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Ficção
Retrato em Sépia

À violinista Viktoria Mulova

Era um homem rude. Essa afirmação podia ser comprovada num rápido exame feito na velha foto descorada pelo tempo. Tinha só uma perna. A outra havia sido devorada por uma mancha de umidade, a mesma que havia apagado parte da data e salpicado minúsculos borrões por todo o papel. O exílio no fundo de uma gaveta nunca aberta, habitada por legiões de traças e outros insetos, havia feito muito mal àquela foto. Consegui deduzir que fora tirada na década de 20 e ver claramente que aquele era um homem rude. Os olhos. Os olhos haviam delatado a rudeza daquele homem. Bem abertos, levemente saltados, compunham com o rabisco severo da boca uma expressão dura. E, depois, os cabelos revoltos, o paletó mal-ajustado ao tronco, a perna da calça sem o trato de boa costura, o sapato velho e frouxo confirmavam a primeira impressão. E, se não fosse o bastante, os blocos de granito talhado ao fundo, lascas de pedra acumuladas no chão, a talhadeira e a marreta empunhadas para ferir a pedra indicavam a rudeza da profissão e a estendiam até o homem. Mas se, mesmo assim, o leitor resiste a crer no que afirmava, com autoridade, aquele velho retrato, então, é melhor seguir esse homem pelas ruas da região do ABC, em ano impreciso da década de 20.

A vida é sempre a mesma em qualquer época, os sentidos são diferentes. Naquele ano indefinido, o olhar, mais preciso, devassa o ar limpo e, sem obstáculo dos prédios e fuligem de hoje, alcança distâncias inacreditáveis. Se bem que o que há para ver são o amplo espaço urbano mal preenchido por casas e ruas esparsas, os campos e a mataria que vai dos vários tons de verde até o azulado dos morros distantes.

O olfato é outro sentido diferente. Ao andar pelas ruas descalças nas manhãs de luz, é possível identificar o cardápio de cada casa pelo cheiro que exala através das portas e janelas abertas. É possível saber que madeira queima nos fogões à lenha e se o alho doura em gordura de coco ou de porco e, ainda, se o tempero da fritura recebe o peixe, a carne ou a couve. Igualmente pelo olfato advinha-se, numa grande quantidade de serragem amontoada à tarde ao lado de uma oficina de móveis, que, durante o dia, trabalhou-se o pinho, a peroba, o jacarandá, a caviúna, a imbuia. Pressente-se a chuva pelo cheiro e após sua passagem, se curta, o fartum de terra recém-molhada levanta-se e toma o ar. E nas noites de verão identificam-se cheiros dos vagalumes, do jasmim, da mistura de várias resinas vindas da mata em volta que o sol crestou e feriu forte durante o dia.

Sigamos, então, esse homem rude que sobe aquela velha rua central calçada de paralelos de granito, talvez cortados por ele mesmo. Saiba-se que é verão, que crianças brincam nas ruas, que moradores põem cadeiras fora de casa para aproveitar o fresco do começo de noite e esticar uma prosa amena. Naquela época ainda se conhecia a escuridão, aquele negrume que caía pesado e, sem concorrência, engolia a fraca luz elétrica, a chama dos fogões, lamparinas, velas e, umas vezes infundia medo, outras tornava-se um abraço confortante. Nessa noite, em que esse homem rude sobe a rua central, a escuridão é reconfortante.

Visto agora, vivo, de perto, sua rudeza é melhor comprovada pelo cheiro da cachaça ordinária que engoliu há pouco; pelas mãos grossas, meio arqueadas como garras, resultado da profissão de esculpir formas retas na pedra bruta; pelo que dizem dele.

Contam que esse italiano cujo nome não constava naquela velha foto tem coração calejado, alma severa e mão dura na correção dos filhos de várias idades. Dizem que, uma vez, por razões desconhecidas, espancou a mulher, uma figura franzina, sem viço, quase feia. Por uns momentos ela sustentou a violência do marido com humildade aprendida, depois agarrou uma faca junto ao fogão de pedra e gritou. A voz soou terrível, como ordem, e ecoou no interior de uma caverna desconhecida dentro dela mesma.

- Me mata!

E, passada a surpresa dessa atitude nova, a mulher implorou num fio de voz machucada, quase um guincho cansado de um rato que agoniza: "Me mata! Me mata!"

Na sinceridade do pedido podiam-se ver o cansaço e os anos de mágoa, miséria e maltrato que ela juntara na tristeza dos olhos desde que viera ao mundo. Aquele, porém, era um homem rude e não conseguiu ver coisa alguma. Só sentiu, primeiro, a surpresa, depois, a cabeça doer numa confusão de perguntas sem respostas. E fugiu do olhar da mulher. E correu à rua. E deixou atrás de si um choro tão manso e desesperançado que rasgaria o coração de quem, porventura, ouvisse-o.

Dizem que foi a última vez que levantou a mão contra a mulher. E dizem também que, desde a mais tenra infância, sua profissão foi lavrar a pedra, dar geometria e utilidade à dureza de pedreiras sem forma. Aprendera com o pai, também homem rude, a conhecer os veios e cortar com o cinzel. O pai não sabia outra coisa, não lhe ensinou outra coisa: foi a pedra que lhe moldou o caráter. Às vezes, esse homem rude que agora sobe a velha rua tem momentos de profunda melancolia. Pressente que lhe falta algo. Então, bebe duas doses de cachaça e anda, sem pensar em nada, até cansar. É o que está fazendo nessa noite. E é nessa noite que uma melodia remota, nascida, parece, dentro dele mesmo, começa ressoar em seus ouvidos e ganhar o mundo. As notas finíssimas e frágeis da música freiam seus passos na rua, ele olha em redor e percebe o absoluto silêncio da cidade no qual as notas vibram e se impõem.

A audição é outro sentido diferente naquele ano impreciso da década de 20. O silêncio é compacto e avassalador e um estrépito, um trovão, um grito, ferragens e apitos de trem em movimento navegam como ondas no ar e quebram por um momento a quietude para, logo após, o silêncio retornar imperador do mundo.

Ao olhar em volta o homem reparou nas pessoas atentas à música que brotava dele e não segurou o raríssimo sorriso que se abriu em seu jeito rude. E, confuso, percebeu somente naquele momento a imponente construção em alvenaria do Cine-teatro Carlos Gomes e, o que era mais espantoso, de dentro daquelas paredes brotava para fora, em perfeito sincronismo, a mesma música que se criava dentro dele.

O homem rude não soube como ultrapassou a rua, atravessou lentamente o corredor central que separava em duas alas um público muito distinto, nem percebeu que se postou em pé, junto ao palco. Estava amarrado, com nervos e pele, àquela mulher solitária que, no meio do palco, com um vestido preto, um violino e aquela música, compunha uma única e estranha figura em movimento. Era impressionante como ela fazia o movimento que ele intuía, tocava com exatidão as notas no justo instante em que se criavam e vibravam dentro dele.

Era uma música interminável e, meu Deus! , uma música como aquela não devia terminar nunca! Dela, da música, aquele homem rude nada entendia. Não era música que pudesse lembrar nem cantarolar depois, nem ter controle sobre seu princípio, meio e fim. Era uma dessa espécie de sonho que na manhã seguinte está marcado na pele, mas não na lembrança.

Frente a frente àquela música o homem rude se sentiu pequeníssimo e isso foi bom porque, em dado momento, a música que nascia nele o ergueu e carregou pelo ar. E ele voou até tocar com os dedos a estrela de cinco pontas que decorava o teto e uma lufada de vento fez com que cruzasse o ar sem controle e esbarrasse nas grades dos camarotes. E, lá de cima, divertiu-se vendo as pessoas voltadas para ele, surpresas com aquele homem rude flutuando junto ao teto do teatro. Um sapato frouxo despencou de seu pé e estatelou lá embaixo depois de arranhar o nariz de um senhor que, de cara para cima, admirava-o embasbacado, mas o homem rude nem percebeu.

Não soube como saiu, não soube como chegou. Morava muitos quilômetros longe do cine-teatro, na direção do Alto da Serra e se percebeu em casa, com os pés doloridos, pouco antes de quebrar a barra do dia. A mulher dormia, os filhos dormiam, o gato, o cachorro magro, o mundo dormia. Só o coração daquele homem rude estava desperto. E incontrolável. A mulher não reconheceu como dele aquele jeito de segurá-la e acordou sufocando uma exclamação de susto. Olharam-se e, pela primeira vez, sustentaram o olhar procurando, durante tempo, alguma coisa que desconheciam. E tiveram medo da coisa grande que sentiram e se envergonharam da delicadeza do que fizeram e nem por isso deixaram de fazer.

O homem rude sentou-se à soleira da porta e olhou a alvorada que começava a pintar o céu escuro. Sabia-se muito pequeno para entender o que estava sentindo como foi pequeno para entender aquela música. E rendeu-se ao mistério do mundo.

Tinha o rosto duro e o coração ainda calejado como homem rude que era. Os olhos estavam secos, mas ele sabia que chorava uma avalanche de pedras para fora do peito naquela manhã de domingo daquele ano impreciso da década de 20.

Luis Alberto de Abreu é escritor