Sesc SP

Matérias da edição

Postado em

Exposição
Flávio Império em Cena

Assim como os esquimós, que não têm uma palavra para designar arte, pois acreditam que ela faz parte do cotidiano, fica difícil definir a atividade de Flávio Império. Arquiteto, artista plástico, professor, cenógrafo, figurinista. Ele era tudo isso, mas muito mais. Artista de múltiplos talentos, foi o mestre que revolucionou a cabeça de seus alunos, cenógrafo que transformou o espaço da dramaturgia nacional, arquiteto que projetava a partir da sua consciência corporal e, acima de tudo, uma pessoa de enorme profundidade e criatividade.

Parte da história recente do país, sua obra ainda não foi devidamente analisada. Resgatá-la e torná-la pública para um grande número de pessoas é o objetivo da exposição Flávio Império em Cena, organizada pela Sociedade Cultural Flávio Império e pelo Sesc, em cartaz até o dia 16 de novembro. A maior exposição dedicada ao artista extravasa o Espaço de Convivência do Sesc Pompéia seguindo até o teatro, incluindo o corredor principal. "As pessoas que não foram alunas dele ou que não tenham ligação próxima com arquitetura ou cenografia não conhecem o trabalho do Flávio Império, por isso resolvemos fazer uma grande exposição mostrando, dentro do possível, o máximo do trabalho dele", afirma Gláucia Amaral, assessora do Sesc e curadora da mostra.

"O Flávio era um autodidata. O que ele tinha era produto de uma experiência que foi desenvolvendo ao longo da vida. Não poderíamos dizer qual era o estilo dele, mas sim qual era a marca do Flávio. Ele não tinha compromisso em manter um estilo determinado ou de pertencer a uma escola. Isso não era uma preocupação. Ele trabalhava do jeito que as coisas iam acontecendo, sobre todos os suportes, com os materiais mais diversos e com uma enorme liberdade. Claro que isso dá um perfil muito curioso e torna o conjunto do seu trabalho bem dinâmico. Você tem obras excelentes do ponto de vista da confecção pictórica e outras muito inquietantes", diz a artista plástica e também curadora da exposição Renina Katz.

A exposição aborda várias facetas da produção do artista e foi dividida em quatro áreas de atuação: as artes plásticas, a arquitetura, o ensino e o teatro, que contém cenografia e os figurinos. Dentro do seu trabalho como artista plástico estão expostas 170 obras entre óleos, serigrafia, litografia, telas de silk screen, peças de roupa, bandeiras e desenhos. "O Flávio tinha uma grande despreocupação com os temas, para ele valia desde uma coisa redundante em cima de um retrato até uma bananeira no fundo do seu quintal, enfim, o circundante já era tema suficiente para ele desenvolver seu trabalho. Ele não procurava temas excepcionais, transcendentais. Ele queria pintar e pintava, queria desenhar e desenhava. Isso não significa que ele era uma pessoa intuitiva no mau sentido, havia sempre uma enorme reflexão e maturidade no trabalho dele. A gente percebe que sua arte é fruto de uma pessoa que pensa sobre as questões de natureza artística", afirma Renina Katz.

Na parte dedicada ao ensino, uma oficina que funciona ininterruptamente aborda as várias linguagens às quais o artista se dedicou, resgatando o modo como ele trabalhava e dando a oportunidade para que o público possa experimentar o que acaba de ver na exposição. "As oficinas são baseadas no jeito espontâneo do Flávio criar. Integramos as linguagens plásticas, visuais, sonoras e corporais de modo que as pessoas possam realizar um evento na própria oficina", afirma Márcia Benevento, amiga e colaboradora do artista. "O Flávio, ao trabalhar, ia construindo, reciclando materiais, usava-os de formas diferenciadas e a proposta das oficinas parte desse princípio", completa. Para o artista plástico e professor Paulo Von Poser, Flávio Império tinha uma maneira bastante pessoal e diferenciada no ensino de desenho. "Ele não queria ensinar nada na universidade, pretendia impulsionar os alunos a desenvolver a sua capacidade a partir da potencialidade individual, do encontro coletivo e de elementos muito básicos do desenho", completa.

O hall do teatro foi dedicado aos cerca de 600 desenhos de cenários, figurinos e plantas, maquetes animadas, figurinos sobre manequins, 300 fotos de cena apresentadas em multivisão, adereços e cortinas originais de cenários. A iluminação foi especialmente elaborada pelo diretor Iacov Hilel para o local. "Eu fiz o projeto de iluminação e montei a luz de toda a exposição. Para o saguão do teatro, eu usei o ouro e o azul. Conceitos que a gente trabalhou em muitos espetáculos que fizemos juntos, como no Othelo ou no Libertas Quae Sera Tamem. Aqui fiz o céu dourado e o chão azul", diz Iacov Hilel. Sobre o palco do teatro, uma releitura da cenografia do espetáculo Chiquinha Gonzaga. "Como era arquiteto e cenógrafo, ele transformava inteiramente os espaços do teatro. Quando trabalhava num espaço convencional, de palco italiano, ele sempre arranjava uma forma de invadir a platéia, de transformar o palco. Ele foi um dos grandes cenógrafos brasileiros deste século, principalmente depois dos anos 50", afirma Gláucia Amaral.

O espaço do Centro de Convivência foi adaptado para receber grandes instalações de tecidos esticados. Nessa área, podem ser vistos depoimentos de pessoas que trabalharam com ele, assim como a telecinagem dos filmes super-8 realizados por Flávio Império. Na área de arquitetura, plantas, fotos e uma maquete de projetos feitos por ele sozinho ou em parceria com Rodrigo Lefèvre e Sérgio Ferro, que fundaram o primeiro escritório de arquitetura com o artista. "Flávio achava que o corpo era um ponto de partida, que o arquiteto tinha de ter uma consciência do próprio corpo para poder criar. Isso é muito claro hoje, quando eu entro em um apartamento que foi concebido por um arquiteto que não desenha ou que não se conheceu, você vê as janelas pequenas, os corredores estreitos. Imediatamente sente-se num espaço opressor. Na cidade, percebe-se isso direto. Por exemplo, a deficiência de praças, hoje em dia, é também uma dificuldade de compreensão do corpo, do prazer de passear, do prazer de estar contemplativo. O Flávio tinha uma proposta muito dinamizadora dessa sensibilidade", explica Paulo Von Poser.

Ainda dois espetáculos serão remontados no decorrer da exposição: Absurdos, por Suzana Yamauchi, a partir da coreografia roteirizada e dirigida por Flávio Império para o Balé da Cidade de São Paulo, e Um Canto para Flávio, sob regência de Samuel Kerr, com o coral Paulistano. Na Área de Convivência, a casa/ateliê do artista foi recriada com seus objetos, um quintal com suas bananeiras, incluindo o mobiliário e tecidos que reproduzem imagens e estampas feitas por Flávio. Os visitantes da exposição ainda podem manusear seus cadernos com textos e reflexões. Um sistema multimídia especialmente criado pela equipe da exposição junto com o laboratório da Escola Politécnica da USP reproduz virtualmente os cenários concebidos por Flávio Império e fornece fichas técnicas, súmulas das peças e cronologia da vida do artista. "Antes do Flávio, toda a nossa cenografia era muito voltada para o que se fazia na Europa. O Flávio introduziu a cultura popular em cena. A cenografia dele não era apenas decorativa, mas tinha uma função fundamental na cena, no espetáculo. Através da cenografia, ele interferia na direção do espetáculo", explica Gláucia Amaral.

A exposição só foi possível graças ao trabalho anterior de recuperação da obra do artista, realizado pela Sociedade Cultural Flávio Império, responsável pelo levantamento, conservação e divulgação do acervo. "Recebemos inicialmente uma verba do Instituto Lina Bo e Pietro Maria Bardi que nos permitiu iniciar um trabalho de levantamento do acervo pessoal do artista, depois recebemos recursos da Fapesp para documentar fotograficamente toda a obra, inclusive para viajar e procurar esses trabalhos. A Fapesp também concedeu bolsas de iniciação científica para os estudantes que trabalham com a gente. No final do trabalho, todo o acervo, cedido pela família, vai para o IEB (Instituto de Estudos Brasileiros)", afirma Sonia Hamburger, integrante da Sociedade Flávio Império e assistente da curadoria da exposição.

"A pintura fazia parte da vida do Flávio. Assim como ele fazia cenografia, escrevia textos, dava aulas e conversava com as pessoas, a arte era uma necessidade. Ele foi aprendendo o uso dos materiais ao longo da vida e assim fazia as litografias, as serigrafias, tentando materiais novos como se fosse um laboratório permanente e essa produção artística que está no Sesc dá muito essa idéia", finaliza Renina Katz.