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Mariana Salomão Carrara
Qualquer coisa morta na cara
Bate com força as duas palmas no chão, o sinal para o cachorro bater também as suas patas em saltinhos extasiados e correr depois para o colo, ou quem sabe para cima da cabeça que o menino deita na grama com os olhos fechados esperando as lambidas minúsculas, o cachorro pequeno demais para alcançar o nariz deslizando pelo ombro as patas de trás enroscando na camiseta cambalhotas e o menino de novo bate com força as duas palmas no chão e o cachorro responde batendo as suas e vem depressa e o colo e a cabeça e o nariz.
O menino levanta e corre aos tropeços, o cachorro ao lado, são dois filhotes cambaleando ainda os primeiros passos, o menino pisando as plantas do jardim que para o cachorro é ainda uma floresta uma imensidão de galhos e sombras, e deitam os dois de novo, rolar e lamber o nariz, o menino lambe de volta e ri e cospe mas volta a lamber a língua do cachorro que é tão pequeno que tenta entrar dentro da boca do menino que engasga e ri e volta a bater as duas palmas no chão, agora na pedra molhada da chuva antiga que ele espalma e o cachorro bate as duas patas da frente no chão e torna a pular e cabeça e nariz e cambalhotas.
Correm juntos até a beira da piscina e o menino levanta o cachorro por cima da água, olha você aqui olha esse é você, e o sol faz uma sombra bonita na água as patinhas nadando no ar e o cachorro olhando só o menino, sem ver o reflexo nem a sombra nem a água, nadando no ar e querendo alcançar o narizinho para outra lambida perguntando com as orelhas cadê as palmas na pedra e cabeça e cambalhota.
O menino apoia o cachorro no chão e ele pede colo de novo, menino com os joelhos na beira da piscina, a pedra áspera, o cachorro se deixa erguer de novo por sobre a água, a sombra dos pelos mexendo no vento, olha você aqui olha esse é você, e os olhinhos do cachorro nos olhos do menino que sorri e não entende muito bem o que acontece não sabe se são os braços esticados que cansam e doem ou se é uma curiosidade de filhote que ele também é, não entende mas abre as mãos e solta o cachorro que desce fundo na água e não era isso que o menino esperava, achava que ele ia boiar e nadar mas o cachorro com as suas cambalhotas e bolhas no fundo da piscina e o menino olha em volta e confere, ninguém espia, e na verdade alguém devia estar ali e nunca está, nem nas janelas, ninguém nunca olha, que raiva que dá das pessoas todas, o cachorro enfim emerge em ganidos baixos engasgados golfadas de ar enrolando na linguinha que tenta alcançar o nariz do menino agora muito longe, afastado da beira da piscina, talvez se ele se debruçasse alcançaria o filhote mas a essa altura com esses barulhos e depois desse sofrimento o que seria esse cachorro, o que pensaria do menino, talvez não lambesse mais, quem sabe mordesse, ou tivesse pra sempre qualquer coisa morta na cara, o cachorro cada vez mais longe da borda, as patas embaralhadas exaustas o pelo pesado de cloro, o menino olhando apavorado, esse ainda é você será já não sei, perigoso alguém ouvir esse choro encharcado, e o menino corre para dentro da casa e se abaixa sob a janela e espera, espera muito tempo até que já não ouça nada, e contêm os sons do próprio choro, o olho fechado, talvez planejando a mentira, ou esperando a lambida, ou apagando a imagem, olha você aqui esse é você, investiga de longe a piscina que ainda reverbera em ondas lentas, talvez seja só o vento, o menino respira mais devagar e espera a noite quando talvez alguém estranhe e todos aflitos procurem juntos o filhote e seja o menino mesmo quem o encontre duro e cheio de água, olha você aqui, e espantado subirá finalmente no colo da mãe e os dias vão passando, qualquer coisa morta na cara.
Ramalheira
De tempos em tempos eu sou uma árvore. Há o perigo de estar com minha filha no colo e o braço torna-se um galho retorcido e alto que avança pela janela, frutos que me despencam da pele que engrossa depressa em cascos trepidantes de colônias de formigas que me passeiam em fila, a cabeça dói de repente muitíssimo, folheia-se larga e verde para além do teto, não caibo no quarto e a copa se curva a coluna enverga e as pernas se trançam em raízes gigantes, e então me flagram assim súbita figueira doméstica, e a seiva me escorre quente e densa. Grito por sol, qualquer sol que seja uma lâmpada fosforescente um abajur, e fico aqui troncuda e secular espantando o intruso com os galhos revoltos.
Não me deixam portanto segurar minha filha, nem um instante porque eu de repente árvore a despencá-la minúsculo fruto, por isso eles vêm e me colhem a menina, não vá essa mãe arvorar-se dela.
Espio a menina no berço, música amena, tudo em ordem, fauna e flora do quarto contidas, não posso compreender a maldição nem adivinhar o gérmen e vou me armando repentina planta e acontece de me notarem antes de avançar pelo teto, as raízes ainda fracas os braços resistindo caulescentes enquanto me tombam e me arrastam na folharia que me desprega dos cabelos, atam-me à boleia da caminhonete onde continuo a engrossar e espessar seca, as ranhuras queimando das formigas.
Eles se apressam e nas ruas as outras árvores resplandecem e me olham assim caída aberração das fêmeas todas, as entranhas se encaracolam fibrosas, o peito em nós lenhosos, e se no caminho chove me torno escorregadia de limo e eles precisam de muitos médicos para conter-me, o hospital tão experiente em desumanizações.
Tentam tratar a mulher e não a árvore, e eu insisto que o problema é a árvore não me entendem eu digo a louca é a árvore que me toma e não larga arranquem de vez as sementes mas não arrancam, remédios, injeções, amarram-me os braços como se assim não florescessem e eletrizam-me os dutos e me devolvem em casa, eucalipto venenoso impossibilitando o solo e a vida. Torno a esperar o sol no quarto, minha filha chora baixinho na porta ao lado, e me estico nos restos da minha folhagem dentro da minha sombra, e sou oca, a mais oca das mulheres.
Um dia me arborizo e floreio inteira e gigante e maciça e estendo os braços amadeirados e firmes e espero anos até que me confiem e me ajustem as cordas de um balanço e quem sabe ela venha, a minha filha, ainda menina e me veja assim frondosa e me escale num abraço os pés descalços na minha casca e se ajeite no farfalhar fresco das minhas folhas e se abandone contente no meu balanço, e eu sinta no tronco o esgar das cordas, o tremor das suas idas e vindas, o vento pequeno sob os meus galhos. A doçura da sua primeira gargalhada.