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Todos em um
A PUJANÇA E O TALENTO CRIATIVO DO POETA,
COMPOSITOR E DIRETOR DE TEATRO JORGE SALOMÃO
Cosmopolita, expansivo, agregador, ligado à música, às artes visuais e ao teatro. Jorge Salomão, um dos nomes marcantes da contracultura no Brasil, sabia ser múltiplo e, principalmente, viver o seu tempo com entrega. Baiano da cidade de Jequié, fez parte, no início dos anos 1970, das manifestações culturais vanguardistas e libertárias que tinham o Rio de Janeiro como epicentro e desafiavam a ditadura militar vigente. Em sua companhia, a presença luzente do irmão, o poeta Waly Salomão (1943-2003), um dos expoentes da estética pós-tropicalista (leia mais no boxe Entre irmãos).
A partir de 1977, Jorge desbravou Nova York, testemunhando a ascensão de figuras como Jean-Michel Basquiat (1960-1988) e Keith Haring (1958-1990), ícones da arte urbana que despontavam no período. A experiência seria fundamental para o estilo que ele viria a exercitar, na década de 1990, em sua obra literária, como explica Christovam de Chevalier, jornalista, poeta e amigo do artista.
“Ele poderia ter reinventado uma literatura mais regionalista, como aconteceu com Raduan Nassar, ou ter feito uma literatura urbana que mantém vínculos com um viés mais interiorano do autor, como percebemos na literatura do Caio Fernando Abreu (1948-1996) e João Gilberto Noll (1946-2017), autores do Rio Grande do Sul”, analisa. “Mas, na cidade, Salomão viu de perto o trabalho de pintores como Andy Warhol (1928-1987). Da mesma forma que esses artistas foram extremamente inovadores na arte visual, ele leva essa mesma inovação para o discurso poético, e isso faz dele único”, reflete Chevalier.
Nos Estados Unidos, o poeta baiano conviveu, ainda, com o artista performático, pintor e escultor carioca Hélio Oiticica (1937-1980), com quem desenvolveu uma grande amizade.
FÚRIA E FOLIA
De pai sírio e mãe baiana, sertaneja – aos quais atribuía, respectivamente, seu lado afetuoso e comunicativo –, Jorge Salomão, nascido em 1946, estudou direção de teatro, na juventude, com o teórico e diretor gaúcho Luiz Carlos Maciel (1938-2017), na Universidade Federal da Bahia (UFBA). Maciel, um dos fundadores do jornal O Pasquim, é considerado pioneiro na divulgação da contracultura no país.
Aos 17 anos, o jovem Salomão fez a assistência do mestre na encenação de Morte e Vida Severina, de João Cabral de Melo Neto (1920-1999). Posteriormente, assinou a direção de várias montagens de destaque, entre as quais A Boa Alma de Setsuan, de Bertolt Brecht (1898-1936). Em O Macaco da Vizinha, comédia de costumes de Joaquim Manuel de Macedo (1820-1882), inseriu canções dos Beatles e Rolling Stones na trilha sonora.
Em 1971, estabelecido no Rio de Janeiro, era presença frequente nas Dunas do Barato (também chamadas de Dunas da Gal, em homenagem à cantora Gal Costa), trecho próximo ao antigo píer da praia de Ipanema que servia de ponto de encontro para os artistas do movimento Desbunde – entre eles, os compositores Caetano Veloso e Jards Macalé e o cineasta Glauber Rocha (1939-1981).
Naquele ano, Jorge passou a colaborar com o esboço conceitual da revista Navilouca – criada por Waly e o poeta piauiense Torquato Neto (1944-1972) –, partidária das manifestações artísticas de vanguarda, como a Tropicália, o cinema marginal e a poesia concreta. A emblemática publicação, com o inconfundível projeto gráfico de Óscar Ramos (1938-2019) e Luciano Figueiredo, contou com poucos recursos e circulou apenas por uma edição, em 1974, como uma antologia de poetas experimentais.
Já em março de 1972, Jorge Salomão dirigiu e produziu o histórico espetáculo Luiz Gonzaga Volta pra Curtir, que levou o sanfoneiro e “Rei do Baião” ao palco do Teatro Tereza Rachel, no Rio. No mesmo ano, atuou no cinema, pela primeira vez, em A Múmia Volta a Atacar, de Ivan Cardoso. Versátil, repetiria a experiência em 1992 com Perigo Negro, de Rogério Sganzerla (1946-2004).
Jorge Salomão. Crédito: Elena Moccagatta
fogo
falo o que falo
minha voz não treme
nem tremula o ímpeto que nela há
ela é límpida
como o sol
sobre o varal de roupas penduradas
é certa, afiada
não carrega mentiras
essa é sua estrada
não camufla verdades
nem esconde emoções
é linguagem
Do livro Alguns Poemas e + Alguns, 2016
LÍNGUA NO FORMIGUEIRO
Em 1984, Salomão daria início às experimentações de sua vertente letrista musical, incentivado por Waly e pelo também poeta e amigo Antonio Cicero. “Ter estreado poeticamente na música permitiu ao Jorge deixar a forma, o cânone de lado, e ter uma agilidade e uma precisão no discurso que ele leva para toda sua poesia”, explica Christovam de Chevalier.
Uma das parcerias mais prolíficas de Jorge Salomão foi com o cantor, compositor e arranjador Nico Rezende. Juntos, entre outros trabalhos, compuseram Noite, famosa na voz de Zizi Possi, do álbum Amor & Música (1987), e Pseudoblues, interpretada por Marina Lima em uma das faixas do disco Virgem, também lançado em 1987 (leia mais no boxe Vozes em celebração).
“Conforme fazíamos as canções, ele foi se descobrindo poeta”, relembra Nico Rezende, que enaltece a constante alegria que o parceiro esbanjava nos momentos de criação conjunta. “Além de ser multifacetado, aonde ele chegava não havia desânimo ou tristeza”, complementa.
Nas palavras do artista visual João Salomão, filho do poeta, aos múltiplos talentos e legado artístico do pai pode-se somar uma personalidade fascinante, solar. “Ele acordava muito cedo, já cantando, dançando. Como uma frase que costumava dizer: ‘Os monstros acordam cedo’. Abria as janelas para o novo dia e gritava: ‘Viva! Viva! Viva!’. Uma energia contagiante”, rememora.
Vivendo na mesma Nova York que impactou o artista décadas atrás, João acompanhou o pai no hospital por ocasião das cirurgias que antecederam sua morte, dia 7 de março de 2020, aos 73 anos, em decorrência de complicações médicas causadas por um infarto. “Tive, por fim, a oportunidade de dizer-lhe que ele seria avô de uma menina. Rumi Lua Tiari Salomão fará 1 ano.”
Antologia com sete livros de Jorge Salomão. Crédito: Divulgação
Antologia 7 em 1
Com texto de contracapa assinado pela escritora Nélida Piñon, esta edição contém os volumes Mosaical (primeiro livro, lançado em 1994, aos 47 anos), O Olho do Tempo, Campo da Amérika, Sonoro, A Estrada do Pensamento, Conversa de Mosquito e Alguns Poemas e + Alguns, lançados, originalmente, entre 1994 e 2016. A obra oferece uma ampla visão sobre a evolução de temas e formatos da poesia de Jorge Salomão. Editora: Gryphus, 2019, 252 páginas.
Entre irmãos
PARCERIA TEVE INÍCIO AINDA NA INFÂNCIA
E CONTINUOU FIRME AO LONGO DOS ANOS
Jorge e Waly Salomão (foto) tinham o mesmo sorriso largo e uma diferença de idade de três anos. Embora donos de personalidades fortes e carismáticas, eram diferentes, cada um com sua forma singular de se expressar, de acordo com o filósofo Khalid Salomão, filho de Waly. “Uma similaridade talvez seja o amor pela arte, música e literatura, que certamente consideravam bens básicos para qualquer existência. Meu pai sempre acreditou na literatura como elemento de mudança, que deveria fazer parte de qualquer cesta básica, e Jorge compartilhava tal sentimento”, relata. Em suas últimas entrevistas, Jorge afirmava ter finalizado uma obra em homenagem ao irmão, cujo título provisório é Duas ou três coisas que sei dele ou Waly, Waly!, ainda sem previsão de edição e lançamento.
Na infância, os artistas tinham o hábito de ouvir a Rádio Nacional e dividiam o apreço pelos livros. Na ampla casa em Jequié, repleta de árvores no quintal, a prole composta de dez filhos brincava interpretando, no improviso familiar, cenas que apenas escutavam nos programas de auditório da época, pois não havia acesso à televisão. Mesmo assim, a diversão era garantida pela dupla galhofeira. Seguiram bem-humorados – e unidos – durante toda a vida.
Como irmão mais velho, Waly foi o primeiro a completar os estudos secundários em Salvador. No final dos anos 1960, ele seria, também, o precursor da mudança para o eixo Rio de Janeiro-São Paulo, após se formar em Direito pela Universidade Federal da Bahia.
Em 1967, Jorge seguiria os passos do irmão. “Esse cuidado sempre permeou a relação dos dois. Minhas lembranças são associadas a essa dinâmica familiar entre irmãos que, normalmente, é atravessada por encontros e desencontros, mas em que prevalece o amor, sentimento sempre presente”, diz Khalid Salomão.
Waly Salomão, em 1981 | Crédito: Antônio Carlos Miguel
duplo
eu e minha sombra
na poça d’água
na lama
no carnaval
no circo
no disco a rolar
no alto mar
no deserto dos dias
no negro de nós
eu ela
a voar
juntos a brincar
conforme a luz
jogo de amar
Do livro Mosaical, 1994
em mim não habita o deserto que há em ti
em mim não habita o deserto que há em ti
minha alma é um oásis luminoso
você constrói sua jaula, e nela quer ficar
cuidado
eu faço o que acho que deve ser feito na hora certa
existe diferença entre paixão e projeção?
será que terei de me tornar um insensível
só pra suprir a demanda do mercado atual?
quanto mais eu me acho mais eu me perco
que os tambores batam
e que tudo se acenda forte!
Do livro Mosaical, 1994
Jorge Salomão. Crédito: Elena Moccagatta
Vozes em celebração
DISCO POÉTICAS REÚNE GRANDES INTÉRPRETES
PARA HOMENAGEAR OBRAS DO MULTIARTISTA
O álbum Poéticas, lançamento do Selo Sesc já disponível nos principais players de streaming, presta um tributo póstumo a Jorge Salomão. Gravado entre 2019 e o início de 2020, sob o olhar atento do artista, que acompanhou todo o processo de registro, o trabalho apresenta 15 faixas em que é possível percorrer distintas épocas de sua carreira.
Com direção artística de Luiz Nogueira e direção e produção musical de Mario Gil, Poéticas traz novas roupagens para os hits Pseudoblues, revisitado pela cantora paulistana Mônica Salmaso (foto abaixo), e Noite, que recebeu a interpretação de Renato Braz.
A cantora paulistana Mônica Salmaso. Crédito: Tomada Produções
Canções inéditas foram gravadas apenas agora, como Todas as Manhãs, na voz de Roberto Frejat, o parceiro mais frequente do poeta baiano. Comendo Vidro, escrita com Guto Goffi e interpretada por Zeca Baleiro, também é destaque da coletânea. O álbum tem, ao todo, a participação de 13 cantores e cantoras de diferentes gerações. Ao estilo do homenageado, concentra um amálgama de apostas ao lado de artistas consagrados, como Wanderléa, Zélia Duncan, Áurea Martins, Jussara Silveira, Chico Chico (filho de Cássia Eller), Almério, Khrystal, Patrícia Mellodi e Dani Black.
No texto de apresentação do disco, o jornalista Cláudio Leal define bem a seleção: “Poéticas, assim no plural, é o álbum de canções de um artista numeroso: diretor teatral, ator, iluminador, agitador, letrista, performer. Ou, numa síntese, poeta e malabarista. Seu destino é um lance de dados, seu reino é deste mundo. E ele, Navilouca, só se estabiliza quando em chamas. A poesia de Jorge Salomão domina a linguagem do fogo e nos convida a dançar em volta de sua fogueira”.
*Para escutar Poéticas, acesse: https://tratore.ffm.to/poeticas e https://sesc.digital/colecao/poeticas