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O povo entra em cena


Favela São Remo vista da USP: muro impede acesso ao lazer / Foto: Leonardo Sakamoto

Movimentos populares vencem barreiras em busca de cidadania

LEONARDO SAKAMOTO

Logo após a fundação da vila de São Paulo de Piratininga, José de Anchieta, com a ajuda de índios catequizados, ergueu um muro de taipa e estacas para ajudar a mantê-la "segura de todo o embate", como descreveu o próprio jesuíta. Os indesejados eram índios carijós e tupis, entre outros, que não haviam se convertido à fé cristã e, por diversas vezes, tentaram tomar o arraial, como na fracassada invasão de 10 de julho de 1562. Ao longo dos anos, a vila se expandiu para além da cerca de barro, que caiu de velha. Vieram os bandeirantes – hoje considerados heróis paulistas –, que caçaram, mataram e escravizaram milhares de índios sertão adentro. Da África foram trazidos negros, que tiveram de suportar árduos trabalhos nas fazendas do interior ou o açoite de comerciantes e artesãos na capital. No início do século 19, a cidade tornou-se reduto de estudantes de direito, que fizeram poemas sobre a morte e discursos pela liberdade. Depois cheirou a café torrado e a fumaça de chaminé, odores misturados ao suor de imigrantes, camponeses e operários. Mas, apesar da frenética transformação do pequeno burgo quinhentista em uma das maiores e mais populosas metrópoles do mundo, centro financeiro e comercial da América do Sul, a barreira ainda existe, agora invisível. E, hoje, 450 anos após a fundação de São Paulo, impede o acesso dos excluídos à cidadania.

Mas não se pode dizer que a história da cidade tenha sido marcada pela passividade das classes mais pobres. Se houve melhora na maneira como o poder público as trata, isso se deve à mobilização, pressão e luta dos movimentos populares, que saíram da clandestinidade com o fim da ditadura militar. Mesmo assim, a violência não deixou de ser utilizada para reprimir atitudes de "insubordinação", como ainda acontece na retirada à força de famílias de imóveis ocupados na região central ou de terrenos da periferia.

O Brasil, quinto maior país do mundo em extensão territorial e em população, é quase um continente. A capital paulista, com seus mais de 10 milhões de habitantes, equivale a um estado. Se vivêssemos numa pequena comunidade democrática, poderíamos participar diretamente da solução de todas as questões que afetam nossa vida. Entretanto, como isso é inviável, temos de ser representados por políticos que defendam nossos interesses nas tomadas de decisão em instâncias públicas. Ainda assim, cada pessoa pode e deve ter influência direta em assuntos que atingem sua realidade, num contínuo processo de descentralização do poder.

A Carta Magna aprovada em 1988 deixa bem claro em seu primeiro artigo, parágrafo único: "Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição". Com base nesse princípio, a população está legalmente habilitada a compartilhar decisões e responsabilidades com o poder público – como se vê nos conselhos gestores, nos orçamentos participativos e em parcerias firmadas entre organizações da sociedade civil e o governo. E para que as pessoas pudessem se organizar, tanto para desenvolver projetos próprios quanto para pressionar o Estado para que efetivamente respeite os direitos sociais, foram surgindo espaços públicos de discussão, como por exemplo as Pastorais, ligadas à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), órgão da Igreja Católica, o Movimento Sem-Teto do Centro (MSTC) e os fóruns de cultura do município de São Paulo.

A reportagem de Problemas Brasileiros percorreu, de julho a setembro de 2003, mais de 3 mil quilômetros na periferia da cidade, e constatou que a população pobre e carente está, aos poucos, procurando tomar as rédeas de seu futuro e alterar uma herança de 450 anos de injustiça social. E como exclusão não obedece a nenhum zoneamento urbano, aqui periferia extrapola o sentido estritamente geográfico para assumir um significado mais amplo, abarcando a grande massa de pessoas espalhadas por toda a cidade que nunca tiveram a oportunidade de vivenciar a cidadania em sua plenitude. Gente como Rodrigo, Simone, Luciana, Maurantonia, jovens autores das cartas reproduzidas ao longo desta reportagem. Todos eles estão do lado de fora do muro que separa a cidade legal – com boa qualidade de vida – da ilegal, em que o acesso a uma existência digna ainda é precário.


Participação

A população assume poder institucional e decide o próprio caminho

Os conselhos são um espaço em que governo e sociedade civil discutem políticas públicas e sua implantação, e estão presentes desde o âmbito local – na escola, no posto de saúde –, até o municipal, onde reúnem representantes de vários distritos. Alguns são obrigatórios, exigidos por leis federais, mas cada município pode criar os que julgar necessários. Em São Paulo, há conselhos em áreas como, por exemplo, segurança urbana, moradores de rua, parques, idosos, etc. E, na Câmara dos Vereadores, há projetos para implementação de vários outros, como os das creches e dos Centros Educacionais Unificados (CEUs).

O Orçamento Participativo (OP) também é uma espécie de conselho. Porém, em vez de debater intervenções em áreas específicas, discute qual será o destino das verbas do município – no caso de São Paulo, não há representantes do governo com direito a voto.

Mas quem são os participantes desses conselhos que deliberam sobre o futuro da cidade? Em sua maioria, entidades civis e organizações não-governamentais (ONGs) e, em menor número, indivíduos com atuação independente. De acordo com Adrián Lavalle, professor de Ciência Política da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e pesquisador do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), essas organizações são atores com capacidade de agregação de interesses e de representação. Em outras palavras, são porta-vozes de grupos de pessoas que compartilham as mesmas opiniões. Um bom exemplo é a rede de organizações que atuam no combate à Aids e ajudaram a transformar o Brasil em modelo mundial em saúde pública nessa área.

Lavalle é responsável por uma extensa pesquisa do Cebrap a respeito do papel da sociedade civil nas decisões políticas em São Paulo. Uma das conclusões do estudo refere-se ao fato de que os integrantes dos conselhos e do OP têm importantes ligações com partidos políticos e com o Estado. Vale lembrar que as lutas pelo direito de participação popular surgiram no interior dos movimentos de esquerda, mas esse vínculo não implica perda de independência na tomada de decisões. Isso é comprovado pelos enormes embates entre esses atores e o Partido dos Trabalhadores (PT), amplamente retratados pela mídia desde que o partido assumiu o governo federal.

Futuro

Com a crescente influência da população no processo decisório, o sistema de representação, com parlamentares eleitos pelo voto, chega a uma encruzilhada. "Quando surge um espaço em que a figura de um mediador, que é o político, torna-se dispensável, as pessoas passam a dizer: ‘Eu tenho poder, também posso tomar parte nas decisões’ ", afirma Ana Cláudia Chaves Teixeira, coordenadora de projetos do Instituto Pólis, ONG que atua no setor de participação popular.

O conflito entre esse poder que emerge e o convencional já apresenta reflexos na própria Câmara dos Vereadores. O compromisso da prefeita Marta Suplicy de instituir conselhos de representantes em cada subprefeitura, com poder decisório e membros eleitos pelo povo, até agora não pôde ser cumprido. Há vereadores que acreditam que perderão influência com essa mudança e pressionam o governo para que haja um esvaziamento do projeto, ou seja, nada de eleições diretas ou conselhos com poder deliberativo. Alguns temem ficar sem o instrumento clientelista de poder asfaltar uma determinada rua e não outra, empregar conhecidos e correligionários...

A aprovação do projeto de lei 1/2001, que institui esses conselhos, depende de 28 dos 55 votos da Câmara, mas enfrenta muita resistência – inclusive na base governista. Vale lembrar que, historicamente, a indicação por vereadores de subprefeitos (no passado, de administradores regionais) tem funcionado como moeda de troca, usada para garantir apoio político à prefeitura.

"Esse conflito é um problema para as instituições políticas tradicionais, que obviamente se recusam a ceder poder. Mas, se tudo der certo, talvez consigamos cristalizar novas formas de representação de interesses que ampliem a participação popular", afirma Lavalle. "Essas novas modalidades de atuação surgiram após a promulgação da Constituição de 1988. É pouco tempo para uma história de 500 anos de um Estado que foi se formando com perfil autoritário, permeado de corrupção e com uma máquina pública que opera de maneira não transparente", conclui Ana Cláudia. Ela aposta que a experiência dos conselhos e do Orçamento Participativo poderá resultar em uma efetiva partilha de poder no futuro.


Moradia

Mobilização popular é a principal responsável pelas políticas públicas de habitação

Apesar da chuva intermitente de um sábado de setembro, cerca de 500 pessoas trabalhavam num mutirão no Itaim Paulista – bairro da Zona Leste distante mais de 50 quilômetros da planejada região dos Jardins. O conjunto habitacional está sendo erguido no alto de um morro, cercado de um lado por uma empresa de ônibus – da qual muitos desses pedreiros amadores são funcionários – e do outro por um CEU. A construção dos 508 apartamentos com dois dormitórios, sala, cozinha, banheiro e área de serviço foi viabilizada por uma parceria com o governo estadual. O trabalho segue contínuo, com costureiras peneirando areia, ambulantes carregando blocos, vendedores preparando o cimento e pedreiros erguendo as paredes.

Somente no Natal, no ano-novo e na sexta-feira santa não há mutirão. Francisca de Souza, de 45 anos, peneirava areia naquela tarde de sábado. Com dois filhos casados, mora apenas com o marido, motorista da Viação Penha, e desembolsa R$ 350 por mês de aluguel. Se não fosse o mutirão, ela diz que continuaria pagando para morar até o final da vida.

"O mutirão é um sacrifício que as pessoas enfrentam porque não têm outra alternativa", explica Dalcides Neto, coordenador do Movimento de Moradia da Zona Leste (MMZL), que reúne a Pastoral da Moradia e a Central de Entidades Populares e atua em 42 comunidades da região, num total de dez bairros. Além do canteiro de obras do Itaim Paulista, há outros 308 apartamentos em construção em Cangaíba, 200 no Jardim Naceja e 560 em Cidade Tiradentes, aos quais se somam 20 sobrados em São Miguel. Até setembro de 2003, os mutirões dessas organizações já haviam entregado mais de 5,6 mil moradias. Um respeitável currículo para o MMZL, que completa 20 anos de vida em 2004.

Há parcerias estabelecidas com os governos municipal, através da Companhia Metropolitana de Habitação de São Paulo (Cohab), e estadual, por intermédio da Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano (CDHU). Os mutirões são tocados em sistema de autogestão, ou seja, os recursos são transferidos para as entidades que erguem os conjuntos habitacionais. Nos acordos com a prefeitura, o MMZL fica responsável por todas as etapas da construção, da terraplanagem até a organização das contas do condomínio, com os moradores já nos apartamentos. O governo estadual, por sua vez, assume a execução de algumas etapas do processo nas parcerias firmadas, como é o caso do conjunto que está sendo erguido no Itaim Paulista, o que tem provocado críticas. "Seria mais rápido se recebêssemos os recursos para fazer tudo", diz Neto. "O sistema de autogestão prevê a contratação de mão-de-obra qualificada, como mestre-de-obras e eletricistas, enquanto o mutirante trabalha apenas como ajudante. Nós nos preocupamos com a qualidade, ao passo que as construtoras se interessam apenas pelo lucro", completa ele.

Está previsto em lei estadual o investimento de 1% do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) em construção de moradias. Desse montante, pelo menos 10% devem ser direcionados aos mutirões – pouco para movimentos populares que afirmam ter capacidade para construir mais, melhor e mais rápido que a máquina estatal. A prefeitura, por sua vez, destina 2,5% de sua arrecadação total para moradias populares, na maioria dos casos em regime de mutirão.

Infelizmente, não há integração entre essas duas esferas de poder. Cada uma desenvolve um programa próprio de construção de moradias populares, sem nenhum planejamento comum. "Há uma competição pública eleitoral, em que a população não é beneficiada", afirma Neto. Ele diz que melhor seria se os recursos fossem todos transferidos aos municípios, já que o poder local está mais próximo dos moradores.

Apesar dos mutirões, o acesso das populações carentes à moradia própria tem um sério problema: financiamento. Arrastam-se há anos as discussões sobre a criação de um fundo nacional para habitação, com recursos do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS) e do orçamento da União, com uma reserva para bancar aquele que não puder pagar as mensalidades do apartamento novo. De acordo com Neto, uma pesquisa realizada pelo movimento mostra que cerca de 80% das famílias das 42 comunidades participantes recebem menos de três salários mínimos, ou seja, estão fora dos programas de financiamento habitacional existentes. Ou seja, quem mais precisa é excluído do planejamento estatal.

"Se o fundo nacional estivesse aprovado, poderíamos gerar milhões de empregos e estancar a migração de pessoas que vão em busca de uma vida melhor em outras regiões", afirma Neto. Lisete Gomes, uma das coordenadoras do MSTC, concorda com ele. "Estamos pressionando o governo para que atenda às pessoas de baixa renda. O Programa de Arrendamento Residencial (PAR), da Caixa Econômica Federal (CEF), não é bom, pois destina-se a famílias que ganham mais de três salários mínimos." Além disso, o teto de financiamento do PAR é de R$ 32 mil, insuficiente para comprar um imóvel no centro da cidade.

Ocupações

Pensativa, Lisete tenta encontrar uma explicação para o que aconteceu na madrugada do dia 7 de setembro de 2003, quando um incêndio consumiu cinco andares de um edifício na Rua Brigadeiro Tobias. Por trás, o prédio fica encostado ao de número 700 da Avenida Prestes Maia, ambos ocupados pelo MSTC. Naquela noite, uma menina de 4 anos morreu, e 72 famílias perderam tudo.

"Ouvimos barulho de vidros se quebrando. As labaredas eram enormes. Se os bombeiros tivessem agido como fazem em prédios da classe alta, como já vi acontecer, não teria queimado tanto", lembra Lisete. Com a interdição do prédio que pegou fogo, seus antigos ocupantes foram se abrigar no edifício da Prestes Maia. Resultado: 468 famílias espremidas em 18 andares. Uma área de 28 metros quadrados abrigava entre duas e três famílias. Senhoras idosas e doentes subiam e desciam lentamente as escadas, pois não existe elevador.

Ocupados desde novembro de 2002, os dois prédios foram desapropriados pela prefeitura e, ironicamente, a publicação no "Diário Oficial" ocorrera um dia antes do incêndio. Avaliados em R$ 3,5 milhões e com dívidas de R$ 3,7 milhões relativas a Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU), os imóveis foram alvo do Decreto de Interesse Social (DIS), uma vez que estavam vagos havia anos e não vinham cumprindo sua função social, como exige a Constituição. Após uma reforma completa, que será financiada pela CEF, 249 unidades de um ou dois quartos serão entregues às famílias. Os demais moradores terão de continuar na luta por um lugar para morar.

Assim como esses, no centro da capital existem muitos outros imóveis fechados e com enormes dívidas em impostos. De acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e da Fundação João Pinheiro, o município de São Paulo possui 420.327 unidades vagas (11,8% do total) e um déficit habitacional de cerca de 380 mil domicílios. Em todo o país, há 4,6 milhões de imóveis vagos e uma demanda de 6,6 milhões de moradias. No centro de São Paulo, há 39.289 unidades vazias, muitas delas por especulação imobiliária.

Por que a área central da cidade é o alvo preferido de muitos movimentos de moradia hoje? "Porque lá já existe tudo, não é preciso levar estrutura. Há escola, hospital, cultura... Ninguém vai pagar quatro conduções a uma empregada diarista que mora na periferia", explica Lisete. Além daquela ocupação na região da Luz, há outras em Santa Cecília (107 famílias), duas na Avenida 9 de Julho (228) e uma próximo da Estação Bresser do metrô (17). O único grupo do MSTC que não está na região central é aquele acampado num terreno na Avenida Águia de Haia, na Zona Leste.

Além da desapropriação, há outras formas de impedir que a especulação imobiliária faça mais sem-teto. De acordo com o vereador Nabil Bonduki (PT), que é também professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, a aplicação de um IPTU progressivo, que aumenta proporcionalmente ao tempo em que o imóvel permanece fechado, "vai fazer com que os proprietários pensem duas vezes antes de cobrar um valor muito alto pelo aluguel". Proposto no plano diretor da cidade, esse mecanismo aguarda regulamentação.

A recuperação da área central de São Paulo não se restringe a uma valorização funcional e estética das ruas, edifícios e bens culturais, como defendem algumas organizações empresariais. Inclui também o repovoamento do local, trazendo vida à região, com incentivos para o estabelecimento das classes média e baixa.

Há projetos governamentais com esse propósito, mas Lisete avalia que as três esferas de poder não estão empenhadas como deveriam na solução do problema e demoram a entrar em ação. "Coisas que eles fazem hoje eram reivindicadas pelo movimento há muito tempo." A atuação do MSTC se assemelha à do Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST), que pressiona as autoridades por uma solução e ocupa imóveis que julga improdutivos. A validade das ocupações constitui uma longa e polêmica discussão, mas o fato é que muitas iniciativas e políticas públicas não teriam surgido sem a pressão popular.

Um fato que salta aos olhos é a expressiva participação da mulher nesses movimentos. A coordenação do MSTC é composta por dez pessoas, todas do sexo feminino. Além disso, dos 16 representantes populares do primeiro mandato do Conselho Municipal de Habitação, 12 são mulheres. Uma delas, Marilei Santana, coordenadora executiva do MMZL, foi a conselheira eleita com a maior votação: 14.267. Número expressivo, principalmente se considerarmos que o voto não é obrigatório.


Saúde e meio ambiente

O objetivo é conquistar melhor qualidade de vida

Num imenso buraco no município de Itapecerica da Serra, na divisa com São Paulo, fica o Jardim Jacira. Como muitos outros distritos pobres da região metropolitana, teve origem na beira de um córrego, num terreno acidentado e de baixo valor imobiliário. Não dispõe de sistema de esgoto, embora esteja próximo de uma região de mananciais – fica a menos de um quilômetro da Represa de Guarapiranga, que abastece de água a capital. Já foi considerado um dos locais mais violentos da Grande São Paulo, com toques de recolher dados por bandidos e avisos para que médicos andassem de branco para não ser confundidos com inimigos.

Na parte mais baixa do bairro – uma área de charco –, fica o posto de saúde. "No passado, o córrego chegou a transbordar e a água subiu pelo esgoto, inundando o prédio", lembra Myres Maria Cavalcanti, a coordenadora do posto.

A situação começou a mudar quando os moradores passaram a tomar parte nas decisões sobre a política de saúde da região. Cada unidade de atendimento, tanto em Itapecerica quanto em São Paulo, tem um conselho gestor composto pela administração e por representantes dos funcionários e da população. Os moradores, que são eleitos para um mandato de dois anos, se reúnem pelo menos uma vez por mês e não recebem remuneração pela participação. E os pleitos são levados a sério, com formação de chapas e até campanha. Os direitos e deveres do conselho relacionam-se a questões de saúde e saneamento, prestação de contas e formulação de políticas públicas. Por exemplo, surgiu no Jardim Jacira uma demanda da população, que resultou mais tarde na criação do Hospital Geral de Itapecerica.

"Desde que o conselho decidiu que era necessário um acompanhamento mais rigoroso do pré-natal, estamos conseguindo atender 100% das gestantes, antes mesmo que o governo federal tivesse exigido isso. A mulher grávida tem prioridade, e no mesmo dia faz a consulta e todos os exames", afirma Myres. Essa mudança, que não custou nada aos cofres públicos, já mostrou reflexos na queda dos índices de mortalidade infantil e de morbidade materna.

Em agosto, foi divulgada uma ampla pesquisa do Centro de Estudos de Cultura Contemporânea (Cedec), encomendada pela Coordenadoria Especial da Juventude da prefeitura de São Paulo, sobre as condições de vida dos jovens no município. Nos 18 bairros com pior qualidade de vida para os jovens, entre os quais Cidade Tiradentes, Itaim Paulista, Jardim Ângela e outros visitados por esta reportagem, uma estatística preocupa: 23,1% das mulheres entre 15 e 24 anos já são mães. Em bairros em que a qualidade de vida é melhor, essa porcentagem cai para apenas 1,5%.

Das discussões do conselho do posto de saúde do Jardim Jacira surgiram parcerias com escolas de ensino fundamental e médio da região. Professores são treinados e levam para a sala de aula temas como prevenção de gravidez na adolescência e educação sexual. O posto disponibiliza também tratamento médico, psicológico e social a vítimas de abuso sexual.

Prevenção

Partiu do Conselho de Saúde a iniciativa de levar ao Jardim Jacira o Barracão Cultural da Cidadania, que oferece cursos de música, dança, teatro e tecelagem, e é mantido pela prefeitura e pelo governo estadual. O projeto tem 400 jovens inscritos. "A violência diminuiu e a população sente isso. Dizem que não é mais como antes, que já não têm mais medo de sair à noite", explica Myres. Mas o que saúde tem a ver com isso? A resposta está na idéia de prevenir a violência para não ter de tratar dos feridos.

É claro que a melhoria da região se deve a uma série de fatores, e não apenas à participação popular. Mas essa discussão, mesmo com os poucos recursos destinados à área de saúde (seriam necessários pelo menos três vezes mais para que tudo funcionasse satisfatoriamente), tem contribuído para as mudanças. De acordo com Myres, o número de óbitos por violência caiu 25% de 2000 até agora – de 110 por grupo de 100 mil habitantes para 80.

No município de São Paulo, o objetivo é criar conselhos em todas as unidades básicas de saúde. No Jardim São Luís – na Zona Sul, a mais violenta –, já houve duas eleições em cada uma das dez unidades. Um representante de cada uma compõe o Conselho Distrital, do qual sai um indicado para o Conselho Municipal.

Eduardo Lima é membro do conselho de uma unidade de saúde do Grajaú – extremo sul da capital – e do distrital, além de fazer parte do Orçamento Participativo. "Agora nosso pronto-socorro atende 15 mil casos por mês. Mas, antes que o conselho começasse a funcionar, estava desfigurado, com macas e camas quebradas, além de faltar médicos. O atendimento também era ruim. Através do diálogo e da cobrança, conseguimos melhorar bastante: equipamentos foram reformados, o prédio arrumado, e não faltam mais medicamentos." Segundo ele, a participação da população está aumentando com o tempo. "Quando se fala em reunião para discutir algo, o brasileiro tem mania de achar que não vai resolver nada. Mas as coisas estão mudando. Temos voz ativa."

Meio ambiente

A questão ambiental, que ganhou corpo no Brasil durante a década de 90 com ações e protestos de ONGs, faz parte da preocupação de grupos e movimentos espalhados pela periferia da cidade. Na luta em defesa da água e da preservação de áreas verdes, cujo objetivo é a melhoria ou manutenção da qualidade de vida, as ONGs dominam a cena com intervenções diretas.

Cidade Tiradentes, no extremo da Zona Leste, localiza-se próximo a uma região de nascentes de rios que abastecem tanto o Tietê quanto o Aricanduva e seus afluentes, e ainda a Represa Billings. O Guaió é um desses rios e, a cerca de 500 metros da nascente, recebe uma grande carga de esgoto das favelas da região. "No lugar onde a água corre e a mata ciliar deveria ser protegida, há pessoas que fazem queimada para depois plantar ou erguer um barraco", conta Jesulino Alves de Souza, presidente da Sociedade para a Defesa do Meio Ambiente e Cidadania (Sodemac), que surgiu na própria comunidade e é integrada principalmente por jovens. Suas ações vão de educação e conscientização ecológica à criação de hortas comunitárias e viveiros de mudas em terrenos abandonados. "Há muitas árvores em volta do bairro, mas não nas ruas", afirma Jesulino.

Devido ao desmatamento sem controle nos remanescentes de Mata Atlântica, em certos locais do entorno de Cidade Tiradentes está surgindo um anel de desertificação. Com as chuvas, a erosão da terra resulta em imensas voçorocas. A Sodemac tenta mobilizar os moradores para que exijam a criação de um parque ecológico na região, que abranja também áreas dos municípios vizinhos de Ribeirão Pires e Ferraz de Vasconcelos. Para isso, promove periodicamente caminhadas ecológicas na mata até as nascentes dos rios.


Cultura e lazer

Investimentos sociais devem ir além da comida

O posto de saúde do Jardim Jacira, em Itapecerica da Serra, atende uma média de cinco casos por mês de traumatismo. Os acidentes que provocam esse tipo de lesão são mais freqüentes no mês de agosto, quando há mais vento e crianças e jovens sobem na laje de casa para empinar pipa. A dimensão desse problema, comum em bairros pobres, é inversamente proporcional ao número de equipamentos públicos de cultura e lazer existentes na região. Ou seja, na falta de praças, parques, centros culturais e esportivos, a população fica sem alternativas senão improvisar.

O déficit de espaços públicos de cultura e lazer tem influência direta nos índices de violência urbana. Nos mapas produzidos pelo Núcleo de Estudos da Violência da USP, constata-se que nas regiões em que há menor investimento do governo nessa área, o número de mortes de jovens é maior. Não por acaso, são os bairros periféricos que apresentam predominância de características como elevado índice de desemprego, menor renda e baixas taxas de escolaridade.

O campus da USP na capital paulista possui uma das maiores áreas verdes da cidade. Em outros tempos, era considerado um espaço cultural e de lazer tão importante quanto parques como o Ibirapuera ou o Carmo, com apresentação de shows musicais e atividades esportivas. Com a justificativa de garantir a segurança de salas de aula, laboratórios e escritórios, a reitoria da universidade determinou que o acesso ao campus, aos domingos, ficasse restrito a alunos, professores e funcionários, deixando os moradores das favelas vizinhas do Jardim São Remo e do Jaguaré sem opção de lazer.

"A miséria de determinadas regiões da cidade é também cultural. O jovem precisa de um espaço que sinta que é seu, com o qual se identifique", afirma Hamilton Faria, coordenador da área de cultura do Instituto Pólis e membro do Fórum Intermunicipal de Cultura. Para ele, a arte e a cultura têm sido a porta de entrada para muitos jovens no processo de participação popular.

As ações estatais de incentivo a projetos culturais, no entanto, têm privilegiado grandes empresas e personalidades de renome em detrimento das associações de bairro, centros de cultura popular ou mesmo grupos de música, teatro ou dança organizados por jovens da periferia. Os entraves burocráticos das leis de renúncia fiscal para incentivo à cultura, como a Mendonça (municipal) e a Rouanet (federal), acabam dificultando o acesso das populações mais pobres aos benefícios que visam conceder. Existem empresas ligadas ao marketing cultural que são contratadas para assessorar projetos e cobram um percentual sobre o montante liberado pelo governo. Além disso, muitos institutos, museus e universidades possuem departamentos especializados em preencher e encaminhar os formulários exigidos por essas leis – facilidade que a população carente não tem.

O "Ponto de Vista" é um jornal comunitário produzido por jovens de Guaianases, Zona Leste de São Paulo, e retrata os problemas da região, como gravidez na adolescência e violência. Feita de forma artesanal, a publicação nasceu na oficina do telecentro municipal do bairro – ponto comunitário de acesso a computadores –, mas sobrevive com muita dificuldade. Os pequenos comerciantes locais reconhecem a importância da iniciativa e têm financiado a impressão por meio de anúncios. Porém, com recursos cada vez mais escassos, o espaço e a possibilidade de integração abertos por essa experiência correm o risco de acabar. Thiago Guimarães, coordenador pedagógico de projetos do Governo Eletrônico da prefeitura, explica que os telecentros da cidade se destinam a promover a inclusão digital e incentivar o desenvolvimento de meios de expressão através de programas como as oficinas de comunicação comunitária. Mas, apesar do esforço pessoal de educadores dos telecentros, a prefeitura garante pouca ajuda a esses jovens.

Agora vai?

Até este momento, a melhor iniciativa para dar uma oportunidade aos projetos que não são assinados por um grande banco ou uma multinacional é o Programa de Valorização de Iniciativas Culturais (VAI), com força de lei. A primeira liberação de recursos para o programa – criado pelo vereador Nabil Bonduki e sancionado pela prefeita Marta Suplicy – deverá acontecer ainda neste início de ano. Segundo Bonduki, a meta do VAI é conceder anualmente até R$ 15 mil a iniciativas artístico-culturais, principalmente de jovens de baixa renda e de regiões desprovidas de equipamentos culturais. A previsão é de que seja destinada a verba de R$ 1 milhão para a primeira leva de projetos – valor ainda muito pequeno para a demanda na cidade. Um aumento na alocação de recursos para essa finalidade vai depender dos debates no Orçamento Participativo sobre a destinação das verbas municipais.

Para investir nessa área, as empresas querem garantia de grande visibilidade, e como na periferia o retorno institucional é pequeno, não interessa a quem visa unicamente ao lucro. Vale lembrar que as atuais leis de incentivo à cultura transferem para a iniciativa privada a escolha dos projetos beneficiados, apesar de boa parte dos recursos vir do Estado, ou seja, trata-se de dinheiro público, proveniente da renúncia fiscal. Por essa razão, o papel do governo no controle sobre os incentivos vem sendo debatido pela sociedade civil.

Outra proposta de Bonduki que tramita na Câmara propõe uma mudança na forma como o município investe em cultura, de forma a ampliar as ações para além da renúncia fiscal. O projeto prevê a criação do Sistema Municipal de Apoio à Cultura (Simac) e de um Fundo Municipal de Cultura e Comunicação, com o objetivo de incentivar projetos comunitários e de formação cultural. Seu ponto mais interessante e também polêmico é uma espécie de "pedágio" de até 30% dos recursos captados pelos grandes projetos, que iriam para um fundo de financiamento de iniciativas que não conseguem obter patrocínio. A aprovação, contudo, encontra resistência entre os vereadores e enfrenta o lobby das empresas de marketing cultural.

As primeiras tentativas de estabelecer o Conselho Municipal de Cultura na capital, para discutir com a sociedade civil as prioridades nessa área, remontam à década de 70. A lei atual que regulamenta o conselho é da administração de Luiza Erundina (1989-92). Mas o órgão permaneceu desativado durante as gestões de Paulo Maluf e de Celso Pitta e só voltou a funcionar em 2001, como tantos outros na cidade.

"Não temos no município uma tradição de descentralização cultural, não apenas de equipamentos, mas de iniciativas, de criatividade, de trabalho, que garanta a autonomia dos grupos locais", lembra Hamilton Faria. Hoje, o papel da cultura e do lazer é discutido em fóruns, com artistas, pessoas interessadas nesses temas e organizações que trabalham na área reunidos para pensar políticas, projetos e ações que mudem o panorama de abandono que se vê em São Paulo.


Educação

Do combate ao analfabetismo ao ensino superior

Estreitar os vínculos da escola com a comunidade não se resume a abrir as portas das quadras nos finais de semana e liberar uma bola para um jogo de futebol ou de basquete. Nem reunir os amigos para pintar a fachada da creche ou consertar as mesas. É preciso mais do que isso para realmente tornar a escola parte integrante da comunidade em que está inserida.

"Num primeiro momento, apostamos nas instâncias institucionalizadas, como conselhos de educação, conferências municipais. Mas elas mostravam um certo limite, a comunidade pouco participava e nada mudava nas formas de ensinar, aprender, nem na qualidade do ensino", afirma Maria Clara Di Piero, coordenadora de projetos da ONG Ação Educativa, que atua em nível nacional na melhoria da qualidade da educação. Eram iniciativas centralizadas, que não consideravam a realidade local. Nos últimos tempos, a entidade passou a apoiar o fortalecimento dos vínculos entre a escola e a população que reside no seu entorno, levando isso para a sala de aula.

Ao contrário do que pensam muitos burocratas, as comunidades têm capacidade para participar ativamente na definição dos rumos de suas escolas e creches. "Tanto diretores, professores e funcionários quanto alunos, pais e demais integrantes das comunidades escolares consultadas revelam concepções amadurecidas e convicção sobre o que é uma escola de qualidade, e essas pessoas precisam ser ouvidas para o aperfeiçoamento da educação." Essa é uma das conclusões da Consulta sobre Qualidade da Educação na Escola, realizada pela Campanha Nacional pelo Direito à Educação, feita em escolas dos estados de Pernambuco e Rio Grande do Sul no final de 2000.

Jovens e adultos

É necessário considerar as demandas, a identidade e a singularidade dos alunos para que se alcance um projeto eficaz de educação de jovens e adultos. "Não existe uma idade adequada para adquirir conhecimento. O atual paradigma aponta a necessidade de uma educação continuada, ao longo da vida. Em vez de indagar o que a pessoa não aprendeu, deve-se perguntar o que ela precisa aprender agora e para o futuro", explica Maria Clara. "A educação de jovens e adultos não pode mais ser vista como uma ação em busca do tempo perdido, mas uma tentativa de resposta às demandas dos alunos."

Um bom projeto que vem sofrendo atraso no repasse de recursos é o Movimento de Alfabetização de Jovens e Adultos (Mova). Criado durante a gestão de Luiza Erundina, foi idealizado pelo educador Paulo Freire, então secretário municipal de Educação. Depois de permanecer desativado entre 1993 e 2000, foi retomado pelo atual governo, que enfrenta problemas para garantir sua sustentabilidade financeira. Nem os convênios firmados com associações de moradores e o fato de as aulas ficarem a cargo dos centros comunitários impediram que professores ficassem meses sem receber. A Secretaria de Educação, no entanto, afirma que a responsabilidade é das entidades, que não teriam entregado a documentação necessária.

Rodrigo Tadeu Mendonça, de 19 anos, e Ricardo dos Reis Souza, de 21, são alfabetizadores na Paróquia Santos Mártires, no Jardim Ângela. Até outubro último, os dois estavam pagando para ensinar, pois não recebiam remuneração e arcavam com custos da produção das aulas havia nove meses. "A gente não pode abandonar os alunos, pois temos um compromisso", diz Souza. Segundo eles, a prefeitura afirma que, em breve, a situação estará regularizada. Muitas salas de aula não fecharam devido à dedicação de monitores como os dois. "Financiamento para esses projetos até existe, mas uma estrutura burocrática complicada entrava o processo", lembra Maria Clara.

Vale especial atenção a situação da população negra. Cerca de 20% não sabem ler ou escrever, enquanto a taxa entre os brancos gira em torno de 8%, de acordo com dados da Ação Educativa. Além disso, a média de escolaridade dos negros é de dois anos a menos que a da população branca. Se o país está melhorando no que diz respeito às taxas gerais de educação, o mesmo não se pode dizer da diferença entre negros e brancos, que se mantém, o que reforça a necessidade de adoção de políticas afirmativas para diminuir essa desigualdade. Maria Clara aponta, como exemplo, a legislação que incorporou a história e a cultura afro-brasileira nos currículos escolares como conteúdo a ser contemplado em todas as disciplinas. Falta, agora, destinar recursos para a formação de professores que ponham isso em prática.


A USP na Zona Leste

Após anos de reivindicação por parte de moradores e de movimentos sociais, o governo do estado está implantando um campus da USP na Zona Leste de São Paulo – a mais pobre e carente da presença do poder público – numa área do Parque Ecológico do Tietê. Será apenas uma unidade (Escola de Artes, Ciências e Humanidades) e terá cursos como arqueologia, políticas públicas, moda, ciências ambientais e enfermagem geriátrica. O primeiro vestibular deve ocorrer no final de 2004, com a abertura de mil vagas.

Os coordenadores da equipe de implantação já afirmaram que não haverá nenhum mecanismo para privilegiar o ingresso da população de baixa renda, e por essa razão o perfil dos alunos deve ser semelhante ao das outras unidades na capital. Também não há informações sobre um possível "cercamento", como acontece no fortificado campus do Butantã.

"A grande contribuição da USP na Zona Leste será o fato de ela estar ali. Não tanto a comunidade dentro dela, mas ela dentro da comunidade", afirma Antônio Luís Marqueone, o padre Ticão, da Igreja de São Francisco e coordenador da Pastoral Social do bairro de Ermelino Matarazzo. A universidade informou que terão prioridade projetos de extensão e pesquisa destinados à solução dos problemas da região, assim como programas esportivos, culturais e artísticos voltados para a comunidade, mas sem dar detalhes de como exatamente isso será feito.

Além da USP-Leste e de um campus da Faculdade de Tecnologia de São Paulo (Fatec) – primeira escola de ensino superior da região, construída em Artur Alvim e aberta em 2002 –, há outra iniciativa educacional importante voltada para a região: no ano passado, a prefeitura de São Paulo, em parceria com o governo federal, anunciou a implantação de uma universidade pública municipal na Zona Leste, ainda sem nome. A instituição vai oferecer cursos nas áreas de saúde, tecnologia e administração, com vestibulares previstos para 2005.

Em Cidade Tiradentes, será montado um núcleo de saúde, junto de um hospital-modelo que está em construção. A universidade municipal não formará médicos, mas técnicos, tecnólogos e graduados em saúde pública. "Se não se consegue levar profissionais dessa área para trabalhar na periferia, só há um jeito de resolver isso, que é qualificar pessoas das próprias comunidades para que atuem nesses lugares", explica Branislav Kontic, assessor especial da prefeita e um dos responsáveis pela implantação do projeto.


Conquista de dignidade

As cartas reproduzidas nesta matéria foram inspiradas na experiência desenvolvida pela Rede de Observatórios de Direitos Humanos – uma iniciativa que reuniu dezenas de ONGs sob a coordenação do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (NEV-USP) e do Instituto São Paulo contra a Violência. O trabalho envolveu jovens de diversos estados do país, visando traçar um panorama dos direitos humanos no Brasil.

Em 2002, a terceira edição do evento teve a participação de 180 pessoas, que durante meses discutiram a Declaração Universal dos Direitos Humanos e trocaram informações, por meio de cartas, a respeito de sua vida e sua visão de mundo. Muitos perceberam que seus problemas do dia-a-dia, como gravidez na adolescência e alcoolismo dos pais, são os mesmos enfrentados em outras partes do país, o que significa que não estão isolados. "A conquista da dignidade passa por uma noção de coletividade, por você perceber o outro e se projetar no grupo", afirma Marcelo Daher, coordenador executivo do projeto e pesquisador do NEV.

Ao final, foi preparado um relatório para propagar essa discussão. Vale lembrar que um dos principais objetivos do projeto é incluir os jovens no debate sobre direitos humanos, até porque são eles que terão de procurar solução para os problemas sociais no futuro. "Não faz sentido dizer que as pessoas não conhecem os direitos humanos, pois todos sabem o que é necessário para ter dignidade", conclui Daher.

Com a transição de administração federal, os recursos para a continuidade do projeto deixaram de ser alocados, e o último relatório publicado foi o de 2002.

A população está na periferia

"Filha de uma cozinheira desempregada, moro há dez meses num prédio ocupado pelo Movimento Sem-Teto do Centro [MSTC], localizado na Avenida Prestes Maia. Graças à luta por moradia é que não estou na rua. Há mais ou menos um ano minha mãe não consegue emprego, e não temos dinheiro para pagar aluguel. Aqui em São Paulo, muitos dos que pagam aluguel não comem e os que comem não podem pagar aluguel.

O movimento de moradia vem revitalizando o centro da cidade de verdade. Pois não adianta nada falar em revitalização e manter edifícios enormes e vazios, pensar em museus, enquanto a população está toda na periferia morando de forma precária."

Luciana Vítor, 17 anos, estudante e moradora de um prédio ocupado pelo MSTC

A favela que é a cara do Brasil

"Paraisópolis é uma favela gigantesca em meio aos belíssimos prédios do bairro do Morumbi. Sua população é, na maioria, de migrantes nordestinos, que hoje compõem uma massa de suores, cheiros, cores e histórias tão distintas que fazem dessa favela um lugar inigualável para morar. No entanto, nos últimos anos, houve (e ainda há) um crescimento descontrolado da favela, decorrente de outra migração: a de pessoas de outros bairros de São Paulo. Problemas que já eram preocupantes se agravaram. Um deles, talvez a causa de outros, é a falta de lazer.

As crianças jogam futebol na rua, sobem nas lajes ou ficam nos becos para poder soltar pipa. Jogam bolinha de gude nas vielas ou, o que é pior, ficam em casa assistindo televisão.

A população possui alguns espaços culturais, que são a biblioteca da comunidade e projetos sociais como o Barracão dos Sonhos e o Florescer, surgidos de iniciativas de moradores, além do telecentro, implantado pela prefeitura. Porém, são insuficientes para uma população de 65 mil habitantes. Muitos nem sabem da existência desses projetos.

É inacreditável, mas grande parte das pessoas que vivem em Paraisópolis jamais foi ao cinema ou teatro, raramente passeou num shopping center, não reconhece o prazer de ler um livro e muito menos já entrou num museu. É uma realidade dura, pois o significado de cidadania se perde em meio às rotinas de trabalho e dificuldades que todos enfrentam.

Paraisópolis é a cara do Brasil miscigenado e do povo sofrido, que cansa de esperar para ser apresentado à cartilha dos direitos humanos, que diz que todos têm o direito de desfrutar da arte e da cultura, além do direito ao descanso e ao lazer."

Simone Oliveira de Santos, 18 anos, estudante

O desafio de formar com qualidade

"A escola deveria fazer com que os alunos sentissem vontade de estar ali. Ou a escola e a forma de ensinar mudam de cara ou continuaremos ouvindo coisas como: "Aumenta o número de jovens assassinados", "Cresce o número de jovens com Aids".

Para que haja mudanças, é importante também resgatar alguns valores: respeito, persistência, amor-próprio, auto-estima e, principalmente, responsabilidade. A escola precisa encarar o desafio de formar alunos de qualidade, e não simplesmente abastecê-los de conteúdo. E, também, não ignorar a realidade que os cerca.

A população deveria freqüentar as escolas, participando de atividades, como esporte, música, artesanato, junto com os alunos. Principalmente nos finais de semana, quando os pais têm mais tempo livre. Pois assim eles ficariam por dentro dos problemas que as escolas enfrentam e poderiam se mobilizar para tentar resolvê-los."

Maurantonia da Silva, 20 anos, estudante

 

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