Sesc SP

Matérias da edição

Postado em

Latinidades
A língua é minha pátria - Inês Pedrosa

A escritora portuguesa Inês Pedrosa faz uma relação entre a ficção e os elementos oferecidos pela realidade na construção de suas histórias

Importante expoente da nova geração da literatura portuguesa, a escritora e jornalista Inês Pedrosa, em palestra no Sesc Carmo, contou ao público da sua apaixonada ligação com o Brasil, onde se "fala português com açúcar", reclamou da falta de reconhecimento em seu país com o trabalho de alguns de seus escritores e afirmou que da realidade é de onde saem as histórias mirabolantes que raptam os olhos de seus leitores. A seguir os principais trechos da conversa:

"Procuro sempre a alegria e por isso sou muito sensível ao ritmo e à força do brasileiro. Dá para sentir esse ritmo já na forma como se pronuncia o português no Brasil. Vocês abrem as palavras, enquanto nós fechamos. Lá em Portugal se diz que os brasileiros falam português com açúcar. Digo que, mais que isso, é português com ritmo e com força.

"Certa vez um amigo brasileiro me perguntou lá em Lisboa qual era a minha ligação com o Brasil, pois ele percebia um eco muito forte do País na minha escrita. Por várias razões, acho que foi um dos melhores elogios que já recebi."

Uma delas é porque comecei a ter amores literários com o Brasil muito cedo. Li a obra toda de Érico Veríssimo na adolescência. Era um dos primeiros grandes romances que nos davam para ler. Jamais esqueci a emoção que senti ao ler pela primeira vez Clarice Lispector. Foi quando pensei que queria escrever alguma coisa com aquela luz. Por Carlos Drummond de Andrade entrei na poesia brasileira. Outra coisa que contribuiu bastante para essa minha ligação com o Brasil é que há vinte anos tive uma enorme paixão por um brasileiro de São Paulo. Isso foi determinante para estreitar, em vários aspectos, meus laços com a cultura de vocês. Isso se deu, principalmente, na literatura, porque ele é jornalista e escritor. A paixão não foi muito longe porque havia imensos obstáculos, mas depois dela fiquei íntima dos escritores, da música brasileira e do linguajar, já que passei a usar muitas expressões em 'brasileiro'."

Primeira vez
"Vim ao Brasil pela primeira vez em 1999 como acompanhante de meu marido, o poeta Fernando Pinto do Amaral, que vinha à Bienal de Livros do Rio de Janeiro junto com uma delegação de outros escritores portugueses. Naquele ano a Bienal teve Portugal como país convidado e José Saramago era o 'topo do bolo' da comitiva. Eu não podia perder a chance de vir ao Rio de Janeiro, que sempre quis tanto ver. Ao chegar aqui, li um texto belíssimo em O Globo sobre meu livro Em Tuas Mãos. Além da resenha, o texto informava também que eu estaria no Brasil, mas não na delegação oficial do meu país. Acabou sendo um grande favor que o Paulo Roberto Pires, que escreveu a matéria, me fez, porque assim fui incluída como membro oficial da delegação. Isso por mérito de um brasileiro que eu não conhecia. Hoje ele é editor da Editora Planeta, que edita meus livros aqui. Portanto, meu primeiro leitor aqui tornou-se meu editor. O Brasil, de fato, me dá muita sorte."

Santo de casa não faz milagres
"Esse fato mostra que às vezes é mais fácil ser conhecido fora de seu próprio país. Sobretudo no meu caso. Minha entrada no jornalismo se deu aos 18 anos e comecei a escrever romances também relativamente cedo. Esse início foi um pouco complicado, uma vez que os meus colegas tinham um certo pé atrás com meu trabalho. É comum no meio jornalístico a pessoa começar a publicar livros enquanto está num jornal e levar o público que a conhece do periódico a comprar seu livro. Muitas vezes os colegas acham que isso nada mais é do que um jornalista querendo ser algo superior só porque quer fazer outra coisa. O que não é verdade. No Brasil ou em Portugal, temos grandes escritores que passaram por redações de jornais - é o caso do próprio Saramago e de outro querido escritor português, José Cardoso Pires. Seu livro Alexandre Alfa ganhou um prêmio no Brasil, mas em Portugal não chamou muita atenção. Talvez porque seja um romance que retrata a covardia dos intelectuais durante a ditadura dos anos de 1970 em Portugal, que faziam a revolução nos cafés em vez de irem às ruas. Creio que esse foi um dos motivos que contribuíram para que a ditadura portuguesa durasse tanto. A carapuça serviu para muita gente e muitos críticos literários sentiram-se retratados ali. Por isso, o livro não foi reconhecido lá. Mas aqui foi e ganhou um prêmio. Hoje ele é considerado consensualmente um grande escritor. Até porque morreu, e a morte tem essa vantagem. É uma tristeza, mas é assim que é."

É inevitável, a arte imita mesmo a vida
"Já é lugar comum dizer que a realidade ultrapassa a ficção. Mas nós, jornalistas, sabemos que as histórias que consideramos mais impossíveis são as que acontecem. Quando lancei Nas Tuas Mãos, vários colegas vieram me perguntar como eu tinha inventado coisa tão rocambolesca. O livro tem três histórias, e a que causou mais espanto foi a primeira, justamente a única que é verdadeira. Ouvi pela boca de uma amiga a história sobre uma tia dela que havia morrido louca, alguns anos após o marido falecer. Eles eram muito ricos e moraram a vida toda em um palacete. Ela casou-se com ele muito nova, mas nunca teve filhos. Com eles morava também um amigo do marido. Foi quando o marido morreu que o absurdo veio à tona. Ela confessou aos sobrinhos que, na verdade, o tal amigo era amante do marido e que ela era virgem. Depois de revelar tudo isso, a tia pediu autorização aos familiares para se casar com o amigo, pois não queria morar sozinha naquela casa enorme. Ambos não achavam conveniente somente viver juntos sem se casar, não queriam criar falatório. Ela argumentava que, já que eram tão cúmplices há tantos anos, nada mais natural do que se casarem. Só que os sobrinhos não permitiram o casamento, porque temiam ter que dividir a herança. Deram-na como louca, incapaz de tomar decisões. Essa minha amiga era uma parenta mais afastada e quando soube da história ficou muito chocada, porque a senhora acabou por morrer louca e sozinha, já que os tais sobrinhos nunca a visitaram. Essa história ficou na minha cabeça e comecei a ter pesadelos com uma mulher de cabelos muito compridos e despenteados que usava uma camisola e dizia: 'Fale comigo, eu preciso que você conte minha história, preciso que você me ouça'. Aquilo tornou-se uma obsessão. Eu trabalhava muito no jornal, mas tive que começar a escrever a história por causa do apelo dessa mulher. As três histórias que formam o livro são narrações em primeira pessoa. Na primeira, inspirada no caso dessa tia, a personagem escreve sua história a uma filha. Na segunda, essa filha relembra a mãe por meio de um álbum de fotografias imaginárias. Quis brincar um pouco com a máxima de 'uma imagem vale mais que mil palavras' dando mil palavras para substituir uma imagem. Esse álbum começa com a única memória que ela tem da mãe, que é uma fotografia. A última história segue com cartas da neta para a avó. Essa parte do livro traz o olhar de uma menina que cresceu em Lisboa no fim do século XX e convive com a democracia e com um novo modelo de mulher e de família. A gente não pensa nisso, mas o século XX viu pela primeira vez homens e mulheres que constituíram casais de fato. Até então, o que tínhamos eram unidades de poder, de dinheiro, de produção, etc. Interessa-me muito discutir também nesse livro o que é um casal, ou seja, como é quando duas pessoas vão viver juntas porque querem partilhar a intimidade - essa é uma noção que nasceu somente no século passado - e como é escolher a família que queremos ter - o que é uma noção da segunda metade do século XX e que é muito debatida em outro livro meu, o Fazes-me falta."

Fazes-me falta
"Esse livro tem dois protagonistas, um homem e uma mulher, que não são marido e mulher nem também namorados. Em Portugal, alguns críticos se referiram a eles como namorados ou amantes, o que é engraçado porque fica claro que ela nunca dormiu com ele. Ela sente desejo erótico por ele somente depois de morta - ela morre muito jovem - e começa a pensar que talvez devesse ter experimentado. Trata-se, na verdade, de um relacionamento que se manteve no limite da amizade colorida, como se diz aqui: eles compartilhavam tudo, chegaram a dormir na mesma cama, mas nunca chegaram às vias de fato. Ao contrário, compartilhavam as paixões que tinham e falavam um com o outro como dois amigos muito íntimos. Em Fazes-me Falta quero discutir se podem existir laços de amizade entre homens e mulheres, da maneira como há entre duas mulheres. Em relação aos homens, acho que eles ainda estão ainda um pouquinho atrasados nesse quesito. Em geral, os mais sensíveis já chegaram lá, o resto ainda passa por esse processo de reinvenção. Esse livro trata sobretudo desse sentimento muito moderno que é a amizade. A idéia do que significa ser e ter amigos, ou seja, de escolhermos a família que queremos, nunca foi tão forte e tão predominante na sociedade. Outra questão que me intriga é se a amizade é mesmo tão diferente da paixão como se pensa. Facilmente, fazemos uma cena de ciúme num relacionamento amoroso, sem pudor, mas sentimo-nos estranhos quando uma amiga mais próxima passa a ter outra amiga mais próxima. Isso ocorre mais na adolescência, mas não somente nela. Assim como quando o amigo que nos ligava todos os dias passa a nos ligar só uma vez por semana. Não se sofre como se sofre por um amor, provavelmente sofre-se mais porque o amigo é um pilar básico da nossa vida. A partir do momento que a família se pulverizou e, hoje, vivemos em grandes agregados, é com os amigos que contamos para ficarmos agarrados à estrutura quando o resto desaba. No fundo, os temas da ficção são sempre os mesmos, mas há pedaços de sentimentos que se tornam mais brilhantes numa época e que desaparecem noutra. E eu penso que as questões da intimidade, do casal, da amizade e da morte nunca estiveram tão ativas como hoje."

Inês Pedrosa esteve no Brasil participando da Mostra Sesc deArtes - Latinidades. Autora de variados estilos, já publicou ensaios biográficos, contos, livros infantis e acaba de lançar no Brasil, Fazes-me Falta, seu último romance