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Muda o mundo, mudam os caminhos

Pixabay
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O menino brinca nos fundos da casa, fazendo barquinhos de papel e observando-os flutuar na água represada no tanque de lavar roupa. Ouve a voz da mãe ordenar: “Vai lá no armazém, precisamos de açúcar”. Caminha pela rua cuidando para não tropeçar nos paralelepípedos soltos. Durante o trajeto vê ao longe um prédio de formato sinuoso que fora inaugurado recentemente, daquele arquiteto famoso. Passa pelo sapateiro e finalmente chega ao armazém. Faz o pedido ao funcionário e o espera selecionar o produto entre as sacas de arroz, rolos de tecidos e vassouras. Coloca na conta, a família é conhecida do dono. Durante a volta pensa que quer que chegue logo o domingo para poder ver os garotos mais velhos jogando no campo de terra que tem no outro bairro.

Neste mesmo campo o agora adolescente dá um pique para tentar alcançar o lançamento, longo demais. Brinca que a bola quase foi parar no parque de diversões que tinham acabado de levantar ali perto, com nome em inglês. Após o jogo, machucado após levar um pisão no pé, não tem certeza se prefere passar primeiro na farmácia ou no boteco, para se refrescar e quem sabe até conseguir beber cerveja com algum adulto mais tolerante. Vai na “pharmácia”, o letreiro ainda com o “ph”, para fazer o curativo. Depois tenta a sorte no bar, mas não consegue.

O dono anda ressabiado com a atuação da polícia e não quer confusão. Fica no guaraná. Anos depois ele toma outra garrafa de guaraná, pelo menos metade dela. A outra metade quem está tomando é uma garota que ele conheceu na universidade. Parece que está dando certo, mas está preocupado. Ela estuda e vive falando sobre informática, tecnologia, coisas que ele ainda não manja. A praia dele é outra, é de Humanas. E o que ele quer saber mesmo é se ela está a fim de ver um show que vai ter naquele lugar que abriram agora, onde era uma fábrica. Antes pensava que só dava para entrar quem trabalhava no comércio, mas parece que vendem ingresso para todo mundo.

Depois deste e muitos outros shows, ele está novamente ansioso. Na entrada do hospital, esperando notícias, fica olhando a construção de um shopping, mais um entre muitos que vão surgindo. A avenida imensa, cheia de carros, ônibus... se prestar atenção dá para ouvir e sentir a passagem do metrô, logo abaixo da superfície. E tanta gente. No hospital mesmo é possível notar a enorme quantidade de pessoas trabalhando. Uma destas pessoas se aproxima com uma notícia.

Caminhando pela grama macia ele observa seu “bebê” correr por entre as árvores. Não aquele que nasceu no hospital, mas sim um bem mais peludo que foi adotado em uma feira – uma quase exigência do bebê anterior, que na verdade não é mais nenhum bebê. O celular vibra em seu bolso e agora ouve a voz da esposa: “Passa no supermercado, tem que comprar ração”. Até pensa em ir no supermercado colossal que ergueram na saída para a rodovia, mas é tão grande, tão cheio. Será que não dá para pedir para entregar?

A história vai chegando ao final, mas só por enquanto. Aquele menino, já um senhor, lê as notícias no smartphone, faz compras e marca consultas online, chama um motorista de aplicativo para levá-lo para onde precisar. Percorrendo a cidade, contempla o ciclo eterno de demolições, construções, o velho dando espaço ao novo, a mudança inevitável.

A impermanência. No entanto, sabe também que, assim como ele, assim como todos e assim como a cidade e a sociedade, o antigo, ao mesmo tempo em que envelhece, também se renova.

 

David Arnaud é historiador e trabalha como pesquisador de acervo no programa Sesc Memórias, da Gerência de Estudos e Desenvolvimento do Sesc São Paulo.

 

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