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Outros horizontes para o turismo

Imagens: Editoria de Arte
Imagens: Editoria de Arte

Conhecer novos lugares e pessoas, vivenciar experiências fora do cotidiano, ver o que nunca foi visto, aprender ou simplesmente relaxar. Motivações que levavam milhões de pessoas a praticar o turismo em seu tempo de lazer. No entanto, viajar é uma de tantas ações adiadas para a contenção do novo coronavírus. Sendo assim, quais impactos comunidades e trabalhadores vêm sofrendo em decorrência dessa pausa? Que mudanças surgirão a partir dessa crise? E quais possibilidades se abrem para dar novos significados ao ato de viajar? Essas foram algumas questões levantadas durante a Semana Virtual de Turismo para Todos, Solidário e Sustentável. Neste ano, a iniciativa realizada pela Organização Internacional de Turismo Social, da qual o Sesc São Paulo é membro, aconteceu virtualmente de 28 de maio a 4 de junho, com especialistas brasileiros. Dentre eles, a professora Rita de Cássia Ariza da Cruz, da Universidade de São Paulo (USP), destaca o impacto sobre os profissionais deste segmento e uma outra forma, não predatória e mais consciente, de fazer turismo. Já a professora Andrea Rabinovici, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), reflete a respeito dos impactos sobre o Turismo de Base Comunitária. Afinal, como será o turismo pós-pandemia?

 

Assista à série O Turismo e a Pandemia:

Uma Análise em Tempo Real, disponível no YouTube

do Turismo Social Sesc São Paulo:

www.youtube.com.br/sescsp

 

O futuro do turismo – reflexões críticas

Rita de Cássia Ariza da Cruz

Em um texto de sua autoria, datado de 1996, o historiador e professor titular aposentado do Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP) Ulpiano Bezerra de Meneses escreveu: “O tipo de turismo que propusermos e praticarmos dependerá do tipo de relações que julgarmos aceitáveis e desejáveis entre os homens, isto é, do modelo de sociedade pelo qual optarmos” (Os “usos culturais” da cultura, In: Yázigi, E. Carlos, A. F.; Cruz, R. C. A. da (org.). Turismo: Espaço, Paisagem, Cultura. São Paulo: Hucitec, 1996. p. 88-99).

A frase do professor Ulpiano soa mais atual que nunca; afinal, há muito não se falava tanto de turismo no mundo e no Brasil, sobre o seu presente e, principalmente, sobre o seu futuro. E qual será o futuro do turismo? Como todos sabemos, as viagens a lazer ou motivadas por diferentes outras razões são uma conquista das sociedades pós-industriais, não acessível a grande parte da humanidade. É fato, mas com desdobramentos extensos e complexos que perpassam diferentes escalas geográficas, do mundial ao local. E que vão além dos protagonistas do fazer turístico – os próprios turistas, ao envolver trabalhadores, populações locais, agentes públicos e privados.

No que tange ao momento atual, a emergência criada pela pandemia da Covid-19 escancarou nossa fragilidade diante de um inimigo invisível a olho nu. Paralisou total, ou parcialmente, atividades econômicas e práticas sociais como o turismo, e nos colocou diante de um verdadeiro enigma, dado não ser possível encontrar respostas para tudo na simples comparação entre esta e pandemias anteriores, pois a pandemia não é a mesma e, sobretudo, o mundo não é o mesmo.

Nada será como antes?

Como dissera Heráclito de Éfeso [filósofo pré-socrático considerado o pai da dialética] há mais de dois milênios, não é possível a alguém tomar banho no mesmo rio duas vezes, pois o rio não será o mesmo, e cada um de nós também não. Assim, buscamos em referências históricas, teóricas e metodológicas elementos para, ao menos, edificarmos hipóteses sustentáveis sobre o futuro incerto.

As afetações da Covid-19 sobre o turismo são de diferentes naturezas. No que tange a aspectos econômicos, empresas do setor — desde grandes conglomerados a pequenos empreendimentos de alcance local ou regional — têm sido profundamente atingidas, sendo estimado o fechamento de muitos estabelecimentos comerciais ligados às chamadas Atividades Características do Turismo (ACTs), como transporte, agenciamento de viagens, hospedagem, alimentação e cultura e lazer.

Seria ingênuo, entretanto, acreditar que grandes empresas são atingidas da mesma forma que pequenas e médias, as quais, não raras vezes, não dispõem de reservas que lhes permitam seguir adiante. Assim, esse ambiente econômico favorece os processos de centralização do capital, o que, na prática, significa que grandes corporações poderão se tornar ainda maiores por meio da aquisição de empresas em situação financeira insustentável.

O encerramento definitivo das atividades prestadas pelas empresas do setor que não conseguirem transpor as dificuldades impostas pelo momento tem como consequência direta a eliminação de postos formais de trabalho, o que, naturalmente, em um momento de tão profunda crise, pesará de forma importante sobre as condições sociais de vida de muitos trabalhadores e de suas respectivas famílias.

É necessário também considerar que o turismo ocorre mesmo é nos lugares, ainda que o reconheçamos como um fenômeno mundial e que parte do setor seja dominado por empresas transnacionais. Isso implica reconhecer que alguns lugares, em função de sua taxa de dependência econômica do turismo, vão se ressentir mais que outros, o que exigirá dos poderes públicos, mas também das empresas que sobreviverem, um esforço conjunto pela retomada da atividade e pela minimização, no mais curto lapso de tempo, dos efeitos deletérios da crise no setor.

Não se pode também negligenciar o fato de que parte expressiva do trabalho no turismo encontra-se na informalidade e que esses trabalhadores, já bastante precarizados e muito dependentes do dinamismo da atividade turística, juntam-se aos desempregados formais face uma situação de completo desalento.

Sobre o que virá depois, ou seja, o futuro sobre o qual nos propusemos tratar, uma questão central que se nos coloca é: quando chegará o depois? Cientistas de diferentes partes do mundo têm empenhado muito tempo e energia para decifrar o novo coronavírus e apontam para a importância de uma vacina (a qual talvez chegue até cada um de nós no primeiro semestre de 2021). Mas também apontam para o risco de novos surtos.

Retratos distintos

Portanto, o que costumamos chamar de “mundo do turismo” deverá, necessariamente, adequar-se a esse novo mundo, regido pelo que se tem qualificado como “novo normal”. Cuidados com a organização, o uso e o compartilhamento de espaços físicos, seja em ônibus, trens, aviões ou embarcações, meios de hospedagem, bares e restaurantes, locais destinados a eventos etc., tornaram-se uma questão de saúde pública.

Segundo dados da UNWTO [Organização Mundial do Turismo, agência especializada das Nações Unidas e a principal organização internacional no campo do turismo], cerca de 1,3 bilhão de viagens internacionais foram realizadas em 2018 e todos sabemos, mais ou menos, em que condições: aviões lotados com assentos cada vez mais próximos uns dos outros para otimizar o espaço e os lucros; cruzeiros marítimos abarrotados de turistas, espremendo-se em restaurantes e piscinas e fazendo paragens em diferentes destinações; praias, praças, museus, lugares da moda, apinhoados de visitantes.

 

UMA QUESTÃO CENTRAL QUE SE NOS COLOCA É: QUANDO CHEGARÁ O DEPOIS?

 

Enfim, retratos do turismo de massa, impactado, pela primeira vez na sua história, por uma pandemia — considerando aqui, de acordo com Marc Boyer, em História do Turismo de Massa, Bauru (SP): EDUFBA/EDUSC, 2003 —, situaram as “balizas do turismo de massa” nas primeiras décadas do século 20. “E agora, José?, que a festa acabou, que a luz apagou, que o povo sumiu”, diria Carlos Drummond de Andrade (em seu poema intitulado José, de 1942).

O turismo, retrato de uma sociedade contraditória, vê-se diante da iminente necessidade de reinventar-se, reconstruir-se sobre outras bases econômica, social, cultural e ambiental mais sustentáveis. Mas, para que o turismo seja “o outro” do desleixo e do descaso com a saúde coletiva, será necessário que a sociedade também seja outra e este é o ponto a partir do qual retornamos à frase inicial do professor Ulpiano Bezerra de Meneses.

Não haverá um outro turismo em uma sociedade que insista em se manter regida pelos princípios de antes, como o lucro a qualquer preço. Turistas e não turistas desejam, certamente, um mundo melhor no pós-pandemia. Mas é preciso reconhecer que até o momento não temos indícios de que uma transformação comportamental profunda esteja em curso. Afinal, os negacionismos, os racismos e a violência bruta seguem ocupando os noticiários de todos os dias.

 

Rita de Cássia Ariza da Cruz é docente do Departamento de Geografia e do Programa de Pós-Graduação em Geografia Humana, e coordenadora do Laboratório de Estudos Regionais da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP).

 

 

Turismo de Base Comunitária no contexto da pandemia

Andrea Rabinovici

O caos se instaurou com a pandemia da Covid-19. Comunidades indígenas e quilombolas que vivem em áreas naturais onde comumente ocorre o Turismo de Base Comunitária (TBC) estão mais isoladas do que nunca. A pandemia e os ataques governamentais contrários aos direitos desses povos e ao meio ambiente indicam um momento aterrorizador, especialmente para alguns povos da Amazônia, os quais estão adoecendo e morrendo.

Como o tema aqui é turismo e muitas comunidades atuam e o têm como gerador de renda, como será que estão vivendo a pandemia e o distanciamento, sem contatos, visitas e a renda proveniente do Turismo de Base Comunitária (TBC)? Algumas delas até pouco tempo atrás viviam relativamente isoladas e protegidas, recebendo poucas pessoas de fora.

Em alguns casos, ficou comprometida também a venda de artesanato e produtos agrícolas. A roça e os medicamentos dos quintais estão garantindo sua subsistência, assim como os auxílios governamentais. Considerados como comunidades pobres, durante a pandemia, ações generosas de doação de alimentos para outros mais vulneráveis socioeconomicamente estão ocorrendo, de forma a surpreender quem não as conhece.

Ambientes naturais, ainda livres do coronavírus, estão a permitir a seus moradores o privilégio da fruição exclusiva de seus espaços comumente ocupados por turistas: rios, cachoeiras, trilhas e outros. No caso do TBC em terras indígenas, já existem regras específicas de visitação para prevenir doenças contagiosas. Serão suficientes para lidar com a pandemia? Terão que ser repensadas pelas comunidades e em diálogo com os demais agentes públicos e privados. O estado do Amazonas, logo no começo da pandemia, se tornou um dos epicentros da doença no Brasil. Tratada por muitos como “pulmão do mundo”, porém lá não tem respiradores!

Para pensar no pós-pandemia, é importante resgatar alguns princípios do TBC. Estes incluem: a lógica comunitária, solidária, inclusiva, participativa, os arranjos produtivos locais e a economia circular. A relação da comunidade com seu meio natural e cultural, a valorização da cultura e de atividades tradicionais, bem como a afirmação da identidade. Todos aspectos que se contrapõem à lógica econômica predominante, sabidamente, que nos tem levado ao abismo e ao colapso, com previsão de novas pandemias, conforme apontam diversos estudos.

Conectando mundos diferentes

Como o turismo conecta mundos diferentes, os comunitários são, cada vez mais, atores no processo, inseridos na economia mundial, e fazem parte de um processo predatório que, muitas vezes, desconhecem. Porém, podem fazer a diferença influenciando para que outras modalidades econômicas se tornem mais sustentáveis ambientalmente, com base nos princípios mencionados e no exemplo de suas vivências. Afinal, sua forma de viver e os espaços que ocupam são motivo da curiosidade e aprendizado para muitos.

Porém, geralmente, essa influência tem ocorrido ao contrário. O mercado é que tem influenciado, e indicadores do turismo convencional são replicados no TBC. Com isso seu sucesso segue sendo mensurado pela taxa de ocupação, empregos gerados, lucro... Qualidade de vida nas comunidades é aferida pelo consumo, geração de empregos e renda. E os conflitos e impactos sociais, culturais, ambientais e políticos?

Há que se encarar o imediatismo, o lucro desmedido e a inconsequência da lógica do “visite antes que acabe” praticados pelo turismo convencional e pelo TBC quando tido como seu segmento. Recomenda-se que o Turismo de Base Comunitária seja uma atividade complementar a outras já praticadas pelos comunitários. Neste momento são elas suas fontes de sobrevivência, além dos auxílios públicos, quando chegam.

 

A BUSCA POR SOLUÇÕES PRECISA SER PAUTADA EM RESPONSABILIDADE E

ÉTICA PARA UM TURISMO JUSTO, SUSTENTÁVEL, SAUDÁVEL,

INCLUSIVO, PRÓSPERO E SOLIDÁRIO

 

 

Existe esperança no momento?

Depois de tanto tempo confinados, longe da natureza e amigos, a vontade de viajar é grande. Tendo a pensar que, num primeiro momento, quem puder viajar, talvez opte por viagens de curta duração. Os destinos de natureza, ecoturismo e TBC possivelmente estarão entre os mais procurados. As viagens internacionais serão aquelas necessárias e inadiáveis, pois muitos estarão com medo de contágio e com pouco dinheiro.

Mas será que comunitários vão querer nos receber? Precisaremos conversar muito com todos os envolvidos. Se quiserem nos receber, será necessário adotar medidas de cuidado e proteção sanitárias e de fomento à volta do turismo, considerando as especificidades e susceptibilidades de cada comunidade.

Aprendizados e normalidade

A pandemia escancara a insustentabilidade do capitalismo, do neoliberalismo e comprova a precariedade de nossa civilização predadora. Se a pandemia nos ensinar que temos que viver mais e melhor, experimentar mais a vida a acumular bens, teremos no turismo muitas possibilidades daquelas que “não tem preço”: nadar num rio, observar fauna e flora, prosear e trocar experiências, caminhar respirando ar puro, se sentir acolhido...

Comunidades locais podem nos ensinar diversas coisas com suas experiências de isolamento e de aproximação, já que algumas delas se abriram ao TBC e a outras atividades econômicas recentemente. Podem nos mostrar como lidam com a natureza e com o meio ambiente, com o tempo e espaço, e formas de existir diferentes da lógica da acumulação e do lucro.

Afinal, o que de fato precisamos para viver? Como podemos rever nosso cotidiano? Ao reconhecermos a origem da pandemia, com todo o conhecimento e os saberes acumulados, fica claro o quão insustentável é o nosso modo de vida. Durante a pandemia vemos pela TV animais circulando por ruas e rios. Das janelas, vemos estrelas, céu limpo, sol se pondo, as fases da lua. Respiramos melhor. Podemos e precisamos sair da quarentena melhores! Diversos alertas deranças indígenas, a quem devemos ouvir com atenção.

Podemos valorizar e incrementar novas formas de contato e de interação a distância. Muitas comunidades estão conectadas nas redes sociais e produzem imagens, poesia, literatura, artesanato, alimentos, receitas exclusivas que podem ser experimentadas de nossas casas. Podemos ler Ailton Krenak, Daniel Munduruku, Olívio Jekupe, entre outros. Há textos deles que nos fazem viajar para outros tempos e mundos.

Precisamos compreender seus pontos de vista e expectativas quanto ao TBC pós-pandemia, construir alternativas e respostas cuidadosas. Buscar qualidade valorizando a experiência, porém sem elitizar ainda mais o Turismo de Base Comunitária. Seguiremos com a transformação de algumas comunidades em atrativos e seus territórios em “destinos” turísticos? Com a chamada “turistificação de comunidades” – das quais derivam conceitos como: o “índio turístico”, autenticidade encenada, privatização de espaços comuns?

Crise e oportunidade. Voltar ao que existia não dá. Soluções precisarão contemplar outras (novas ou velhas) formas de viver mais sustentáveis, com mudanças estruturantes e emancipatórias. A busca por soluções precisa ser pautada em responsabilidade e ética para um turismo justo, sustentável, saudável, inclusivo, próspero e solidário.

 

Andrea Rabinovici é especialista em Turismo Ambiental, mestre em Ciência Ambiental e doutora em Ambiente e Sociedade.É professora no curso de graduação em Ciências Ambientais e no Mestrado Acadêmico em Análise Ambiental Integrada da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).

 

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