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Ficção
Cachorrão

As pernas do Cachorrão já não andavam mais.

Houve um tempo (era uma vez) que sim, caminhavam, pulavam, corriam, fugiam, até o dia em que parece que o destino bateu à sua porta, mas na rua, a céu aberto. Rotina, polícia ao morro: entre outras tantas sem direção, uma e só uma e solitária bala alojou-se naquele espinhão, espinhaço, que sustentava - como um mastro as velas cheias - o corpo-só-músculo de Cachorrão.

Cachorrão cumpriu pena na Ilha Grande.

Por bom comportamento ganhou condicional. Voltou pro morro, lá em cima, longe das tentações, ilhado da cidade e na própria cidade. Quase não descia.

O Cachorrão tinha um barraco, uma cadeira de roda e uma companheira. O barraco era de zinco e alvenaria; a cadeira de roda de terceira ou quarta mão; e a companheira, Durvalina, mulata redonda e risonha que, além de aparar arestas e segurar pepinos, enfrentava o batente de enfermeira num hospital público.

Cachorrão passava o dia em cima da cadeira de roda e em frente do barraco. Papeava com os vizinhos, batia papo com ele mesmo, a olhar a cidade esparramada lá embaixo. Luzes do céu, brilhos da noite, ruas e carros correndo escondidos. Em que pensava Cachorrão? Dizem que quem não faz, manda - mas quem cisma faz o quê?

Ora, paralítico não é presunto metido em pijama de madeira debaixo da terra. Quem é vivo sempre parece e aparece. E quando o afilhado e protegido Jorginho Tiroteio aparecia, Cachorrão descia ao pé do morro. Era uma mão-de-obra: a barriga de Cachorrão, dobrada em V, apoiava-se no ombro de Tiroteio e os dois seguiam pelas ruas, ruelas, escarpas e escadinhas - até a birosca, o terreiro da Vovó d'Angola. Bom axé, por mistério ou ofício de Xangô e Ogum no que talvez fosse o raro gesto humano, humilde na vida de Jorginho Tiroteio. Era de vez em quando e Cachorrão aliviava as idéias, trocava assunto, soltava o riso, se esquentava com a branquinha e se aconselhava com os búzios da Vovó.

Ficava de alma lavada. Serviço completo de leva-e-traz, JorginhoTiroteio sustentava Cachorrão no ombro e percorria o caminho de volta e das pedras, que morro acima a conversa era outra, xará. Naquele iri-biri acertavam o papo, mesmo com Cachorrão em posição desacertada, testa pro chão: verdade é que Jorginho Tiroteio mais escutava e aprendia do que falava e dizia. Cachorrão era pai que nunca teve e viu, e era assim a educação no morro: bandido novo respeitava bandido aposentado.

Acontecia assim e assado e muito mais: moleque, pivete, trabalhador, malandro, batalhador e até mulher apaixonada ou abandonada - todos faziam visita e romaria. Cachorrão sabia escutar, sabia falar: para cabeça incerta, uma sentença certa, certeira. Em briga de marido e mulher não se mete a colher? Mas eles vinham atrás dele, desabafavam, se xingavam, se acalmavam, apaziguados ou resignados, que a vida era mesmo que nem trem da Central, espremida, com freadas bruscas, isso mesmo, em cima dos trilhos, zoando nas curvas. Moral Cachorrão tinha, desde os tempos de bandidagem profissional, camiseta em cima do corpo, pernas no chão da cidade. No morro o pessoal sabia: ajudava as crianças, respeitava as mulheres, protegia a rapaziada. Legal e leal, gente fina enfim, Cachorrão depois da prisão e da cadeira de roda aumentou sua filosofia sobre a vida e o morro. Até trombadinha, antes de enfrentar o asfalto, trocava palavrinha com ele, pedia a bênção.

Se não havia poesia nessa vida, nego inventa poesia nas idéias: pois ninguém nunca havia imaginado antes, mas Cachorrão virou compositor. Duma caixinha de fósforos, tirava samba, pagode, partido alto. Os carnavalescos escutavam, na moita. Acabaram escolhendo um samba enredo dele. Nos ensaios todos sabiam de cor:

"Fantasiei meu coração
e o povo de alegria
mesmo na contramão
da passarela e do dia..."

Na hora em que a escola ia entrar na avenida, como um passarinho a se misturar com as cores dos adereços e das alegrias, no entanto em silêncio, ao contrário dos surdos, tamborins, reco-recos e baterias, o coração de Cachorrão falhou no compasso.

Foi ataque fulminante.

A imprensa nem falou nada.

O morro todo chorou - e era Carnaval.

Flávio Moreira da Costa é escritor, autor de Nem Todo Canário é Belga