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Futuro em jogo

A batalha do Brasil por mais espaço no mercado globalizado

No dia 8 de outubro de 2003, o Conselho de Estudos Jurídicos (CEJ) da Federação do Comércio do Estado de São Paulo (Fecomercio) reuniu-se para analisar a participação do Brasil na Organização Mundial do Comércio (OMC), na Área de Livre Comércio das Américas (Alca) e no Mercado Comum do Sul (Mercosul).

IVES GANDRA DA SILVA MARTINS – O tema que debateremos hoje é muito interessante, especialmente no momento em que se questionam as negociações do Brasil na OMC, na Alca e no Mercosul. Convidei o advogado Francisco Rezek, que fez um estágio de quatro meses na OMC, em Genebra, para falar de sua experiência, logo após a exposição do professor Antonio Carlos Rodrigues do Amaral, a quem passo a palavra.

ANTONIO CARLOS RODRIGUES DO AMARAL – A convite do ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim, participei da reunião da OMC em Cancún, como observador junto à delegação brasileira, nomeado pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, o que me permitiu conhecer a dinâmica dos debates internacionais naquele fórum.

O pensamento em torno da unificação dos mercados é antigo. Proudhon, no século 19, via o século 20 como o das federações, vislumbrando o fenômeno federativo americano do final do século 19 na formação de uma área territorial ampla, com liberdade de trânsito de pessoas, bens, serviços e capital, e moeda única. O mesmo se verifica no pensamento de Tocqueville, em Da Democracia na América. Ambos afirmavam que o século 20 seria de integração, de ampliação dos espaços territoriais.

Após a 2ª Guerra Mundial, os Estados Unidos injetaram grandes capitais na Europa, por meio do Plano Marshall. Surgiram também as primeiras instituições multilaterais, como a Organização das Nações Unidas (ONU), o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial (Bird). No âmbito europeu, foi firmado o acordo para o controle da produção do aço e do carvão, que foram os insumos da guerra. Uma Europa unificada, que diminuísse e eliminasse as barreiras tarifárias e não-tarifárias para o comércio no bloco regional que se formava, poderia fazer frente aos Estados Unidos, que surgiam como a grande potência do pós-guerra de um lado, com o leste europeu e asiático capitaneados pela União Soviética, de outro.

Ao final da década de 1950, firmou-se o Tratado de Roma, que criou a Comunidade Econômica Européia. Em 1947 havia sido fundado o Acordo Geral de Tarifas e Comércio (Gatt), que desembocaria na OMC (1995), propugnando o livre comércio e os acordos regionais. Como o comércio deveria fluir sem barreiras tarifárias, parecia um contra-senso a formação de blocos regionais. O Gatt, ao final da década de 1940, havia estabelecido critérios para a formação de blocos econômicos, como o conceito de área de livre comércio (em que países próximos faziam acordos preferenciais para comercializar), passando para uma união aduaneira com tarifa externa comum (o bloco negociava com outros países) e, num terceiro momento, a formação do mercado comum, com destaque para quatro pontos: o livre trânsito de pessoas, a liberdade de estabelecimento, o livre trânsito de bens e serviços, e o livre trânsito de capital, cujo ápice se deu com a criação do euro. Hoje há mais de uma centena de blocos ou acordos comerciais para livre comércio registrados na OMC, mas nenhum deles avançou tanto como o europeu. A formulação de uma política comum de agricultura teve início em 1962, com a subvenção da produção agrícola. Os europeus conseguiram assim firmar as pessoas no campo, com um nível de vida compatível ao dos moradores da cidade. É essa política agrícola que questionamos hoje.

O que ocorreu com a globalização das economias que nos levou a ter uma idéia negativa dela? Isso decorre de aspectos que não eram visualizados nas décadas de 1940 e 50. No século 19, a idéia da humanidade vivendo em conjunto não incluía alguns efeitos deletérios da unificação de mercados. No âmbito financeiro, por exemplo, a globalização foi rápida, avançando junto com os sistemas de telecomunicação e de computação. Vastas quantias financeiras, representadas por moeda virtual, circulam em segundos de um país para outro e podem causar distorções na estrutura econômica global. Esse fato ainda causa muita perplexidade. A grande fluidez dos meios financeiros torna difícil manter um controle rígido dessa moeda no trânsito internacional. Quanto aos benefícios decorrentes disso, a globalização se deu de forma assimétrica. Nos últimos 40 anos, ela pôde se qualificar pela regionalização das economias através de blocos comerciais, por áreas de livre comércio e uniões aduaneiras, que estimulam o comércio dentro do próprio bloco e com os demais.

Os países que estão fora desse movimento apresentam baixos índices de crescimento e indicadores sociais desencorajadores. Alguns decidiram assim, como Cuba e Albânia; outros, muito pobres, não tiveram condições sociais para participar desse mercado. No Brasil, a camada menos favorecida da população não desfruta os benefícios da globalização.

A OMC, que deveria ser o foro multilateral para o crescimento econômico, está presa a interesses protecionistas dos países ricos. Os agricultores europeus formam um dos grupos mais organizados. Os Estados Unidos também investiram na agricultura, promovendo crescimento social no campo. Na Europa, ingleses e alemães são importadores líquidos de gêneros agrícolas, e portanto não têm interesse no subsídio que a União Européia dá ao agricultor francês. Embora represente menos de 10% do comércio mundial, a agricultura mantém dois terços da população do mundo, e por isso fica em evidência.

Não houve avanço nas negociações nos anos 1990, mas o dia 11 de setembro de 2001 mudou um pouco a ótica dos países ricos. O norte-americano e o europeu perceberam sua fragilidade ante a população pobre do mundo e decidiram tentar incluí-la na globalização. A reunião da OMC em Seattle (1999) fracassara, devido às divergências entre países ricos e pobres. Um mês e meio depois do atentado ao World Trade Center, tivemos a Rodada do Desenvolvimento, de Doha, no Catar. O sentimento geral era de perplexidade, tristeza e medo. Os países ricos estavam decididos a estender às nações pobres os benefícios da globalização. Os três pilares do desenvolvimento colocaram em pauta a questão dos subsídios domésticos, o acesso a mercados e os subsídios à exportação. Cancún seria a oportunidade para avaliar essa política de desenvolvimento.

Os norte-americanos reduziriam seus subsídios à exportação, mas não queriam mexer nos referentes à produção. Robert Zoellick, secretário de Comércio dos EUA, disse: "Subsidiamos nossos agricultores, mas somos imensos doadores e os maiores compradores do mundo". Eles querem acesso a mercados, mas esperam que os outros países abram primeiro os seus. Já os europeus estão fechados em torno da questão agrícola.

Pascal Lamy, negociador francês pela União Européia, disse, em Cancún: "Nosso mandato dado pelo governo europeu não permite discutir subsídios agrícolas". Sem liberdade de negociação, criou-se uma situação bastante constrangedora. A idéia de urgência para a ajuda aos pobres, presente em Doha, ficou de lado. Guerra do Iraque, do Afeganistão, custos na economia norte-americana e européia, conflitos em Israel e Palestina, enfim, várias questões tiraram o foco dos debates pelo desenvolvimento.

O Brasil participou de uma forma interessante. No chamado G-21 estão China, Índia, Argentina, México, Venezuela e uma série de países, contando 65% da população mundial, o que sem dúvida tem peso. E o Brasil realmente liderou o grupo.

Na mesa de debates estavam a União Européia, comandada por Pascal Lamy, os Estados Unidos, com Robert Zoellick, e os países do G-21, liderados pelo ministro das Relações Exteriores do Brasil, Celso Amorim.

A idéia de fracasso da reunião de Cancún surgiu por razões, não se sabe até que ponto, de muita nobreza. Quando foram discutidas as condições de investimento, de transparência nas compras governamentais e nas regras aduaneiras, os países pobres, notadamente africanos, abandonaram o debate.

A partir disso, procurei relacionar o Brasil à questão da OMC/Alca, após Cancún e Port-of-Spain. Nessa linha de frustração, creio que o Brasil, num dado momento, deixou de ser propositivo. Os países ricos queriam aprovar um texto ambíguo de apresentação de suas idéias, e o Brasil, com o G-21, conseguiu tirá-lo da pauta. Mas não apresentou um segundo texto.

Nas negociações da Alca, nosso país defende a eliminação das regras antidumping norte-americanas, mas eles só as discutem na OMC, não na Alca. Os EUA propugnam a abertura de mercados, mas não querem, de fato, analisar o protecionismo. O Brasil precisa sair da defesa e ser propositivo, pois o mercado norte-americano é extremamente atraente. Receio que nosso país fique como ponta-de-lança na defesa dos fracos e oprimidos, enquanto estes negociam acordos bilaterais.

IVES GANDRA – O maior problema a meu ver não começa com o 11 de setembro. O primeiro grande choque do petróleo, em 1973, provocou mudanças nas relações econômicas do mundo. Os petrodólares passaram a representar a reserva de poupança no mundo, e os Estados Unidos adotaram o câmbio flutuante, gerando muita intranqüilidade no mercado. Na Rodada de Tóquio do Gatt, os Estados Unidos defenderam o protecionismo no comércio internacional, enquanto a Organização dos Países Exportadores de Petróleo (Opep) aumentava o preço do petróleo. Estávamos em 1972, e o barril, que custava US$ 2, foi para US$ 12 em 1973 e US$ 30 em 1979. Com o protecionismo, os países ricos defendiam também suas indústrias, finanças, e o combate à inflação. Assim, foram adotadas regras de protecionismo e não de livre comércio.

Com a queda do Muro de Berlim, em 1989, a tese da globalização ganhou campo, mas as nações dotadas de poder econômico definiam as regras. E a OMC, criada em 1995, não tinha poder para discutir a competitividade de produtos que faziam parte de uma reserva de mercado.

FRANCISCO JOSÉ DE CASTRO REZEK – O estágio que fiz na OMC, antes do encontro de Cancún, faz parte de um programa do Ministério das Relações Exteriores para o aprimoramento profissional de advogados que atuam em litígios no âmbito da OMC. A parte litigiosa da OMC relacionada ao Brasil é bastante intensa, e em quase todos os casos somos defendidos por escritórios norte-americanos. E o governo brasileiro pretende habilitar nossos escritórios de advocacia para atuar na OMC.

Paralelamente à questão do litígio, participamos também das negociações na OMC. Há várias áreas e escolhemos a agrícola, de extrema importância para o Brasil. Acompanhávamos como observadores, mas não fazíamos parte da mesa. Interessei-me pela negociação no setor de serviços, usado como um poder de barganha pelo governo brasileiro na questão agrícola. A União Européia e os Estados Unidos pressionavam o Brasil para liberalizar o mercado de serviços, incluindo a advocacia, em que os norte-americanos têm interesse em atuar. O governo brasileiro negociava tanto essa área como as demais, em função do que receberia na agricultura. EUA, Japão e UE, sem definir uma posição clara em relação à área agrícola, tentavam acelerar a negociação em outros setores. O Brasil encerrou essa disputa, afirmando que não cederia nas outras áreas sem a liberalização na agrícola.

Além do G-21, temos também uma liderança geral sobre os países em desenvolvimento. Reuniões bilaterais de outras delegações com a brasileira eram comuns, inclusive para pedir opinião em relação a diversas questões e à liberalização de alguns setores.

Não havia nenhum pacto de lealdade entre eles. Um dos diplomatas brasileiros afirmou: "Não há companheirismo aqui, o que existe é o interesse nacional". Em relação aos integrantes do Mercosul, há solidariedade. Quando um de seus membros começa a apanhar muito nas negociações, recebe apoio moral, mas sem maiores comprometimentos. Quando passa dos limites, esse apoio vem com o silêncio.

Quero mencionar a importância do G-21, que foi G-17, em relação à agricultura. No dia do conselho geral, foi apresentado o texto que seria encaminhado à reunião ministerial. Como ele não atendia aos interesses dos países em desenvolvimento, de um dia para outro a delegação brasileira reuniu 17 países e produziu um novo texto, que não foi aprovado. Não aceitamos um outro, apresentado pelo presidente, isso foi anotado, e as negociações em Cancún acabaram em fracasso. Na OMC prevalecem os interesses dos poderosos, e os países em desenvolvimento apenas se juntam para defender os seus. É aí que mora o perigo em relação ao G-21, que já começou a se desmantelar. Acho que o Brasil deve partir para negociações bilaterais.

FERNANDO PASSOS – Quando se libera o comércio no mundo, é paradoxal fazer acordos bilaterais ou de conjunto, tipo Mercosul, Nafta. Eles não têm sentido no ordenamento jurídico. O certo seria proibi-los, inclusive os multilaterais, dos quais estamos tratando. Esse é um problema quase sem solução, na estrutura da própria OMC.

Quanto à posição de liderança do Brasil, acho que ela está apoiada no Itamaraty, responsável por uma política exterior das mais competentes do mundo. Penso também que o país se fortaleceu, mesmo que o G-21 diminua. Com a Índia e a China de um lado numa negociação multilateral de comércio, é possível ganhar alguma coisa. Acho que o resultado em Cancún foi positivo.

IVES GANDRA – O problema não é o que foi positivo até o momento, mas o que vamos fazer agora. Se o G-21 começar a se desfazer, é bobagem pretender mantê-lo só porque o lideramos. Como disse Rezek, temos de partir para negociações bilaterais.

AGOSTINHO TOFFOLI TAVOLARO – Afinal, a quem interessa essa liderança? Será que ao Brasil, nessas condições? Sinceramente, a mim não parece. Temos uma liderança natural nos foros internacionais. Na International Fiscal Association (IFA), era normal que países da América Latina viessem me procurar, além do pessoal da Ásia, para conhecer nossa posição e pedir ajuda.

IVES GANDRA – O professor Agostinho Tavolaro foi vice-presidente da IFA. Primeiro e único brasileiro a exercer um cargo desse nível na instituição.

FERNANDO PASSOS – Era por isso que todos o procuravam.

AGOSTINHO TAVOLARO – Não, não. Noto isso em outros foros internacionais. Como disse Rezek, o Brasil é procurado para endossar idéias e compor com outros países. Mas não nos interessa liderar o pelotão dos desvalidos. Vamos agora à questão da agricultura, que é básica. Somos o maior produtor mundial de cana-de-açúcar, laranja e café, o segundo de soja em grão, milho, carne bovina e de frango, e o terceiro de frutas, de acordo com dados de 2001.

Por isso, precisamos discutir os incentivos domésticos existentes nos Estados Unidos. E pensar um pouco na Alca, que representa um PIB de US$ 11,5 trilhões, sendo US$ 9,3 trilhões dos Estados Unidos.

IVES GANDRA – Hoje já está em US$ 10,5 trilhões.

AGOSTINHO TAVOLARO – Estou citando os números lá de trás. O programa que Bush aprovou para negociar acordos diretamente, sem consultar o Congresso, deve repassar US$ 180 bilhões aos agricultores norte-americanos em dez anos. Eles não vão acabar com isso, e temos de defender nossa posição. Os tratados (Gatt e OMC) facilitam as coisas para quem tem poder, portanto, temos de entrar nos acordos multilaterais como esqueleto a ser utilizado. Vamos "comer pelas beiradas", como costuma dizer Edvaldo Brito.

Por isso, sem desprezar os tratados bilaterais, temos de entrar nos multilaterais. Um alerta: o Itamaraty é ótimo, nossos diplomatas são excelentes, mas os outros países não têm só diplomatas negociando, eles levam empresários para discutir tratados.

FERNANDO PASSOS – Atualmente é considerado improbidade administrativa levar empresários.

AGOSTINHO TAVOLARO – Na verdade, todo tratado internacional implica cessão de soberania. Temos a questão da China, que é um país de mão-de-obra barata. E queremos ser um país de mão-de-obra barata? Não é nosso pensamento, mas é a realidade que vivemos.

EDVALDO BRITO – O professor Tavolaro lembrou essa máxima de comer o mingau pela beirada, e eu cito mais uma: "Para quem está perdido, mato é caminho". Eu começo assim só para relembrar nossos problemas internos. Acho que estamos perdidos, enfraquecidos em relação ao resto do mundo. Os órgãos da mídia informam constantemente nosso grau de corrupção, e isso é um dado importantíssimo. Depois vem a Justiça morosa. Não sei qual delas é causa da outra.

Por fim, somos, sim, uma grande população, mas um pequeno mercado. Como as "quatro baleias" (China, Rússia, Índia e Brasil), as quatro grandes populações, não constituímos um grande mercado, pois temos uma pobreza enorme.

IVES GANDRA – Os economistas internacionais chamam de "as quatro baleias" os países que não podem ser abandonados pela comunidade internacional numa crise. Na prática, é a potencialidade do mercado que conta.

NEY PRADO – Os norte-americanos venderam a idéia de que a Doutrina Monroe atuaria em defesa da América, ante a hegemonia européia da época. Hoje, a Alca não é outra coisa senão a Doutrina Monroe com feições econômicas. E vamos cair na Alca, porque o grande mercado consumidor é o norte-americano.

AMÉRICO LACOMBE – Quero falar da questão da liderança, a qual, evidentemente, tem ônus e riscos. Se assim não fosse, o 11 de setembro não teria acontecido em Nova York, mas em Paris, Londres, São Paulo ou Buenos Aires. Aconteceu em Nova York porque os Estados Unidos têm uma liderança mundial.

Mesmo assim, a liderança interessa, porque faz o país ser respeitado. Vem retaliação no futuro? É um risco que se tem de correr. Se o Brasil foi aceito como líder é porque mereceu, e temos de assumir os ônus, mas também as vantagens decorrentes disso. Não se trata de liderar um pelotão de desvalidos, que seria composto de países africanos e do Caribe. Na realidade, os membros do G-21 representam a classe média entre as nações mundiais, tendo acima os Estados Unidos, Canadá, União Européia e Japão. Não devemos ter medo de retaliação, pois é um risco que precisamos correr.

Quanto à questão colocada por Edvaldo Brito, creio que a morosidade da Justiça é conseqüência da corrupção. Nunca houve interesse por parte dos poderes públicos de que o Judiciário funcionasse. Mais da metade dos processos que correm na Justiça são atravancados por seus advogados. Muitas vezes não interessa punir os corruptos e, quanto mais lenta for a Justiça, mais dificilmente isso acontecerá.

ELISABETH LIBERTUCI – Fiquei ponderando o que o conselheiro Américo Lacombe acabou de dizer e a colocação do conselheiro Agostinho Tavolaro. Enfim, essa liderança nos beneficia ou é apenas provocação? Gostaria de concordar que ela tem um lado positivo, não fosse o fato de que não temos um discurso doméstico coeso. O Brasil assumiu uma liderança internacional quando nem sequer consegue discutir problemas internos. Além disso, não consigo ver uma proximidade cultural do Brasil com Índia, Argentina e Cuba. E se essa liderança servir apenas como pano de fundo para provocar a União Européia e os Estados Unidos? Sem um discurso doméstico eficiente, o que vamos fazer com essa provocação?

Qual é a nossa política de estímulo à exportação para o setor agrícola? Aparentemente nenhuma. Não vi a reforma agrária conceder algum estímulo à agricultura e à produção. A campanha Fome Zero, que não sai do papel, não deixa de ser um discurso eminentemente retórico. Nesse cenário, tenho de assumir uma posição negativista em relação à liderança brasileira do G-21.

LUÍS ANTÔNIO FLORA – Doutor Rezek, como a OMC está vendo essa recente lei norte-americana do bioterrorismo? Podemos considerá-la uma barreira não-tarifária?

FRANCISCO REZEK – Durante o estágio em Genebra, não tivemos contato com a lei do bioterrorismo, portanto, não posso afirmar qual é a posição da OMC em relação a ela. Imagino que comporte barreiras não-tarifárias, mas não tenho uma opinião mais firme a respeito.

RODRIGUES DO AMARAL – O embaixador Rubens Barbosa tem alertado para essa discussão da legislação do bioterrorismo há alguns meses; e ela entra em vigor em dezembro. É uma questão complicada na regulamentação aduaneira, e é óbvio que coloca barreiras não-tarifárias.

Gostaria de frisar um aspecto sobre a questão da nossa liderança. Ela é real, mas congrega uma série de fatores. Por outro lado, somos a décima economia do mundo. Então é natural que o Brasil assuma essa posição.

IVES GANDRA – Décima primeira, pois perdeu posição para a Espanha.

RODRIGUES DO AMARAL – Mesmo assim, entre 197 países do mundo estamos à frente, e nos foros internacionais o Brasil exerce uma liderança legítima. E a competência do Itamaraty é ímpar, são pessoas da mais alta qualidade intelectual.

A questão é quando passamos de uma posição defensiva para uma propositiva. Robert Zoellick disse: "Abstraindo a questão dos subsídios agrícolas, o que podemos colocar de positivo na mesa?" Aí veio a resposta do G-21 e do Brasil: "Queremos que os senhores tirem os subsídios". "Sim, mas o que os senhores oferecem em troca?"

IVES GANDRA – Dariam algo em troca se houvesse a retirada dos subsídios, já que o documento estava condicionado a isso. Os norte-americanos querem avançar onde são competitivos, mas, onde nós somos, nem querem discutir. A agricultura representa quase 10% do PIB mundial, e, no caso brasileiro, é o elemento fundamental nas exportações. Em outras palavras, o que se estava discutindo era uma questão de sobrevivência.

RODRIGUES DO AMARAL – Minha preocupação é saber se construímos uma união apenas para dizer "não". Não sei se teríamos a mesma aceitação para dizer "sim", pois a China não quer mudar sua política de subsídios, a Índia quer manter seu mercado fechado, com mão-de-obra escrava. Não basta ser o líder, é preciso ter uma agenda. Hoje quem manda na Europa é o governo europeu, com seus 15 ministros das finanças. Os parlamentos desses países não servem para muita coisa mais. Então me parece mais fácil sentar com os norte-americanos e negociar, é melhor pegar um avião para Nova York do que para a Europa. Proponho uma liderança brasileira mais agressiva, que atinja com eficácia o mercado norte-americano; para isso, temos de oferecer algo em troca.

 

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