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Ficção
O Instante de Felicidade
Nossa garrafa, aí sobre a mesinha de cabeceira, ao lado do buquê de rosas e petúnias, contém um veneno fatal. Depois do nosso instante de felicidade, saciados de nós mesmos, encherei duas taças de cristal, cada um tomará sua porção e morreremos definitivamente abraçados.
Assim falou Ricardo ao entrar no quarto com Helena.
Ela comprimiu-lhe as mãos, um sorriso de ternura, afagou-lhe os cabelos e as costas, numa ansiedade tão angustiante, beijou-o sofregamente nos lábios e repetiu: "Enfim, nosso instante de felicidade, morreremos infinitamente unidos."
"Uma porção de felicidade, por menor que seja nos basta, Helena. Raríssimas pessoas conseguem, em toda a sua existência, uns poucos minutos de felicidade plena. Algumas vão juntando pela vida inteira migalhas de amor, restos de instantes apenas alegres, na tentativa de justificar seu tempo tão prolongado de mágoas, de frustrações, de repetidos períodos de infelicidade, de acenos que se perdem nos desvios das noites, de vagos sorrisos que nem são colhidos ou sequer aceitos, de ânsias reprimidas, de mãos estendidas na procura ou no apelo e nem há outras mãos para acolhê-las, e buscam alguma coisa pouco palpável que justifique sua existência.
Nós, Helena, só tivemos desencontros. Jamais pude colher um daqueles teus sorrisos que espalhavas na tua rua e pelos jardins, ou puxar teus cabelos e contar cada um dos fios que o vento assanhava na tua janela, e, no primeiro instante, quando teus seios brotaram e estendi para eles minhas mãos, numa ânsia tão minha e talvez tão tua, fui empurrado para o mundo, para os mares, para as guerras coletivas e individuais, espremido entre ódios e cobiças, e tu ficaste no cais, me acenando, num pranto tão comum às despedidas. E quando regressei, depois de tantas viagens e sangramentos na alma, eram outros teus caminhos, havia amargor no teu sorriso por feridas que te haviam causado, pela solidão dos dias, a monotonia das horas, e, mais uma vez eu é que gesticulava do cais meu pranto de despedida, e embrenhei-me na selva de outros braços, de outros beijos em recantos desse mundo, em contatos que só reabriram outras feridas. Quando te vi outra vez sozinha, tentei segurar tuas mãos, nosso sorriso havia sofrido tantos desgastes que os dedos se desprenderam, e cada um de nós dois mergulhou outra vez em abismos, havia mortes e prantos em nossas caminhadas e travessias. E, ao enxugar tuas lágrimas, senti o quanto os deuses, em travessuras de mau gosto, haviam armado empecilhos em nossas vidas.
Agora, numa dessas encruzilhadas, quando os deuses se descuidaram de nós, enfim estamos nos encontrando.
Uma hora, talvez, seja o suficiente para este nosso encontro, com intensidade capaz de atingirmos a eternidade. São mesmo tão caros, tão raros os instantes de amor! Esquece tuas madrugadas de pranto. Façamos de conta que estamos nos vendo pela vez primeira, que trazes aquele teu sorriso de menina e que eu não me contagiei nesses muitos embates com o mundo. Eu mesmo colhi estas petúnias e rosas que juntei nessa jarra, ainda retêm em suas pétalas gotas de orvalho. Para mim teu corpo contém o orvalho das horas de cada manhã de tua vida. Deixa que eu retire a tua roupa para que teu corpo resplandeça, teus seios serão túmidos e virgens de contatos anteriores, nossa memória estará iniciando e se concluindo neste momento, sem passado algum entre nós. Vamos, Helena, deixa no chão tuas vestes, juntas das minhas, solta os teus cabelos, liberta teu sorriso, na pureza que resguardamos no divino recanto da nossa individualidade. Morreremos sorrindo. Vi alguns soldados na trincheira, e alguns náufragos perdidos nos oceanos morrerem com um sorriso nos lábios, porque nesse instante recordavam o último ato de amor de que guardavam lembrança, quem sabe um simples toque de mão da pessoa amada, na despedida, um aceno ou sorriso à distância, talvez um beijo na face recebido de sua mãe ou a última posse do corpo de sua amada, e morreram em estado de graça por aquele momento de felicidade a que tiveram direito, talvez o único, em toda a sua existência."
Sim, Helena concordou, desfazendo-se das vestes e expondo sua nudez integral. "Façamos de conta que desde criança nos cobiçamos e fostes apenas um menino travesso que não passava pela minha rua quando eu me debruçava à janela a tua espera, e que teu rosto era a única paisagem que eu ansiava, e todos os outros rostos e mãos eram profanos, o toque em meu corpo das outras criaturas foi simplesmente agressão, por não entender que minha presença era passageira, enquanto os definitivos caminhos, só nossos, não se cruzavam."
Assim, os dois se uniram na posse prolongada, fazendo do movimento de cada segundo a carência de uma eternidade. "De tão alimentada a nossa ânsia do encontro, acho que a morte, ao término dessa nossa posse, será um intenso gozo sexual", ele disse em seu ouvido ao morder-lhe a orelha e beijar seu pescoço e acariciar-lhe os seios. "Como a aranha-negra macho que possui a fêmea e, no êxtase do gozo sexual, é por ela devorado, nós somos o macho e a fêmea alternadamente, seremos mutuamente devorados, porque nem podemos mais distinguir a dessemelhança entre nós, tamanha nossa integração como um só elemento infinitamente unido."
Ao término, Ricardo abriu a garrafa, encheu as duas taças.
"Vamos agora ingerir nossa porção de eternidade, porque nada mais estaremos almejando depois de nosso encontro. Qualquer mão que se estendesse para você ou para mim seria supérflua, nada acrescentaria, qualquer lábio que se oferecesse para tocar os nossos seria agressivo. E nem há porque confiar nos deuses que são bem travessos nesse jogo de causar desencontros. A partir de agora, nós somos nosso próprio deus, princípio e fim, macho e fêmea numa só unidade."
Ele ergueu as duas taças, as mãos de Helena estenderam-se para segurar a que lhe cabia, no seu último gesto de ternura, entrelaçaram os pulsos.
"- À nossa eternidade!" - brindou Ricardo.
"- À nossa eternidade!" - repetiu Helena.
Ambos foram levando aos lábios, serenamente, as suas taças.
Moacir Lopes é escritor, autor de A Ostra e o Vento