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O país precisa exportar
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"O comércio exterior é o caminho para o país reduzir sua vulnerabilidade"
RUBENS RICUPERO
No dia 28 de agosto de 2003 o embaixador e ex-ministro Rubens Ricupero esteve no Conselho de Economia, Sociologia e Política da Federação do Comércio do Estado de São Paulo, onde fez uma palestra, seguida de debate, com o tema "Como melhorar o desempenho exportador". Publicamos abaixo a íntegra da palestra. O debate pode ser lido na edição impressa da revista.
Minha intenção é trocar idéias sobre as exportações brasileiras, sem a pretensão de fazer uma explanação muito acadêmica. Vou vincular esse tema ao que é muito mais relevante, que é o futuro do Brasil, como uma sociedade em desenvolvimento, que busca retomar o crescimento, interrompido desde os anos 80 e prejudicado pela crise da dívida externa em 1992. A rigor, nunca saímos dessa crise, e continuamos ainda nos debatendo com o mesmo problema.
Hoje, falar em desempenho das exportações pode parecer quase supérfluo, porque o Brasil está conhecendo um momento positivo de expansão do comércio exterior. O saldo comercial tem crescido continuamente, e desta vez de forma mais saudável, porque já não se trata de um produto da queda das importações. Elas se estabilizaram em 2003 mais ou menos como estavam em 2002. Ao contrário, o saldo é resultado de um surpreendente aumento das vendas externas. No primeiro semestre de 2003 houve crescimento de 31%, em comparação com período idêntico do ano anterior. Raramente tivemos desempenho tão bom.
Alguém poderia perguntar: por que preocupar-se com isso, se os resultados são tão satisfatórios? Respondo que, analisando a questão mais de perto, este é exatamente o momento de ter cautela. Não nego o caráter positivo do que está acontecendo, mas é preciso fazer um pouco o papel de advogado do diabo e mostrar os fatores que nos levam a ser cautelosos.
O primeiro deles foi a queda muito acentuada na taxa real de câmbio em 2002. Nossa moeda sofreu grande desvalorização e, desde então, têm havido movimentos muito erráticos, ora o real se valoriza, ora se desvaloriza. Mas não há dúvida de que, apesar de uma relativa recuperação da moeda, o impulso que o câmbio deu foi muito importante, sobretudo a partir do segundo semestre, e ainda está se fazendo sentir. Aliás, devo dizer, e não é por vaidade, que há uns oito meses afirmei que o efeito da desvalorização da moeda no Brasil ia se fazer sentir pelo menos até setembro de 2003, e foi o que aconteceu.
Um sinal inicial, pelo menos amarelo, é o fato de o Banco Central estar sempre tentado a permitir que a moeda se valorize como instrumento de controle da inflação. Podemos ter problemas, porque uma série de produtos brasileiros com desempenho excelente no comércio exterior serão prejudicados. Entre eles, os móveis, que passaram a ter uma presença muito maior nas exportações, pois foram favorecidos pelo câmbio. O importante é nunca esquecer o que os asiáticos sabem há 30 anos: o primeiro segredo do comércio exterior forte é manter a moeda um pouco desvalorizada. Vejam o caso da China. Esse país tem um sistema de câmbio vinculado ao dólar, e o saldo que a China está começando a acumular com os Estados Unidos é astronômico. O saldo bilateral deverá alcançar US$ 100 bilhões em 2003. O Brasil talvez chegue a US$ 68 bilhões de exportações totais. Os chineses, para manter essa relação cambial, estão comprando US$ 600 milhões por dia, valor que agregam às reservas. Enquanto o Brasil tem reservas de US$ 12 bilhões a US$ 13 bilhões, a China – um país que há 20 anos exportava muito menos que o Brasil – está caminhando para US$ 400 bilhões.
O câmbio, então, é um elemento fundamental nessa melhora. Com o real a valorização da moeda foi utilizada como instrumento de controle da inflação e fez com que tivéssemos esse acúmulo de problemas. Espero que haja agora maior vigilância e que se tome cuidado sobretudo com o ingresso de capitais especulativos, chamados pelos economistas de capitais de arbitragem. Eles arbitram as taxas de juros, e o Brasil promete um futuro róseo para os especuladores nessa área. Então, é importante que o câmbio se mantenha em US$ 1 para R$ 3 a R$ 3,20. Qualquer valor muito abaixo disso sinaliza um perigo, que já começa a se apresentar.
Há outras razões também que incidiram nesse desempenho, as quais possivelmente não vão se repetir. Uma delas é um fenômeno estatístico, ou seja, a base de comparação em 2002 favoreceu essa taxa tão elevada no primeiro semestre de 2003. Mas há outros fatores que são menos positivos. Um deles é o nível da demanda interna, muito baixo, que está levando as empresas a buscar mercados externos. O PIB diminuiu 1,5% no segundo trimestre de 2003, e uma economia que encolhe sempre estimula as empresas a procurar vender no exterior. Esse fator explica tanto a estabilização das importações num nível baixo como o maior interesse em exportar.
O ideal seria ter um bom desempenho exportador, mas com um câmbio que continuasse estimulante, sem essas flutuações. Que tivéssemos esse bom desempenho com a possibilidade de importar mais, até para reequipar nossa indústria, e que estivéssemos crescendo mais e tendo mais oferta tanto para o mercado interno como externo.
Feita essa introdução, penso que é o momento de nos perguntarmos o que é um bom desempenho exportador. E ligar isso à economia como um todo. De que maneira ele está vinculado a outros objetivos desejáveis? Obviamente, a geração de um saldo comercial apreciável não é finalidade em si mesma, mas uma meta a ser perseguida porque terá impacto favorável em outros objetivos, como a taxa de crescimento da economia, a capacidade de reduzir a pobreza. Então temos de procurar inserir o comércio exterior num panorama mais amplo, não deixá-lo como uma espécie de setor segmentado.
O desempenho exportador não é bom apenas quando permite o crescimento da quantidade de exportações. É claro que quantidade também é importante. O Brasil, por exemplo, ainda exporta pouco. A meta para este ano é de US$ 68 bilhões, talvez algo mais, mas é muito pouco. A Coréia do Sul, que é do tamanho de Pernambuco, exporta muito mais do que isso. A Tailândia, do tamanho de Minas Gerais, exporta mais ou menos isso. O México, quase três vezes essa quantia. Portanto, temos de começar pela constatação de que a quantidade que exportamos ainda é pequena.
Segundo aspecto: o México conseguiu triplicar as exportações em sete anos. Em 1993 e 1994 exportava mais ou menos o mesmo que o Brasil hoje. Atualmente, vende no exterior quase US$ 160 bilhões. O interessante é observar que isso não representou para aquele país uma taxa de crescimento significativamente maior que a nossa. Ele cresceu mais que o Brasil apenas marginalmente. Ou seja: o aumento das exportações não garante que se vá obter uma taxa de crescimento mais acelerada da economia.
Outro aspecto que é preciso ter presente para evitar conclusões precipitadas é o fato de que o crescimento das exportações também não tem relação linear direta com a melhoria das condições sociais. Pode ter com o aumento do emprego. Voltando ao exemplo do México, lá existe um nível de desemprego muito menor que o nosso. Mas isso não significa que tenham conseguido melhorar muito em termos de redução da pobreza. O México tem cerca de 100 milhões de habitantes, dos quais 54 milhões são considerados pobres e 23 milhões indigentes.
Esses dados não deveriam surpreender, porque no final dos anos 1960, começo dos 1970, quando o ministro Delfim Netto teve muito sucesso ao expandir a exportação de manufaturados, isso não se traduziu em benefício social perdurável. Assinalo esse fato para que não passemos de um exagero a outro. Antigamente, éramos indiferentes às exportações, e agora podemos cair no extremo de achar que elas vão resolver todos os problemas, e não é o caso.
Qual seria então o passo seguinte? É reconhecer que as exportações devem melhorar não só quantitativamente, mas qualitativamente. O conteúdo das vendas externas, a composição do comércio exterior tem uma importância fundamental. Em outras palavras, o tipo de exportação mais desejável e o desempenho exportador que queremos para o Brasil é aquele que gere um crescimento em volume a uma taxa satisfatória, mas ao mesmo tempo que seja o reflexo da melhoria contínua na cadeia de valor agregado.
Com isso não estou menosprezando os produtos que têm pequeno valor agregado. Há países que cresceram no início vendendo commodities. Até hoje, 60% das exportações da Austrália vêm das commodities, embora eles tenham produtos de que não dispomos, como carvão siderúrgico, que sempre cresce em valor, mesmo em épocas de recessão, porque a oferta pode ser controlada. A verdade é que não podemos desprezar nenhum tipo de produto, mas devemos visar sempre o mais nobre.
Não se deve, entretanto, confundir valor agregado com alto teor tecnológico. Exportar produtos eletrônicos não significa vender valor agregado, quando se tem apenas uma linha de montagem. Há países que são linhas de montagem, como o México em muitas áreas. Grande parte do sucesso mexicano vem das chamadas maquiladoras. Na fronteira desse país com os Estados Unidos há fábricas construídas metade de cada lado. Os caminhões desembarcam os insumos do lado norte-americano, a alfândega tem um representante no meio da fábrica, no outro lado a força de trabalho mexicana monta os produtos que em seguida voltam para distribuição em território norte-americano. Nesse aspecto nunca poderemos competir com o México, porque não temos fronteira comum com os Estados Unidos.
Não quero passar a idéia de que tudo no México funciona assim, seria uma simplificação absurda. Existem empresas mexicanas que são de porte mundial, eles têm coisas admiráveis, inclusive em tecnologia. Mas o grosso das exportações, durante muito tempo, veio desse mecanismo. Em alguns produtos, por exemplo, o valor agregado não chegava a 3%.
No caso do Brasil, gostaria de saber qual é realmente o valor agregado nesses bens de maior conteúdo tecnológico que estamos exportando, como equipamentos de telecomunicação ou mesmo aviões da Embraer. A questão do valor agregado é muito importante para que o efeito das exportações se faça sentir em todo o corpo da economia. O bom produto com alto valor agregado é aquele em que o fabricante tem uma rede de supridores locais. Se ele apenas importa o insumo e usa mão-de-obra barata para a montagem, o risco é muito grande. O México, do ano 2000 para cá, perdeu de 200 mil a 300 mil empregos, porque não conseguiu mais competir com a China, onde o custo médio de uma hora de trabalho por operário é de 27 centavos de dólar – um quarto do que é no México e mais ou menos um quarto do que é no Brasil.
O que precisamos é de empresas, nacionais ou estrangeiras, que utilizem aqui não só a mão-de-obra pouco qualificada, mas também supridores locais e insumos brasileiros. É claro que não defendo o que se fazia no passado, quando se exigia índice de nacionalização. Isso hoje é ilegal, de acordo com as regras da Organização Mundial do Comércio (OMC). Mas temos de criar condições para o suprimento de insumos competitivos.
O que interessa a um país como o Brasil é um tipo de desempenho exportador que aproveite todas as vantagens que temos, inclusive dos produtos básicos de pequeno valor agregado, como minérios e café em grão. Mas é preciso procurar patamares mais satisfatórios em termos de valor agregado, o que não significa necessariamente apenas produtos de altíssima tecnologia. O Quênia foi um grande produtor de café e hoje é o maior fornecedor de flores ao mercado europeu, além de exportar legumes e frutas. Os legumes saem de lá já embalados e com o preço fixado eletronicamente, e seguem diretamente para as gôndolas do supermercado londrino. Isso é valor agregado. Não precisa haver tecnologia de ponta, basta haver trabalho embutido no processo todo de exportação. Como são exemplo de valor agregado os pratos elaborados e exportados pela Sadia, em vez de apenas carne com osso. Vender carne sem osso já é valor agregado, como exportar salmão sem espinha. Não precisamos ter o nível tecnológico da Suíça para poder melhorar o valor agregado.
O importante para o exportador brasileiro não é, portanto, só a quantidade, mas a qualidade que vem da melhoria gradual do valor agregado. Hoje em dia não é mais possível, como se fez na implantação da indústria automobilística, fixar por decreto o índice de nacionalização. Estamos conseguindo ainda, graças a alguns prazos obtidos na OMC, escapar de sanções na área automobilística, mas isso vai acabar em pouco tempo. Temos de pensar em soluções mais perduráveis, que resultem de aumento de nossa competitividade, que vem de um complexo de fatores. De uma forma simples, ela depende, além do que já citei no caso do câmbio e das exportações, do custo do capital e da transação. O custo do capital no Brasil infelizmente é muito alto. Li com certo espanto declarações de alguns economistas segundo os quais, devido a problemas estruturais, não podemos baixar a taxa real de juros, descontada a inflação, abaixo de 8% a 10%. Se fosse verdade, significaria condenar o país à inviabilidade. O Chile tem uma taxa nominal de juros de 2,88% ao ano. A Argentina, de 6% ou 7%. O México, de 3% a 4%. A Índia, que tem um déficit somado do governo central e dos estaduais de 10% do PIB, cresce a 6% ao ano e tem uma inflação menor que a nossa, apresenta juros de 4%. Será que esses países não têm problemas estruturais? Será que só no Brasil essas questões impedem a queda da taxa de juros?
Deve-se desconfiar muito dessas declarações feitas por pessoas do mercado financeiro. Uma grande praga que estamos vivendo é o predomínio da mentalidade financista. Não sou só eu quem pensa assim. Em fevereiro de 1995, a revista "The Economist" publicou um dossiê sobre o Brasil, muito bem-feito, cuja leitura recomendo a todos. Uma das coisas que diziam no documento, com a qual concordo plenamente, é que era uma pena que no país os melhores cérebros, os mais brilhantes, fossem todos para o mercado financeiro, que não era a área em condições de resolver os problemas brasileiros. A revista dizia: hoje em dia não há capitães de indústria. Antigamente, os grandes exemplos eram os capitães de indústria, sujeitos que desbravavam, que criavam, que construíam fábricas, que produziam coisas novas. Hoje, as pessoas vão para o mercado financeiro para ficar ricas em um ano.
Confesso que, como brasileiro que vive fora do país há muitos anos, preocupo-me com o predomínio, dentro e fora do governo, da mentalidade financista. Ela é perigosa porque condena o país a não crescer. Isso tem uma primeira conseqüência: o Brasil se torna inviável. É o que estamos vendo aí, criminalidade, invasões de terra e de prédios, isso vai se multiplicar por cem ou por mil, a não ser que haja repressão brutal. Por quê? Porque não há emprego. Estamos com taxa de desemprego de 13%. Esse é o problema central da sociedade brasileira. O Brasil é o único país do mundo que tem um êxodo rural às avessas. No mundo inteiro as pessoas saem do campo, aqui elas querem voltar para ele. Porque não têm emprego.
Com um crescimento medíocre, não há como reduzir a taxa de desemprego. Estamos condenados a conviver com isso de uma forma permanente. A única saída é, evidentemente, acelerar o desenvolvimento. Países de dimensão continental como a China, a Índia e a Rússia estão todos crescendo pelo menos 5% ao ano. Não vejo por que só nós não teríamos condições estruturais para ser como eles. Digo isso porque há uma ligação entre emprego e crescimento, e essa ligação é o eficiente desempenho exportador. Com um bom saldo comercial, poderíamos reduzir consideravelmente o déficit em contas correntes. É claro que há limites, porque em contas correntes temos de pagar todos os serviços em que somos ainda pouco eficientes, mas precisamos chegar a um ponto em que isso possa ser financiado pelos capitais produtivos que ingressem no país.
Portanto, não há dúvida nenhuma de que o comércio exterior é o caminho para a nação reduzir sua vulnerabilidade em relação ao mercado financeiro. Não digo eliminar a dependência de capitais externos, o que seria absurdo. O melhor investimento que deveríamos perseguir seria de um tipo que tivemos pouco ultimamente, não tanto o capital que vem das privatizações, não tanto o que vem para serviços financeiros, ou para comprar empresas brasileiras preexistentes, mas o que é denominado internacionalmente greenfield, quer dizer, um campo verde onde não há nada e se constrói alguma coisa.
Hoje em dia, devido a nossa vulnerabilidade financeira, esse capital é castigado e estamos favorecendo o de curto prazo. O capital produtivo tem de pagar todos os impostos brasileiros, inclusive esses que incidem em cascata, enquanto o especulativo está praticamente isento de tudo. Antigamente tínhamos taxas de 25%, mas o Banco Central foi pressionado a reduzi-las cada vez mais, devido ao desespero provocado pela falta de recursos.
Recentemente encontrei um empresário de São Paulo que dirige uma grande companhia alemã de autopeças do grupo ZF, um investimento greenfield. Eles estão exportando 19% da produção e estão crescendo, apesar da conjuntura desfavorável. Devido à desvalorização da moeda brasileira, estão usando cada vez mais fornecedores nacionais. Portanto, é o tipo do capital que interessa ao Brasil. Perguntei a ele qual foi a dificuldade maior, o pior problema que teve para implantar aqui a indústria. Respondeu-me que o que mais lamentou foi ter de pagar o imposto de importação sobre os bens e equipamentos. Lembrei que a lei prevê isenção para esses casos, mas ele disse que é tudo muito complicado. É preciso provar que não há similar nacional, o Sindicato Nacional da Indústria de Máquinas (Sindimac) tem de concordar, e sempre aparece um fabricante que acha que tem um equipamento que é mais ou menos parecido, mas não é, porque são peças de precisão. Então ele preferiu pagar o imposto.
Vejam como é tratado o pessoal que gera empregos. Uma vez li um artigo no "Financial Times" que era um prodígio de cinismo. Nele se discutia, um pouco antes de uma dessas nossas crises, se era o momento de os investidores, que são os especuladores, tirarem o dinheiro do país. E o artigo dizia: "A festa continua, você pode ficar no baile, mas é bom dançar perto da porta de saída". Essa é a mentalidade. É isso o que estamos estimulando.
Não quero ofender ninguém, tenho grandes amigos banqueiros. Mas o financista não é propriamente um homem que constrói o país. Não há nenhuma nação no mundo desbravada e construída por financistas. Temos de retomar a idéia de que precisamos crescer.
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