poderiam ser suprimidos e substituídos por vias subterrâneas, como o projeto Big Dig faz em Boston, nos Estados Unidos. Saraiva se refere a viadutos em geral, mas a imagem que vem de imediato à mente de quem conhece São Paulo é a do famigerado Elevado Costa e Silva, ou Minhocão, obra execrada por quase todos os urbanistas por simbolizar o endeusamento do automóvel e a negação da cidade.

"E por que não transformá-lo numa grande área de lazer, como já ocorre aos domingos? Seria uma maneira de devolver de modo positivo o recado simbólico extremamente negativo que ele passou quando foi construído", sugere Morettin.

"Uma obra que necrosou todo o seu entorno durante anos poderia exercer o efeito oposto, de atração e valorização", conclui Andrade.

Alô, prefeitura: as propostas estão lançadas.


Espaço democrático

O célebre arquiteto Ramos de Azevedo morreu cinco anos antes de ver pronta uma de suas obras mais importantes, o Mercado Municipal de São Paulo. Inaugurado em 1933, foi durante décadas o principal centro de abastecimento da cidade, e até hoje recebe milhares de pessoas diariamente. "É um dos espaços mais democráticos da cidade, e a intenção é que continue assim", diz o arquiteto Pedro Paulo Saraiva, que assina o projeto de revitalização do edifício. Financiada pelo BID e pelo governo municipal dentro do programa Ação Centro, a intervenção custará R$ 19,9 milhões.

O projeto, que retoma e atualiza uma proposta elaborada pelo arquiteto em 1987, envolve o restauro de elementos arquitetônicos originais, reparos físicos, profunda reorganização e modernização funcional – que inclui até intervenções viárias para melhoria do acesso ao local–, e a incorporação de novos usos do edifício. A novidade será a varanda gastronômica, com seis restaurantes, que funcionarão num mezanino, com vista privilegiada para o mercado e para os históricos vitrais de Conrado Sorgenitch. Um detalhe: as obras serão feitas sem paralisar as atividades do mercado. "Esse é o grande desafio", diz Saraiva.


Ponto de encontro

Junto com Mário de Andrade e outros intelectuais, o bibliófilo Rubens Borba de Moraes (1899-1986) foi um dos grandes patronos da biblioteca municipal de São Paulo. Foi ele quem comandou a instalação do acervo no endereço atual, na Rua da Consolação, e até esboçou para o arquiteto francês Jacques Pilon a concepção do edifício art déco inaugurado em 1942.

Inspirado em modelos europeus, o projeto original já previa a construção de duas novas torres no futuro, quando a primeira não comportasse mais o acervo crescente. Mas essa solução foi abortada na administração Prestes Maia, conforme afirmou na época Borba de Moraes. Segundo ele, o prefeito, que herdou a contragosto a obra já em execução, eliminou essa parte do projeto, e assim condenou a biblioteca à saturação precoce.

A falta de espaço é um dos problemas que a intervenção do arquiteto Fábio Penteado, orçada em R$ 21 milhões, propõe-se a resolver. Ao lado disso e dos modernos recursos tecnológicos que protegerão e organizarão o acervo, prevê também novos fluxos de utilização para o lugar: espaços de convivência, cafés e a integração com a também revitalizada Praça Dom José Gaspar. O desejo de Penteado é recuperar o encanto do local, que, antigamente, "era um ponto de encontro obrigatório", como lembra, com saudade, o arquiteto.


Primeiro, o essencial

A proposta vencedora do concurso para ampliar e modernizar a Faculdade de Medicina da USP, realizado em 1999, lembra uma pintura abstrata. Assinada pelo escritório Andrade Morettin Arquitetos Associados, essa peça representa "mais uma estratégia que um projeto", como define o co-autor Marcelo Morettin.

Em outras palavras, os arquitetos optaram por repensar globalmente o espaço da faculdade e deixar os detalhes para depois. Agora, eles percebem o acerto dessa decisão: como a instituição reúne atividades extremamente diversificadas e especializadas, não era mesmo possível atender de antemão a todas as demandas.

O projeto, que consumirá R$ 29 milhões, custeados pelo governo estadual e pela iniciativa privada, modernizará radicalmente a infra-estrutura, medida indispensável para as dezenas de laboratórios de alta tecnologia que funcionam na faculdade. Além disso, ampliará a área construída e restaurará a fachada da chamada Casa de Arnaldo, o histórico edifício de estilo neogótico inaugurado em 1931 e tombado em 1981 pelo Condephaat.

A idéia-mãe da intervenção é reequilibrar arquitetonicamente o conjunto bastante heterogêneo que ao longo dos anos foi se constituindo em torno da Casa de Arnaldo. Isso será feito por meio da criação de uma praça central, que será o eixo principal de circulação e convívio do complexo.

 

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