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Uma cidade saudável

Sergio Zacchi / Valor / Folhapress
Sergio Zacchi / Valor / Folhapress

MÉDICO E PROFESSOR DA USP REFLETE SOBRE COMO A PANDEMIA PODE LEVAR A MUDANÇAS NA INFRAESTRUTURA URBANA A FIM DE GARANTIR O BEM-ESTAR DA POPULAÇÃO

 

Praças, áreas verdes, parques, grandes avenidas e calçadas são alguns equipamentos urbanísticos essenciais nas cidades, inclusive para a saúde da população. “Urbanismo e saúde andam juntos. E muito da concepção, da reurbanização das cidades, foi feito no sentido de prover melhores condições de saúde numa época em que as vacinas eram poucas e não havia remédios efetivos”, explica o médico patologista Paulo Saldiva, professor da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP). Espaços abertos, amplos e ventilados foram algumas soluções encontradas por arquitetos, e adotadas por governantes, para diminuir o adensamento demográfico: um dos fatores responsáveis pela proliferação de viroses como a Covid-19. No entanto, nem todas as regiões de grandes cidades, como São Paulo, são contempladas por essas melhorias, e milhões de pessoas habitam comunidades desprovidas de moradias apropriadas, de asfalto e de saneamento básico. “Normalmente, quando se faz um projeto de urbanização, você marginaliza alguns segmentos da população. E não é por outra razão que as mortes por coronavírus em São Paulo não são homogêneas em suas regiões”, ressalta Saldiva. “Elas estão concentradas nos segmentos mais pobres: seja pelo adensamento populacional, pelo compartilhamento de um mesmo espaço por várias pessoas, e também porque essas pessoas, por vezes, têm que sair de casa, pegar transporte coletivo e trabalhar de forma intensa.” Em outros períodos da História, o Brasil teve êxito ao erradicar epidemias como a febre amarela e a varíola por causa de medidas que alteraram a infraestrutura urbana. Hoje, no entanto, há dúvidas sobre como as grandes cidades irão se adaptar – ou se modificar – para garantir a saúde da população. 

 

Para a saúde da sociedade, as cidades – ao menos as metrópoles – podem ser vistas como um problema? Como Nova York e São Paulo, que foram epicentros da Covid-19.

As cidades são o lar natural das pandemias. As pandemias dependem de contagiosidade. Quando éramos caçadores, coletores, vivendo em pequenas comunidades, não havia pandemias e, mesmo assim, essas pequenas vilas, tribos, aldeias, eram separadas por grandes distâncias. É nas cidades que os vírus e agentes infecciosos encontram vários seres humanos, vários organismos vivos nos quais ele pode proliferar. Portanto, não é, digamos, novidade, que as pandemias, como a do coronavírus, manifestem-se em cidades de grande porte, como você menciona, mas também objeto de grandes ondas migratórias. Assim foi na Europa, em polos turísticos, como Espanha, França e Itália. E, em São Paulo, pela grande movimentação de pessoas em aviões, transportando vidas, em longas distâncias, até a nossa cidade.

 

A falta de limpeza nas cidades – ratos, baratas e lixo acumulado – parece ser um cenário cotidiano mesmo em metrópoles mais ricas. Como isso afeta a proliferação de pandemias?

A questão da limpeza é importante, mais notadamente em doenças transmitidas por organismos que moram em reservatórios; por exemplo, ratos. Como aconteceu com a febre amarela em 2018, em que o reservatório eram os macacos das franjas das cidades e também havia vetores como insetos. Quando você tem água e lixo, você tem criadouros naturais de onde eclodem os ovos dos insetos com mais facilidade. Assim foi na peste bubônica, começando em Roma na época justiniana, assim foi na Idade Média, com as grandes cidades e o lixo. Enquanto em outras circunstâncias, por exemplo, as viroses de transmissão interpessoal, caso da influenza e do coronavírus, esse aspecto do lixo não é tão importante, mas há problemas, por exemplo, nas condições de moradia, no adensamento.

 

ESSE VÍRUS PÔS A NOSSA

FORMA DE ENTENDER

O MUNDO E AS CIDADES

DE JOELHOS

 

Então, esse adensamento populacional sobressai como grande preocupação.

Várias pessoas moram no mesmo ambiente, facilitando a contagiosidade, além de uma grande massa de pessoas que se movem em transporte coletivo. Nesse caso, há uma possibilidade de troca de microorganismos, no caso, do vírus. O vírus não consegue se dividir por si próprio. Ele precisa de alguma estrutura: de uma célula com núcleo para produzir cotas dele próprio. O vírus nem de vivo deve ser chamado. Ele é uma estrutura que depende de uma célula viva para poder existir. Então, nesses lugares onde há muita gente é que você vai ter as pandemias de transmissão direta, interpessoal. Assim também foi com a influenza – foram as trincheiras da Primeira Guerra Mundial que permitiram a disseminação da doença pelo constante fluxo de pessoas das trincheiras para as cidades da retaguarda.

 

Entidades da sociedade civil alertam que o novo marco regulatório para o saneamento básico do país, sancionado em julho, pode comprometer a ampliação desse acesso pela população. Essa é uma questão dramática para a saúde, em especial para a contenção da Covid-19?

Nas doenças de transmissão interpessoal, como a Covid-19, o comprometimento do saneamento é secundário. Ele existe, claro, mas não é primário. O que acontece é que uma parte da transmissão do vírus se faz do contato com as mucosas quando a pessoa tosse: o vírus pode ficar em superfícies da pele, caso da mão, e assim ser levado aos olhos. O vírus não penetra a epiderme: ele tem que entrar em contato com a mucosa, seja a mucosa do trato respiratório, do olho ou da boca. E por isso você precisa lavar a mão. Mas, como é que você pode lavar a mão a cada hora, se você não tem água? Quando você tem que buscar água num balde, ela é racionada em grande parte do dia. Então, acho que, mesmo para as viroses que não dependem de mosquitos ou ratos, a falta de saneamento atua de forma a diminuir a defesa das pessoas por contágio através das mucosas.

 

A higiene pessoal, o asseio, é outro aspecto a ser posto como medida essencial dada a atual pandemia?

Ainda nessa linha, o asseio, além da lavagem das máscaras, faz parte do sistema de prevenção. Você pode desinfectar superfícies onde muitas pessoas põem a mão ou perto de onde tossiram, como nos ônibus, nas próprias casas ou nos ambientes públicos. O novo coronavírus pode ficar em superfícies não corpóreas, vivo, por algumas horas. Então, é importante que se tenha condição e que se incorpore a higiene pessoal como uma forma de prevenção das pandemias e o respeito à higiene das outras pessoas.

 

É IMPORTANTE QUE SE TENHA

CONDIÇÃO E QUE SE INCORPORE

A HIGIENE PESSOAL COMO UMA FORMA

DE PREVENÇÃO DAS PANDEMIAS

 

Na segunda metade do século 19, quando o Rio de Janeiro era capital do país, tivemos várias epidemias – febre amarela, tifoide, entre outras. Culpavam-se bastante os cortiços pela disseminação das doenças.

Não são os cortiços que as causam. Mas foi o que aconteceu no Rio de Janeiro, que durante o combate à febre amarela e à varíola pôs abaixo os cortiços, gerando a Revolta da Vacina – projeto liderado, na parte da saúde, por Oswaldo Cruz e pelo prefeito Pereira Passos que gerou uma grande reurbanização do Rio de Janeiro. O cortiço em si não faz nada. O que o cortiço faz é colocar várias pessoas juntas num mesmo espaço. Famílias, às vezes, convivendo num quarto só. Eu vejo isso hoje no bairro onde moro, no Bixiga. Existem famílias que vão morar em condições de grande proximidade, banheiros coletivos, enfim. Você tem aí um ambiente propício para a disseminação. Já o caso da febre amarela, ela depende do mosquito, o aedes aegypti, que, digamos, é uma espécie invasora no Brasil, mas que se adaptou muito bem e foi o principal transmissor da doença, tanto que Oswaldo Cruz tinha esquadrões mata-mosquito. Então, se você combinar muita gente junta num ambiente com pouco saneamento, proliferam-se os vetores: isso causou a epidemia de febre amarela. A varíola não: ela se transmite de pessoa a pessoa e a única estratégia possível era a vacinação. Foi por isso que se fazia vacinação compulsória, porque a vacina, ou o que se assemelhava à vacina contra a varíola, já existia desde meados do século 18, descoberta e proposta por Edward Jenner (1749-1823), na Inglaterra. 

 

Em 1890, foi promulgado o Código de Posturas Municipais no Rio de Janeiro, exigindo que as casas de aluguel fossem caiadas duas vezes por ano, tivessem cozinhas e banheiros azulejados e quartos com equipamento de ventilação. Mas a medida foi abandonada logo depois por se mostrar de difícil execução. Então, é uma tradição do poder público tentar ordenar inclusive o interior das casas?

O estabelecimento, por lei, de habitações decentes, como no Código de Posturas Municipais do Rio de Janeiro, exigia certas formas de edificação, como casas caiadas, com azulejos e ventilação. No entanto, uma lei não dá condições econômicas para que a população possa fazer o melhor. Aliás, durante a Revolta da Vacina, muitas das pessoas que moravam nos cortiços do Rio de Janeiro eram ex-combatentes de Canudos e ao perderem suas casas foram morar nos morros. Em Canudos havia um bastião dos jagunços, de Antônio Conselheiro, que foi muito difícil de ser conquistado: um morro que se chamava Morro da Favela. Então, o nome favela, que significa mandioca braba no linguajar dos jagunços, nasce aí. De um pedaço do sertão da Bahia, do Brasil profundo, na então capital do país e uma absoluta precariedade econômica.

 

Foto: Paulo Saldiva

 

A reforma do Rio, empreendida pelo prefeito Pereira Passos, ecoava as largas avenidas de Paris, onde ele estudou e presenciou ações semelhantes feitas por Haussmann (Georges-Eugène Haussmann, 1809-1891). Passos criou avenidas que cortaram os cortiços do centro antigo do Rio e dizia lutar contra o “caos insalubre”. Dados indicam um número decrescente de mortes por doenças, nesse período.

Essa reurbanização do Rio de Janeiro, meio haussmaniana, meio parisiense, e que transforma a cidade do ponto de vista arquitetônico numa pérola, ela foi acompanhada de uma exclusão sem precedentes de uma comunidade que podia menos. Aliás, essa é uma característica que acontece sempre que se faz o controle de pandemias: medidas autoritárias que vêm de cima para baixo. Por exemplo, na peste negra foram tomadas medidas de quarentena, confinamento, criaram-se espaços lazarentos. Famílias que tinham doentes eram mantidas dentro das próprias casas, isoladas e eram deixadas a morrer por conta própria. Sempre houve comissões com poderes de ditar o rumo e alterar o rumo da cidade. Então, há situações em que é possível melhorar a condição de vida de uma população, mas não dela toda. Sempre haverá menos afortunados, aqueles que pagam o preço mais alto. 

 

Ou seja, o urbanismo ainda não consegue atender à questão da saúde para todos nas grandes cidades?

Na verdade, urbanismo e saúde andam juntos. E muito da concepção, da reurbanização das cidades, foi feito no sentido de prover melhores condições de saúde numa época em que as vacinas eram poucas e não havia remédios efetivos. Mas, normalmente, quando se faz um projeto de urbanização, você marginaliza alguns segmentos da população. E não é por outra razão que as mortes por coronavírus em São Paulo não são homogêneas em suas regiões. Elas estão concentradas nos segmentos mais pobres: seja pelo adensamento populacional, pelo compartilhamento de um mesmo espaço por várias pessoas, e também porque essas pessoas, por vezes, têm que sair de suas casas, pegar transporte coletivo e trabalhar de forma intensa. Elas não têm resiliência econômica para poder suportar uma quarentena. Muitas trabalham de manhã para ganhar o almoço e trabalham à tarde para ganhar o jantar. 

 

JAMAIS CONSEGUIMOS DISTRIBUIR

O EMPREGO NA CIDADE E TALVEZ AGORA

SEJA POSSÍVEL FAZER COM QUE O EMPREGO

CHEGUE ATÉ A NOSSA CASA

 

A capital paulista é um aglomerado de pessoas, de poucas praças e bastante verticalizada. São Paulo deveria derrubar áreas construídas para a feitura de espaços abertos, como Niemeyer sugeriu?

Dificilmente as cidades que adquirem um padrão construtivo revertem esse padrão. Existem, em algumas cidades, movimentos de recuperação das áreas verdes. Isso acontece volta e meia, mas com muita luta. Como o Parque Augusta, que era para ser o local de um prédio comercial e teve que ser negociado do ponto de vista econômico e com um grande envolvimento da comunidade para ser um parque no Centro da cidade de São Paulo, onde poucos parques existem. Isso vem acontecendo mesmo nos bairros onde as áreas verdes não conseguem resistir porque uma das grandes indústrias que existe nas cidades brasileiras, especialmente em São Paulo, é a indústria da construção civil. Ela permanece, tem força e dá empregos. Consequentemente, vamos ficar sempre no dilema entre a produção de riqueza e a melhoria da cidade. Em geral, a história de São Paulo mostra que nós privilegiamos a produção de riqueza. Só que essa riqueza, de novo, não é compartilhada por todos. O nosso solo é mais uma commodity do que um bem comum.

 

Que impacto o home office, adotado por várias empresas, pode gerar sobre morar na cidade?

A gente muda com as pandemias. Nesse caso, sempre há um progresso notável na ciência. Há também, digamos, uma mudança interna, pois voltamos a refletir sobre o que é importante para nós. O que é essencial? Do que nós, de fato, sentimos falta? Aquilo que a gente fazia era importante? Seguramente, o trabalho e a educação vão mudar. O advento das reuniões virtuais por computador, que era uma barreira cultural, passa a ser frequente mesmo na universidade. Eu, por exemplo, tinha que falar em muitos lugares e insistia em fazer defesas de tese a distância. É lógico que não é o ideal, mas há uma praticidade nisso. E mesmo as universidades no exterior disseram que não vão voltar plenamente às atividades presenciais e vão fazer muitos dos cursos de forma semipresencial. Acho que isso vai acontecer também com o mundo do trabalho: os escritórios vão diminuir de tamanho, a pressão sobre os meios de transporte vai diminuir e você pode, em alguns casos, não morar próximo do trabalho. A gente jamais conseguiu distribuir o emprego na cidade e talvez agora seja possível fazer com que o emprego chegue até a nossa casa. Creio que com isso, embora exista uma impessoalidade, vai melhorar muito, digamos, a condição de alguns trabalhadores que gastavam horas no ir e vir, perdendo tempo para cuidar de si, para encontrar pessoas que gostam, para investir em si. Enfim, nós temos que mudar até a educação para esse novo cenário, porque o trabalho vai incorporar certas habilidades que muitos de nós tivemos que aprender de improviso e acho que isso não vai ter volta.

 

A GENTE MUDA COM AS PANDEMIAS.

NESSE CASO, SEMPRE HÁ UM PROGRESSO

NOTÁVEL NA CIÊNCIA

 

O espaço acaba moldando o homem. O ser urbano se acostumou a viver em espaço restrito. Acredita que o paulistano passe a cobrar do poder público melhores calçadas, mais praças,menos carros, melhor transporte?

Se houver essa mudança, talvez sobre espaço para a gente ter aquela cidade da utopia, a cidade que nós sonhamos. Uma São Paulo que privilegie calçada, que privilegie transporte ativo e que funcione como ponto de encontro não só para o trabalho, mas para o lazer. O encontro é fundamental para a vida urbana. Ao colocar muitas pessoas juntas, é lógico, trocamos muitos microorganismos, pioramos o saneamento e ganhamos as febres. Mas temos também o que a gente chama de civilização. A criatividade foi manifesta. A troca de experiências entre as pessoas fez com que nós construíssemos, por exemplo, templos, até mesmo catedrais, a partir de cálculos. Permitiu que a gente tivesse chance de fazer aquilo que não era eminentemente necessário para nossa sobrevivência física, mas para a elevação do espírito. Vamos ver se isso acontece agora. A partir de uma lição dada por uma estrutura trágica, dura, impiedosa, desigual, mas eloquente, uma estrutura que nem viva é, e que tem ao redor de 100 nanômetros de tamanho. Esse vírus pôs a nossa forma de entender o mundo e as cidades de joelhos. Vamos ver quando a gente se levantar para que estatura nós vamos levar esses ambientes que são a fonte, pelo menos para mim, que sou um aficionado pelas cidades. Tomara que ela melhore depois disso.

 

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