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Um passo à frente

Bruna T. Coelho
Bruna T. Coelho

DO SUPORTE FÍSICO AO DIGITAL, A ARTISTA REGINA SILVEIRA COMUNICA

SUA POÉTICA EM DIFERENTES MEIOS E LINGUAGENS

 

Hoje, para a artista Regina Silveira, 82 anos, o desenho é o principal suporte onde irá rascunhar o próximo trabalho, seja ele uma pintura, um vídeo ou uma projeção de animação digital em alguma praça pública. Com o passar do tempo, diferentes linguagens foram incorporadas pela artista, que, no início da década de 1960, teve aulas de pintura com Iberê Camargo (1914-1994), xilogravura com Francisco Stockinger (1919-2009) e litogravura com Marcelo Grassmann (1925-2013), em Porto Alegre. Como a mosca projetada na Praça Mauá, na capital fluminense (Surveillance, 2015), as sombras adesivadas de espátulas, colheres, formigas, lulas e lagostas (Inventário, 2019) na comedoria do Sesc 24 de Maio ou, mais recentemente, a própria mão em 3D reproduzida em vídeo e com a trilha sonora de engrenagens enferrujadas na exposição FARSA. Língua, Fratura, Ficção: Brasil-Portugal até janeiro passado, no Sesc Pompeia, Regina está sempre um passo à frente quando o assunto é tecnologia como suporte para narrar sua particular poesia visual. “Minhas explorações dos meios e das possibilidades da linguagem estão todas, mais ou menos, costuradas dentro de parâmetros que são, antes de qualquer outra coisa, poéticos, não estão atrás das novidades que os meios oferecem”, ressalta. Dentro ou fora de museus e galerias, num diálogo cada vez mais focado, aliás, no espaço público, Regina se intitula “artista e ponto”. Nem brasileira, nem do mundo, nem “novidadeira”, nem high tech. Mas uma artista de obras que afetam e interferem.

 

PARÂMETROS POÉTICOS

Faço essa exploração dos meios, mas quero explicar um pouco a relação com a poesia visual. E a poesia visual sempre esteve presente – signos de diversas procedências visuais e de linguagem que se combinam de muitas maneiras no meu trabalho. Tive uma formação de pintora e gravadora pelas contingências da minha geração e como se formavam alunos dessa geração em Artes. Mas minhas explorações dos meios e das possibilidades da linguagem estão todas, mais ou menos, costuradas dentro de parâmetros que são, antes de qualquer outra coisa, poéticos, não estão atrás das novidades que os meios oferecem. Penso que muitos dos trabalhos se encaixam numa tradição irônica do ilusionismo. Ou seja, o ilusionismo e as fantasmagorias estiveram sempre muito presentes no meu imaginário. Então, por exemplo, as sombras, as ausências, os fantasmas – sempre os explorei em diversas circunstâncias, em diversas séries de trabalho.

 

UP TO DATE

Fui tratando de atualizar as linguagens e as possibilidades de expressão e de criação. Mas na tradição ilusionista, no sentido de uso indiscriminado de criação, eu me situo mais numa área crítica. Posso entender o modo como artistas como Marcel Duchamp e René Magritte se encaixaram na tradição do Iluminismo e em todas as temáticas do cinema, do pré-cinema, dos maquinários que produziam fantasmagorias. A última intervenção que fiz com a coleção Yunes (2020) foi com realidades aumentadas [no projeto Caixa de Pandora, que promove intervenções de artistas contemporâneos na coleção particular de Ivani e Jorge Yunes]. Mas não é porque eu sou uma artista “novidadeira”, e sim porque eu tinha que criar aquele tipo de enxerto fantasmagórico no real daquela coleção. Assim como ousei fazer uns labirintos de realidade virtual numa exposição no MuBe (2018), porque eles promoviam a espécie de sentimento que eu queria encapsular. Então, o que vem primeiro é o que precisa ser dito e vou atrás do meio que seja efetivo. Ultimamente tem sido a realidade virtual, aumentada. Claro que tenho grandes equipes de trabalho e recorro a essas pessoas. Eu venho com a ideia. Quer dizer, eu me encaixo em muitos lugares.

 

 

Obra Mundus Admirabilis, Exposição Sueño de Mirra y Otras Constelaciones (2014), Museu Amparo, Puebla, México

 

 

ESTOU NA RUA

Gostaria de falar um pouco da relação que tenho tido esses anos com a arte pública, anônima mesma, como foi a mosca, os fantasmas. Tenho feito disco voador e intervenções desse tipo sem marca de mão (aliás, a mão é uma constante no meu trabalho, e acho que ali há marca autográfica, uma presença). Acredito num poder de transformação que as intervenções nos espaços públicos podem proporcionar para o público que não necessariamente é de arte. A minha aposta mais forte tem sido essa, um pouco fora dos espaços institucionais, na pele da cidade mesmo, gosto desse desafio. Tenho feito em outros lugares pelo mundo, em Havana [Cuba], na Polônia. Ou seja, gosto da ideia da intervenção pública, mesmo que seja efêmera, e conservo a memória fotográfica, documental, em maquetes. Mas ela é muito efetiva em produzir os efeitos da arte, que é transformar a relação com o mundo, seja por meio de fantasmas, seja por meio da beleza. Ela é a intermediação do artista com o real. Tenho feito muitas coisas e passado dificuldades para preservá-las quando são permanentes. Mas continuo fazendo mesmo assim, e buscando soluções.

 

CADA ARTISTA TEM SEU POÇO E DELE VAI TIRANDO IDEIAS COMO SE FOSSEM ÁGUA

 

 

JUSTAPOSIÇÃO DE NARRATIVAS

Quantas e quantas intervenções gráficas desde os anos 1990 tenho feito em arquiteturas diversas pelo mundo, e que são transformadoras daquele lugar... O que faço é justapor uma narrativa em cima da narrativa da própria arquitetura. Claro que tenho que me relacionar com aquele lugar, como fiz com o Palácio de Cristal, no Museu Reina Sofia em Madri (Quimera, 2005), e em tantos outros espaços. Tenho que me relacionar com aquele lugar, com aquela história, com o uso daquele espaço. Aí, enxergo uma narrativa gráfica que é, por um breve tempo, uma transformação daquele espaço. Por exemplo, você enxerga milhares de pegadas de animais e de pessoas na fachada e no interior de um local, aquilo é como um evento fantasmagórico: Como entraram? Como andaram pelas paredes? Não sei se tem humor (nas obras), às vezes penso que é terrível, mas quero que aquela narrativa transforme a experiência daquele lugar naquele período.

 

POSSE E PERMANÊNCIA

Há anos os museus, principalmente as instituições museológicas, também participam do novo pacto com a arte e abrigam em suas coleções trabalhos de origem digital. As regras do jogo hoje são outras e as instituições também estão aprendendo com isso. Não tenho problemas e comecei a pensar dessa maneira quando um curador que visitava a Bienal de São Paulo viu meu trabalho na fachada, as pegadas (Tropel, 1998), e me perguntou se eu queria expor no Museu Nacional de Aviação em Ottawa (Canadá). Fiquei trocando mensagens com ele, na Austrália, e com o museu em Ottawa. Me mandavam plantas e desenhos, fiz diversas propostas, até que finalmente acertei o lugar. Quando cheguei lá, o trabalho estava quase pronto, perfeito. Eu tinha mandado o trabalho por e-mail, em arquivos, e tinha sido tudo tratado a distância – aquilo foi um marco. A gente corre contra o tempo, mas se pensamos no presente, nas dificuldades da perda de dimensão de espaço, por conta da pandemia, e como os artistas estão mostrando seus trabalhos, vai ver que muitas coisas estão encaminhadas nessa direção. Não é um trabalho emoldurado.

 

PROCESSO CRIATIVO

Tenho um repertório de objetos trabalhados, assistentes que trabalham comigo há muitos anos, que são artistas, que entendem o que eu preciso fazer. A ideia? Não sei quando ela se forma na cabeça. Às vezes é de noite, quando estou dormindo e juntam-se pedaços da ideia. Quase sempre desenho, o desenho é um instrumento forte de registro do pensamento, posso desenhar em cima de fotos, imagens digitais. Acho que elas estão sempre engatadas umas com as outras, não tem uma que cai do céu, acho que é uma conexão que se faz. É a poética do artista. Cada artista tem seu poço e dele vai tirando ideias como se fossem água. Meu trabalho conversa com outra coisa, se modifica com o espaço e com o tempo e tem um vocabulário que não é ilimitado e que exploro intensamente. Acho que cada artista tem o seu. As ideias se formam a partir desse mundo abstrato que você vai acumulando por estudos, observação, vivências, a soma de tudo isso. Mas o processo de trabalho, esse sim foi ficando mais complexo à medida que crescia em escala. O processo de trabalho não tem improvisação, ele tem planejamento porque depende de muita gente, é de muita responsabilidade e muitas vezes feito a distância.

 

Assista ao vídeo deste Encontro.

 

 

Regina Silveira esteve presente na reunião virtual do Conselho Editorial da Revista E no dia 21 de janeiro de 2021
 
 

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