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Nosso lugar no mundo

Ilustração: André Ducci
Ilustração: André Ducci

OBRAS LITERÁRIAS EM DOMÍNIO PÚBLICO TRAZEM NARRATIVAS

DE POVOS QUE FORMARAM A CULTURA BRASILEIRA

 

Se o presente é escrito a partir do passado, nossa história tem um enredo composto por uma miscelânea de etnias protagonistas que formam o Brasil. Desde povos indígenas, originários, aos colonizadores do continente europeu, povos forçados a migrar do continente africano, até movimentos migratórios de países como Itália, Japão e China. Pela literatura, podemos nos reconhecer em narrativas tradicionais presentes em obras de culturas como a dos japoneses, árabes, judeus e africanos. Na era digital, então, o compartilhamento de obras escritas por nossos antepassados, e em domínio público, ultrapassa fronteiras geográficas e nos faz refletir sobre nosso lugar no mundo.

Há mais de 30 anos à frente de ações que encurtam a distância entre livros e leitores, a coordenadora do Instituto Brasileiro de Estudos e Apoio Comunitário (Ibeac) e cogestora da Rede LiteraSampa, Bel Santos Mayer (leia Encontros na Revista E nº 275, de setembro de 2019), acredita que todos os esforços para que a literatura circule entre mais pessoas, respeitados os direitos autorais, são sempre muito bem-vindos. “Tornar acessíveis obras estrangeiras ancestrais por meio digital, que por limites de edição e idioma ficaram circunscritas a poucas estantes de parcos territórios, vai ao encontro da garantia do direito humano à literatura”, destaca.

É esse o caso do projeto Literatura Livre, parceria entre o Sesc São Paulo e o Instituto Mojo de Comunicação Intercultural, que compartilha no ambiente digital obras originárias de povos que contribuíram para a formação cultural brasileira. São contos folclóricos africanos, textos fundadores das culturas japonesa e árabe, novelas escritas por judeus em alemão, vivências de uma imigrante chinesa nos Estados Unidos, entre outros enredos (leia Literatura ancestral). Um grande desafio, no entanto, foi o fato de que muitas das obras em domínio público estão no idioma de origem (inglês, mandarim, árabe, japonês, alemão, latim etc.). Coube, assim, à tradução livre contornar essa pedra no caminho.

“De que vale uma obra em outra língua estar em domínio público se sua tradução não está disponível gratuitamente para o público?”, questionou o editor, escritor e tradutor Ricardo Giassetti, presidente do Instituto Mojo de Comunicação Intercultural. Fundado em abril de 2018, o instituto promove a aproximação cultural sem fronteiras. “Em um mundo unido pela era digital e dividido pelas diferenças culturais, tomamos como nosso o esforço de reunir pessoas interessadas em conhecer, respeitar e promover a sua cultura e a de outros, sem restrições”, complementa Giassetti.

 

Endereços na história

O editor ainda pontua que “esse regresso às raízes tem um denominador comum muito simples: todos nós temos a mesma origem”. Afinal, complementa: “Todos nós éramos nômades, coletores, sem pátria, sem propriedade e até sem famílias e, ao voltarmos alguns milênios na história, descobrimos que nossos antepassados são os mesmos. Como reclamar a propriedade de um país para si e hostilizar imigrantes se todos nós também temos a mesma origem?”

Entre as impressões compartilhadas pelos leitores do projeto Literatura Livre, Giassetti comenta o caso de uma leitora jovem, mãe de duas crianças e neta de avó chinesa ainda viva. “O livro de Sui Sin Far (Sra. Fragrância Primaveril, 1912), embora ambientado na Califórnia, virou leitura obrigatória entre os membros da família por suas passagens tão similares às que ela teve aqui no Brasil”, conta.

Para a educadora Bel Santos Mayer, esse tipo de iniciativa “ocupa uma lacuna que os livros informativos não dão conta sozinhos: recompor percursos, para que mais pessoas encontrem ‘seus endereços na história’, como escreveu Paulo Freire em Pedagogia da Autonomia” (Paz & Terra, 1997).

 

 

Literatura ancestral

ACERVO VIRTUAL REÚNE 14 E-BOOKS EM VERSÕES BILÍNGUES PARA DOWNLOAD GRATUITO

Parceria do Sesc São Paulo com o Instituto Mojo de Comunicação Intercultural, o projeto Literatura Livre nasce da tradução livre de obras em domínio público originárias de povos que contribuíram para a formação cultural brasileira. No acervo estão 14 e-books disponíveis para download gratuito nos formatos e-Pub, PDF e Kindle (compatíveis com todos os dispositivos, do computador aos celulares, tablets e leitores digitais). Edições inéditas e bilíngues, ou seja, além da tradução inédita do texto integral para o português, o leitor tem acesso ao texto em seu idioma original.

Para o professor de Literatura Hebraica e Judaica da Universidade de São Paulo Luis Sergio Krausz, que traduziu O Leviatã, de Joseph Roth, “a prosa de Roth, que era também jornalista, é cristalina e fluida como uma fonte de água fresca e puríssima; basta deixar o texto dele cantar em seus ouvidos!”, como disse em matéria publicada na página da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (USP).

Além de tradutores especializados para cada título, o acervo é composto por ilustrações inéditas criadas por André Ducci, ilustrador curitibano que colabora com publicações do Brasil e do exterior. “Esse projeto é um exemplo de curadoria criativa, pois ele olha para um conteúdo que já existe e que está na rede, mas se apropria para dar outra leitura para chegar a outros públicos, seja no cuidado com a tradução, seja no cuidado estético”, conta Ricardo Tacioli, coordenador de programação do Sesc Digital. “Além disso, está voltado para públicos de diferentes idades, disponível num ambiente especial onde é possível fazer o download e acessar informações sobre o autor e o tradutor. Até o momento, o Literatura Livre já contabiliza mais de 4,2 mil downloads dos títulos publicados.”

Acesse e conheça a coleção: www.sescsp.org.br/literaturalivre

O tradutor e editor Ricardo Giassetti explica o que levou à curadoria de alguns dos títulos do projeto Literatura Livre:

 

Os miseráveis (868), de Aljâhiz | Crônicas do Japão (720), de Ō-no-Yassumaro e príncipe Toneri

As professoras Safa Jubran e Lica Hashimoto, ambas do Departamento de Línguas Orientais da Universidade de São Paulo (USP), nos sugeriram o Albukhalâ (Os miseráveis) e o Nihonshoki (Crônicas do Japão), ambos textos fundadores dessas culturas, escritos há mais de mil anos.

 

O Leviatã (1938), de Joseph Roth | As roupas fazem as pessoas (1874), de Gottfried Keller

Autores como Gottfried Keller e Joseph Roth seriam essenciais tanto para os alemães como para a comunidade judaica.

 

Contos de crianças chinesas e Sra. Fragância Primaveril (1912), de Sui Sin Far

Tivemos descobertas ocasionais, como o caso do esquecido livro da primeira autora sino-americana publicada nos Estados Unidos, o Sra. Fragrância Primaveril, que coloca com delicadeza feminina os percalços da “americanização” dos chineses em uma nova cultura.

 

Viagens de Gulliver (1726), de Jonathan Swift | Coração das Trevas (1899), de Joseph Conrad

Buscamos também compor a seleção com obras mais conhecidas, principalmente com Viagens de Gulliver e Coração das Trevas, que, embora não tenham uma relação direta com as migrações no Brasil, apresentam o ser humano em sua eterna sede por exploração, deslocado em cenários inóspitos, estrangeiros e deslumbrantes.

 

Pássaros sem Ninho (1889), de Clorinda Matto de Turner | El Zarco (1901), de Ignacio Manuel Altamiro

Outras duas obras que nos deixam muito felizes em ver publicadas são Pássaros sem Ninho (Peru) e El Zarco (México). A primeira nos aproxima de nossos conterrâneos andinos e mostra como os nativos eram e ainda são subjugados e explorados, uma obra sensacional e praticamente esquecida de uma escritora que desafiou o status quo à época, Clorinda Matto de Turner. A segunda, um retrato triste, mas atual, das milícias e da bandidagem impune, algo que parece ser inerente aos países da América do Sul.

 

Contos folclóricos africanos Vol. 1 e Contos folclóricos africanos Vol. 2 (1910, 1901, 1912), de Elphinstone Dayrell, George W. Bateman e Robert Hamill Nassau

Não podíamos deixar de contemplar também os africanos, tão violentamente trazidos para as Américas, e buscamos sua literatura traduzida pelos próprios exploradores europeus – uma denúncia da contradição histórica que precisa ser endereçada, afinal seu folclore foi filtrado por seus próprios opressores.

 

Contos sardos (1894), de Grazia Deledda | Histórias do tio Karel (1914), de Sanni Metelerkamp

Reservamos a Nobel de Literatura Grazia Deledda, com seus Contos sardos, para representar os cenários, as dificuldades e a mística dos italianos, que com os portugueses e nativos talvez sejam uma das forças migratórias mais poderosas a formar os pilares da cultura do Brasil. Dentre os homens brancos que registraram o folclore africano em contos, também incluímos uma mulher, a sul-africana Sanni Metelerkamp (Histórias do tio Karel). Estão lá para registrar a opressão europeia, histórias do sul da Nigéria, Zanzibar e África do Sul.

 

 

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