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Caldeirão fervente
Aos 450 anos, a Paulicéia se mostra rica em atrativos e problemas
CECÍLIA PRADA
A capital paulista comemora, neste mês de janeiro, quatro séculos e meio de fundação. A origem da maior cidade brasileira, relembrada à exaustão em tom festivo, esconde porém informações importantes, misteriosamente ausentes dos livros didáticos. São fatos inquietantes, pouco divulgados ou propositalmente esquecidos, que esta reportagem registra, embora de forma passageira, e oferece à lembrança dos leitores.
É o caso do tratamento desumano dispensado a índios e negros, especialmente mulheres, e mais tarde aos imigrantes, num ensaio histórico para a realidade atual, em que milhões de vítimas da exclusão ocupam a vasta periferia da megalópole.
A exemplo dos inferiorizados daquela época, os menos favorecidos de hoje lutam para derrubar barreiras e participar das decisões que envolvem seu próprio destino.
É o que estas páginas procuram mostrar.
Festividades e discursos descontados, a comemoração do aniversário de 450 anos da cidade de São Paulo pode e deve ser tomada como privilegiado patamar para discussão do modo, dos meios e dos elementos que vieram formando, desde os primórdios da colonização, este imenso caldeirão racial e multicultural em que vivemos. Caberia, antes de mais nada, questionar a própria data histórica, retomando a velha polêmica de quase 200 anos sobre uma "primeira fundação" – a da fantasmática Vila de Piratininga, que teria sido fundada no planalto em 10 de outubro de 1532 por Martim Afonso de Sousa.
Não é nosso propósito, porém, aprofundar argumentos já solidificados por historiadores do porte de Varnhagen, Afonso de Taunay, Sérgio Buarque de Holanda, Ernani Silva Bruno, Jaime Cortesão, Afonso de Freitas e vários outros – mas que a rotina do ensino oficial insiste em desconhecer, continuando a passar a sucessivas gerações apenas uma data e um local: 25 de janeiro de 1554 e o outeiro que receberia mais tarde o nome de Pátio do Colégio. Ressaltamos, somente, a presença de portugueses nos Campos de Piratininga bem antes do início oficial da história de São Paulo – João Ramalho e outros, já empenhados na principal ocupação de prear e traficar escravos indígenas.
E se o estudo da formação populacional da metrópole não pode ser feito senão em termos de processos de assimilação, exclusão e disparidade dos vários segmentos que a constituíram, devemos lembrar que excluída já nasceu a brasílica colônia, como um todo, em relação a Portugal – interessada na sua bela do momento, a Índia das especiarias e dos brocados, a Coroa negligenciou a nova terra, permitindo que aqui se instalasse um tipo de colonização de exploração e não de povoamento. Mesmo a expedição dita "povoadora" de Martim Afonso tinha na verdade o objetivo nem tão secreto de procurar caminhos para as fabulosas minas de ouro e prata descritas por aventureiros espanhóis. Muito mais tarde, em 1572, Camões dava ainda testemunho desse descaso, dizendo: "(...) a terra Santa Cruz, pouco sabida!"
"O vil gentio"
O indígena, teoricamente "senhor" da terra, foi assim o primeiro elemento a ser excluído do grande banquete da civilização tropical. Ou melhor, foi ele, o temível canibal, o verdadeiro "devorado". Uma pergunta: como conseguiam naquelas décadas iniciais do século 16 uns poucos europeus aprisionar, manter em cativeiro e negociar levas de silvícolas, senão com a cumplicidade dos próprios caciques?
Simplificações do tipo "branco extermina índio" não levam em conta o fator de autodestruição implícito na dinâmica das sociedades indígenas – as contínuas e ferozes guerras entre as várias tribos e os costumes que incluíam a escravização dos inimigos e a antropofagia. Mitificadas mais tarde como "edênicas", no próprio interior da tribo essas sociedades apresentavam-se na realidade estratificadas em torno do poder dos caciques, secundados pelos pajés. Esse poder foi um dos pólos em que se apoiou a escravidão indígena – o índio "inimigo", que seria inclusive devorado, poderia render mais se vendido ao europeu. Introduziu-se assim um hipócrita sistema de "resgate" de prisioneiros do qual se aproveitaram não somente os assumidos traficantes brancos como os próprios jesuítas. A lucrativa caça ao índio passou a ser objetivo a mais, se não principal, das guerras intertribais – objetivo ampliado ao máximo nas "bandeiras". Se é verdade que os bandeirantes aumentaram consideravelmente a minguada cota territorial de Tordesilhas, também não se pode negar que essa expansão se fez à custa da dizimação da população indígena – inclusive com a invasão e destruição das muitas vilas e aldeias do Território das Missões, no Paraguai, onde de 1610 a 1768 floresceu a República dos Guaranis.
No entanto, são as bandeiras reconhecidas como "um fenômeno mameluco" – montadas e chefiadas por alguns portugueses e muitos mestiços, com a utilização de massas de índios armados. Para entender isso impõe-se distinguir, nos dois primeiros séculos da vida no planalto, dois tipos de mestiçagem. Desde os primórdios, os caciques, como Tibiriçá e Caiubi, foram conquistados pelos aventureiros europeus e participaram dos lucros do tráfico indígena – como acontecia na África com os reis tribais (nem que esse lucro consistisse apenas em miçangas e quinquilharias). Como qualquer casa reinante européia, os caciques estabeleciam políticas de aliança com os brancos, dando suas filhas e mulheres a eles – esse uso era generalizado entre os índios, como prova de cortesia para com os forasteiros. Mas unir-se a filha de cacique era coisa bem diferente. Conferia status privilegiado ao próprio branco. Como diz Ernani Silva Bruno, "(...) o sistema familiar vigorante entre os tupis, favorecendo a formação de parentela numerosa, sob a forma de família-grande, dava possibilidades de orientação ou de mando aos brancos que se unissem a bugras pelo casamento".
Constituiu-se assim a progênie de João Ramalho e de outros "príncipes do sertão", uma "nobreza" da qual se orgulharam sempre as principais famílias paulistas. Os "ramalhenses" que viviam no primitivo povoado de Santo André da Borda do Campo, incorporado em 1560 à aldeia de São Paulo de Piratininga, caracterizavam-se pela ociosidade, desordem, violência e promiscuidade sexual, e formaram nos séculos seguintes, com o contingente reinol, os "senhores" que dominaram outra espécie de população, também mameluca – submissa, pobre e trabalhadora, resultante do intenso acasalamento de brancos com cativas indígenas. Pois em Piratininga, dizem os historiadores, mesmo o mais pobretão dos homens livres fazia questão de ter no seu serviço ao menos "uma peça da terra".
Sobreposta a essa realidade, a fundação oficial de São Paulo do Campo de Piratininga, em 25 de janeiro de 1554, marcava também a transferência do colégio dos jesuítas de São Vicente para o planalto e colocava definitivamente o destino da nova povoação à sombra da roupeta. Nos arquivos da Companhia de Jesus – ciosamente guardados sob sigilo até praticamente o século 20 –, as cartas dos primeiros jesuítas figuram como fonte maior de nossa historiografia. Um imenso material que esmiúça os objetivos, os métodos, o desenvolvimento do trabalho político-missionário da companhia e as peripécias do cotidiano dos seus padres – e se essas cartas nos fazem admirar a fortaleza de caráter, a disciplina, a coragem e a grandeza de figuras históricas como Manuel da Nóbrega, José de Anchieta, Leonardo Nunes e outros, também revelam de maneira implacável as contradições intrínsecas da poderosa organização político-militar-religiosa a que pertenciam. Os "soldados de Cristo" de Inácio de Loyola, hábeis no manejo literal da cruz e da espada, viam nos indígenas "um verdadeiro papel em branco" sobre o qual poderiam escrever os princípios cristãos. E defendiam sua "matéria-prima" humana de um império teocrático cristão e europeu, contra a ação dos colonos – o que nunca os impediu de ter seus próprios escravos.
Em pouco edificante carta a seus superiores, escrita da Bahia em fins de agosto de 1552, relata o padre Manuel da Nóbrega: "Alguns escravos destes, que fiz mercar para a casa, são fêmeas, as quais eu casei com os machos e estão na roça apartados todos em suas casas e busquei um homem leigo que deles todos tem cuidado e os rege e governa, e nós com eles não temos conta, e com o homem nos entendemos e o homem com eles. A causa por que se tomaram fêmeas é porque doutra maneira não se pode ter roças nesta terra, porque as fêmeas fazem a farinha e todo o principal serviço". Dez anos mais tarde o superior-geral, padre Diogo Laínez, autorizava oficialmente os jesuítas a manterem escravos em suas lavouras, o que, segundo o escritor Mário Neme, no decorrer do tempo causaria "a transformação da Companhia de Jesus numa organização comercial poderosa, de índole capitalista".
Na aldeia de Piratininga, governada pelos padres, cantos celestiais e preces em latim ou tupi mascaravam a violência da aculturação imposta – índios bons eram os inteiramente submissos, dispostos a renunciar a seus laços tribais e a trocar a magia dos pajés por outra mais resplandecente: a da liturgia cristã. Anchieta dava louvor e glória a Deus pelo sucesso dos religiosos em separar os meninos índios de suas famílias, pois muitos deles "nem mostravam mais o desejo de falar com a mãe", antepondo "em tudo ao amor dos pais o nosso". Afirmava também a necessidade do uso da chibata na educação desses catecúmenos. E, enternecido com sua "devoção", relatava aos superiores as procissões das sextas-feiras – nas quais, entre velas e cânticos, os meninos se autoflagelavam.
Por ocasião do grande ataque de índios "contrários" a Piratininga, em 1562, conta Anchieta como as mulheres e crianças recolheram-se à igreja, "onde algumas mestiças estavam toda a noite em oração com velas acesas ante o altar, e deixaram as paredes e bancos da igreja bem tintos de sangue que tiravam com as disciplinas". Tendo em conta a situação das mulheres na própria sociedade indígena – eram objeto de abuso e violência constante – não é de admirar que preferissem uma vida contida mas tranqüila, entre os padres. Há relatos de índias que preferiam a morte a voltar a sofrer a brutalidade dos companheiros. Para lembrar um único hábito dos "bons selvagens": segundo o cronista da época Pero de Magalhães Gândavo, na obra Tratado da Terra do Brasil (1570), ao prepararem um prisioneiro que ia ser morto e devorado, faziam-no dormir "com uma índia moça, a mais fermosa e honrada que há na aldeia" – em geral a filha do cacique. Se esta era emprenhada, esperavam a criança nascer para lhe dar o mesmo destino do pai. Só que a própria mãe era obrigada a participar do banquete antropofágico.
Mas a dureza da vida na selva e nas aldeias foi minando o fervor inicial dos padres, que começaram a achar que "catequizar os índios era escrever em água". A legendária mansuetude de Anchieta transformou-se em ira várias vezes. O religioso não hesitava em pedir a el-rei que enviasse homens e armas para acabar de vez com os índios "intratáveis", que só seriam convertidos pela coerção "com espada e vara de ferro", pois eram "gente tão indômita e bestial que somente será resolvido o problema do índio quando se acabar com ele".
Nóbrega, três anos após sua vinda, em 1552 e ainda na Bahia, desesperava já de terra "tão pecadora". Sonhou a vida toda partir para o Paraguai, em busca dos mais "civilizáveis" guaranis. Em carta de 1558, propunha até o fechamento do Colégio de Piratininga, "porque nem com cristãos nem com gentios aproveitaremos nada desta maneira". E definia o índio brasileiro como "o mais vil e triste gentio do mundo". Taunay transcreve episódio de sádico rigor ocorrido na aldeia: para punir um rapaz mameluco que espalhara calúnias sobre os padres, Nóbrega encenou um solene auto-de-fé e o fez enterrar vivo. Mas "estando já enterrado, e com muita terra sobre o corpo", o irmão Pero Lopes – o único a estar inteirado da "brincadeira" – pôs-se de joelhos suplicando clemência a seu superior. E Nóbrega, fingindo ter sido amolecido por seus rogos, mandou desenterrar o condenado, o qual, naturalmente, dali em diante tornou-se modelo de submissão, mas sempre conhecido como "o homem da sepultura". Nota: Taunay classifica como "pitoresco" esse caso.
Apesar dos prognósticos pessimistas, nos dois séculos seguintes a pequena vila de São Paulo desenvolveu sob o trópico de Capricórnio uma civilização sui generis. Foi um grande acampamento de pioneiros onde se cruzavam raças e nacionalidades; uma "terra de ninguém" (e de todos), pobre, sofrida, mas resistente, na qual índios aprendiam latim e brancos aprendiam e usavam, até com exclusividade, o idioma tupi. Confirma Sérgio Buarque de Holanda esse dado: "Os paulistas na era das bandeiras se valiam do idioma tupi em seu trato civil e doméstico". Exemplo disso é o do bandeirante Domingos Jorge Velho – tendo de tratar com o bispo de Pernambuco, em 1697, precisou levar intérprete, porque, segundo o bispo, "nem falar (português) sabe". O uso do tupi foi comprovado até a primeira metade do século 18, mas vários depoimentos de viajantes (como o de Hércules Florence em 1825) atestam que nas décadas iniciais do século 19 ainda eram encontrados velhos paulistas que falavam tupi.
O negro
Segundo mapeamento recente, São Paulo é a cidade brasileira que tem o maior número absoluto de negros (3,1 milhões) – é nesse segmento populacional, contudo, que históricos padrões de preconceito e estigmatização podem ser detectados, a começar por sua distribuição espacial pelos bairros mais pobres e de pior qualidade de vida.
Em comparação com o restante do país, a capitania de São Vicente, particularmente a vila de São Paulo do Campo de Piratininga, não apresentava, nos dois primeiros séculos de colonização, uma significativa população de escravos negros, devido principalmente ao clima muito frio, à pobreza dos colonos e à facilidade da caça aos índios – embora africanos fossem, desde 1552, vendidos aos senhores de engenho do litoral vicentino.
No século 18, porém, os negros substituíram os índios no ciclo da mineração empreendido pelos paulistas, por serem mais resistentes para as duras tarefas da extração. Um pouco mais tarde participariam de modo efetivo do grande ciclo cafeeiro. Ao mesmo tempo, embora em proporção muito menor do que no restante do país, processava-se também a miscigenação com o branco – os senhores eram especialistas em "emprenhar negrinhas".
Não há como negar que a raça foi, principalmente no sudeste e no sul, fator seletivo na formação das classes sociais. Como vimos, a mestiçagem com o indígena se processou em São Paulo de maneira constante e natural, desde o tronco de João Ramalho – sempre lembrada até com orgulho pelas famílias "quatrocentonas". O mesmo não aconteceu, nem acontece ainda, com a herança do sangue negro.
Foi grande a influência da cultura africana no interior paulista – cidades como Campinas, Itu, Pindamonhangaba e Guaratinguetá apresentavam uma porcentagem elevada de cativos e negros forros, muitos deles levados para as cidades pelos senhores para servirem em sua residência urbana ou ganhar a vida com ofícios diversos. Os jornais do vale do Paraíba, na segunda metade do século 19, viviam cheios de anúncios de negros de aluguel: "Uma linda e simpática pardinha de 11 anos para todo o serviço", ou: "Acha-se para alugar uma preta nova, sadia e de boa condição, sabendo cozinhar o comum, lavar e engomar, leva consigo uma criança de menos de um ano". A par do seu coeficiente de trabalho humilde, esses negros traziam para as cidades o aporte cultural de suas danças e músicas. Sua fixação nas "cidades do café" representou enriquecimento, aumento da população, desenvolvimento de ofícios ou indústrias em que os escravos se haviam especializado e até a intensificação do comércio entre as cidades.
A capital da província permaneceu até meados do século 19 como um pacato e apagado local de "encontro de tropeiros", pouco populosa e de vida social e cultural inexpressiva. A maioria da população estava fixada na zona rural e só vinha à vila em dias de festas religiosas. Em 1798, na paupérrima vila de São Paulo de Piratininga existiam somente 5.133 habitantes, que incluíam 400 militares, 150 religiosos, 3 professores de retórica, filosofia e gramática e 70 vadios. Com os longos períodos de afastamento dos homens, embrenhados no sertão, contou sempre a vila com maior população feminina – as mulheres substituíam os maridos na administração dos bens e da família.
A população negra, por sua vez, vivia uma situação de exclusão social em relação aos demais habitantes. Mesmo batizados e obrigados a adotar o catolicismo em lugar de seus antigos ritos, os negros não podiam organizar reuniões ou mesclar-se aos brancos, nem nos cultos. Donde, por exemplo, a existência de uma irmandade e da Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, em São Paulo – situada originalmente no Largo do Rosário (hoje Praça Antônio Prado) e depois demolida e substituída pela atual, ainda existente no Largo do Paissandu. A mesma segregação estava presente em hospitais e até em cemitérios.
Nossas leis sempre adotaram duas medidas no julgamento de negros e de brancos. A pesquisadora Vera Carvalho Assumpção, em estudo realizado nos Arquivos do Estado, descobriu casos em que negros eram enterrados vivos por ter mantido relações com sinhazinhas.
Segundo ela, não havia o mesmo rigor em relação aos brancos. Foi o que aconteceu, por exemplo, com Antônio Mandu, que estripou duas concubinas, por "sua má boca". Ele confessou ter assistido à lenta agonia da companheira, de cada vez, e que mesmo assim a mulher continuava a injuriá-lo, deixando-o sem outra alternativa senão continuar a esfaqueá-la. Nas duas vezes, o réu foi condenado à pena mínima. A sentença: "O réu cometeu o crime com as circunstâncias atenuantes de tê-lo cometido em desafronte de injúrias que lhe foram feitas, e ainda mais, de ter sido provocado. Condenado ao grau mínimo das penas do artigo 193 do Código Penal – prisão com trabalho, por seis anos".
Os forasteiros
As atas da Câmara de São Paulo não deixam dúvida quanto ao tratamento dispensado aos "forasteiros" – eram logo expulsos os "vadios", isto é, os que não vinham para explorar o sertão ou trabalhar na lavoura, já que não havia empregos nem profissões urbanas. E se o Brasil foi povoado por um grande contingente de "degredados" pela Coroa portuguesa, é preciso lembrar que o termo era usado para designar tanto os homicidas como os punidos por infrações menores – adultério, contestação do poder real, prostituição, passagem de moeda falsa, roubo no peso, jogo de cartas, intrigas e maledicências. E em larga escala os "hereges, judeus, mouros e cristãos-novos".
Um considerável número de judeus fugidos da Inquisição veio para o Brasil – só em 1642, 600 famílias espalharam-se pelo nordeste. A perseguição da Igreja, no entanto, continuava mesmo aqui. Muitos foram repatriados, torturados e queimados. O exemplo mais conhecido é o do dramaturgo Antonio José da Silva, o Judeu, executado em Lisboa em 1739. Mas, em São Paulo, poucos foram molestados pelas "visitações" da Inquisição – para isso contribuíam o difícil acesso ao planalto e a disposição natural dos paulistas, avessos a intervenções externas. Durante pouco tempo (de fins do século 16 a 1624) os judeus foram apenas obrigados a pagar uma "finta" (multa) ao erário público.
O fenômeno da imigração em grande escala, com a incorporação de vastos contingentes de trabalhadores europeus e asiáticos ao melting pot em que se transformou a metrópole a partir das últimas décadas do século 19, não se processou sempre de maneira fácil. Imigrantes de várias nacionalidades relataram em depoimentos orais ou escritos os preconceitos e a situação de exclusão em que se viram colhidos. A verdadeira "indústria da imigração" usava de embuste, disfarçando as reais circunstâncias do país de acolhida, de salários e contratos, ou até prometendo aos colonos terras que nunca veriam. O suíço Thomas Davatz, em livro publicado em alemão em 1858 – após ter-se envolvido em episódio de rebelião de imigrantes em uma fazenda do senador Nicolau Pereira de Campos Vergueiro e em conseqüência disso ter sido expulso do Brasil –, denunciou o tratamento dos colonos, "que não se diferenciava muito do que era dado aos escravos negros". Desde que pisavam o solo brasileiro, os europeus também passavam a ser propriedade dos fazendeiros (ver Problemas Brasileiros nº 348, novembro/dezembro de 2001).
Na cidade de São Paulo, desde o início da industrialização delimitaram-se os "bairros operários" em oposição aos "residenciais", dos barões do café e da indústria. A persistência de "duas cidades" diferenciadas e separadas em São Paulo já era detectada nitidamente no princípio do século 20 – grosso modo a "rica" e a "pobre", ou uma "oficial" (objeto de urbanização planejada) e uma "popular" (crescida ao acaso das necessidades). Mas a constante mobilidade dos vários segmentos populacionais na capital nos dois últimos séculos, com a conseqüente expansão urbana e a rápida mudança de perfil de seus bairros – por exemplo, o deslocamento do centro comercial para pelo menos três regiões sucessivas (Centro Velho, Centro Novo, Paulista) –, requer estudo aprofundado e demorado do entrosamento ou oposição, segundo as várias épocas, de populações "excluídas" e "situadas".
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