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Salada Paulista
São Paulo chega à virada do milênio com um pé na pós-modernidade e outro na Idade Média. Basta um breve passeio, dos Jardins à periferia da Zona Sul, para perceber que essa simbiose entre caviar, edifícios inteligentes, Internet e carrões importados, de um lado, e esgoto a céu aberto, favelas, cortiços, crack e meninos de rua, de outro, não podia dar boa coisa. Uma cidade feia, suja, desorganizada e mal-amada. Cidade em que o espaço público é privatizado impunemente, e o espaço privado - quando pobre - invadido e violentado sem cerimônia.
Entretanto, quem afirma que São Paulo é assim apenas em razão das desigualdades sociais, que a cidade é feita para os ricos e que por isso os pobres não têm porque zelar por ela, diz bobagem. Curitiba, por exemplo, cuja estrutura social não é diferente da nossa, sabidamente é uma cidade melhor, mesmo nos bairros mais modestos. Por outro lado, a classe média e as elites paulistanas não são lá bons exemplos de cidadania. As toneladas de lixo jogadas pelas janelas dos veículos, todos os dias, demonstram que São Paulo é emporcalhada por cidadãos de fina educação, boa cultura e bons saldos bancários. Os mesmos que transgridem as leis de trânsito e privatizam as ruas onde moram - com barreiras, correntes, guaritas - em nome da segurança de suas famílias e, digamos assim, de uma higiênica distância da cidade medieval que os cerca.
Já os que dizem que o caos decorre da má qualidade dos serviços e obras, públicos ou privados, não deixam de ter razão. Pontes e viadutos que "envelhecem" antes do tempo; edifícios esplendorosos que logo transformam-se em sucata; ruas asfaltadas que viram mar de crateras depois de algumas chuvas; e a sensibilidade das escavadeiras para preservar a memória urbana. Como ave de rapina, a publicidade não perde tempo em pousar sobre os escombros, privatizando a paisagem com suas placas, lambe-lambes, telões eletrônicos e out-doors, fazendo-nos engolir todo o lixo visual que bem entenda jogar em nossos olhos. Contudo, seria ingenuidade imaginar que isso ocorre apenas por falta de legislação ou de recursos, esquecendo nossa proverbial vocação à burla e à corrupção.
Já os que protestam contra invasão dos camelôs e dos sem-teto, emudecem diante dos bancos que invadem o passeio público com suas cabines 24 horas e que nos fazem enfrentar situações dignas de Sarajevo, com seus carros-fortes e homens armados que tomam as calçadas de assalto para proteger seu rico dinheirinho. Não bastasse tudo isso, qualquer grupo - perueiros, sindicalistas ou estudantes - pode fazer parar a cidade, sem que nada se faça para coibir tais abusos.
Há até mesmo teorias estéticas e psicológicas para explicar a salada urbana de São Paulo. Mas não tenhamos ilusões: somos todos culpados. Pelo que fazemos e pelo que deixamos de fazer. Oportunistas ou desleixados, interessados ou omissos, cada um de nós é responsável pelo prato que come. Inclusive pelo mau cheiro que sobe das cozinhas oficiais, onde é comum se misturar alho com bugalhos e raramente se distingue o joio do trigo.
Erivelto Busto Garcia é sociólogo e Gerente de Estudos e Desenvolvimento do Sesc