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Memória e arquivo na arte

Foto: Julio Kohl
Foto: Julio Kohl

Ao ser classificado e guardado, um arquivo preserva aquilo que não queremos que seja esquecido. Dessa forma, ele reforça a narrativa de um passado para a construção do presente. No campo das artes visuais, a partir da década de 1960, a arte conceitual trabalha esse conceito. “Nesse momento, o arquivo corresponde a um modo singular de como as manifestações artísticas são colocadas à prova. O arquivo-obra torna-se um dispositivo que permite o questionamento do mercado, uma atitude na contramão da objetificação da obra e de sua fisicalidade”, explica a curadora Katia Canton, que já foi diretora do Museu de Arte Contemporânea (MAC) e atualmente é diretora artística do Museu Internacional da Mulher Associação (Mima) em Lisboa, Portugal. Outra perspectiva é analisada pela pesquisadora, curadora e professora Ana Pato, que, desde 2009, investiga a relação entre arte contemporânea e arquivo.

“Para os artistas, os arquivos vão exercer a função de um laboratório experimental de investigação sobre o lado irracional da sociedade moderna”, destaca Pato, responsável pela curadoria da exposição Meta-Arquivo: 1964-1985, que esteve em cartaz no Sesc Belenzinho até novembro de 2019. Afinal, por que e de que forma a arte se volta para arquivos e memórias catalogadas? Sobre este tema, Canton e Pato tecem reflexões.

Arte e Arquivo

Katia Canton

O arquivo coleta, organiza, classifica. No fundo, pode-se afirmar que a noção de arquivo perpassa toda a história da arte e da humanidade. O arquivo como lugar destinado ao armazenamento de dados, informações e materiais está na base da construção da memória cultural humana desde os primórdios.

Ao soprar pigmentos de cor e demarcar as mãos contra as paredes das cavernas, por exemplo, nossos ancestrais estavam criando um arquivo de impressões que documentavam a própria existência e testemunhavam-na para as próximas gerações. Eis uma forma de arquivo.

É fácil entender que as experiências histórico-culturais de que temos notícias e, em última instância, aquelas que oferecem possibilidades de pesquisa por meio de um corpo de evidência passam ou passaram por um processo de registro e arquivamento. Isso, sim, refere-se a um alargamento do termo, dedicado a pensar o arquivo como acervo do que fomos guardando e deixando como rastro existencial. No entanto, ao longo do tempo é possível identificar a materialização de determinadas práticas que se aproximam do arquivo tal como o entendemos hoje.

Um exemplo interessante da sistematização do arquivo refere-se aos chamados Gabinetes de Curiosidades, que se tornaram uma praxe na Europa na era das navegações e dos grandes descobrimentos, nos séculos 16 e 17. Como resultado do material coletado nas Américas e na Ásia, europeus viajantes traziam amostras do que lhes parecia mais interessante, valioso e exótico, organizando esses arquivos em chancelas diferentes.

Assim, tínhamos o gabinete de naturalia, no qual eram agrupados criaturas e objetos naturais; exotica, no qual eram agrupados plantas e animais exóticos; e scientifica, com os instrumentos científicos. E ainda havia os gabinetes de artificialia, dedicados a guardar objetos modificados pela mão humana, tais como antiguidades e obras de arte.

Os Gabinetes de Curiosidades eram modos de arquivamento referentes a propriedades privadas, seguindo a lógica de sistematização de seu dono. Eram salas destinadas ao estudo, à apreciação estética e ao exercício intelectual. Eram também uma demonstração de poder. Para os visitantes que tinham acesso a eles por meio de convites, era um lugar de deslumbramento. Ainda que suas práticas se voltassem, na maioria dos casos, à exibição privada, as exposições nos gabinetes costumavam ser acompanhadas de catálogos, geralmente ilustrados, que permitiam acessar e difundir seus conteúdos para os pesquisadores, historiadores e cientistas da época.

Os Gabinetes de Curiosidades, construções privadas, são antecessores dos museus. Esses últimos são destinados em sua grande maioria a exibições públicas. Eventualmente, coleções privadas dos gabinetes passaram a ser incorporadas aos museus, transformando-se também em acervo público. Ao longo do tempo, museus têm sistematicamente utilizado e inserido suas pesquisas em arquivos para catalogação.

Há, no entanto, outro tipo de utilização ou de espaço ocupado pelo arquivo no universo da produção artística. Na história da arte ocidental acompanhamos uma transformação desse lugar do arquivo, particularmente a partir dos anos 1960 e 1970, com a chamada arte conceitual.

De um espaço de sistematização para o estudo da arte, o arquivo passa a ocupar o estatuto de arte em si. Nesse momento, o arquivo corresponde a um modo singular de como as manifestações artísticas são colocadas à prova. O arquivo-obra torna-se um dispositivo que permite o questionamento do mercado, uma atitude na contramão da objetificação da obra e de sua fisicalidade.

Com a chamada desmaterialização da arte, questiona-se o fetiche da obra e passa-se a produzir textos e documentos como cópias Xerox, postais e até manuais de como criar uma obra. Substituindo uma obra-objeto tem-se uma obra-pensamento. Ou uma obra-arquivo. Essa atitude fomenta uma nova postura no universo artístico ocidental e começa a tomar corpo num contexto norte-americano de protesto contra os excessos do capitalismo e do American Way of Life, além da própria participação dos Estados Unidos na Guerra do Vietnã.

Em vez de criar obras que pudessem servir ao mercado e ao capitalismo, uma gama representativa de artistas passa a construir projetos artísticos. A geração dos artistas minimalistas, juntamente com o lema Less is More (Menos é Mais), passa a utilizar materiais considerados não nobres, empregados em hidráulica, elétrica e construção civil, e a veicular suas obras em bulas ou manuais que seriam reproduzidos por qualquer pessoa.

Nesse sentido, a obra-arquivo toma corpo como uma continuação do projeto de democratização e desmaterialização da arte, já que tem como mote o abrir-se, o tornar-se pública e consequentemente acessível.

Em 1997, enquanto era curadora da Documenta X, em Kassel, a francesa Catherine Davi mostrou essa potência da obra-arquivo evidenciando o caráter de registro na obra de vários artistas fundamentais para a construção de uma história da arte.

No decorrer da construção da arte contemporânea, o arquivo passa novamente a ocupar um lugar de destaque na produção artística. A crítica de arte passa a incorporar sociologia, filosofia, literatura entre outras áreas de estudo do pensamento e a teoria se costura às obras de tal modo que o discurso passa a estar no foco da criação. Dessa forma, arte e arquivo novamente se articulam na redistribuição de informações, costurando passado e presente por meio de uma escritura historiográfica. 

Katia Canton é escritora, artista, curadora de arte, autora de vários livros, entre eles a coleção Temas da Arte Contemporânea, editado pela WMF Martins Fontes. Foi vice-diretora e diretora do Museu de Arte Contemporânea (MAC) e atualmente atua na direção artística do Museu Internacional da Mulher Associação (Mima) em Lisboa, Portugal.

 

Práticas artísticas e a violência contida nos arquivos

Ana Pato

São muitas as questões que se somam ao tema Arte e Arquivo. Afinal, por que continuamos a falar de arquivo? Tal pergunta nos remete a outra feita pelo filósofo Jacques Derrida (1930-2004): “Por que reelaborar hoje um conceito de arquivo?”, proferida em 1994, na conferência intitulada: O Conceito de Arquivo: Uma Impressão Freudiana, realizada na abertura do colóquio internacional Memória: A Questão dos Arquivos, em Londres. Sobre a pertinência da questão hoje, destacam-se os estudos políticos e culturais sobre a experiência da violência no século 20 e as práticas de memorialização criadas para lidar com o trauma – seja das ditaduras militares na América Latina, do apartheid na África do Sul ou dos campos de concentração na Segunda Guerra Mundial.

Os estudos sobre a memória traumática impactaram o campo da arquivística, o paradigma do acesso aliado à questão da tecnologia trouxe novas exigências tanto para a prática dos arquivistas quanto para a cadeia de transmissão de conhecimentos. Para pensarmos a relação entre arte, arquivo e violência no campo da arte brasileira atual, há duas instâncias do arquivo que precisam ser separadas: uma é a conceituação dos arquivos como modelos nas artes a partir do início do século 20 e seus desdobramentos na arte moderna e contemporânea.

A arte conceitual nos anos 1960 e início dos 1970 representa o momento em que surgem as estratégias contemporâneas de apropriação e montagem, tributárias às características dos processos alegóricos e da leitura de Walter Benjamin (1892-1940). Tal qual mapeada pela história da arte, essas noções são fundamentais na articulação crítica sobre práticas artísticas em arquivos. A outra é a instituição que assume, no século 19, a organização cronológica dos arquivos e transfere para um único lugar toda a documentação reunida, até então, em igrejas, escolas, hospitais e cartórios. O arquivo situa os documentos apartados de seu tempo como condição para uma leitura linear da história e exerce o papel de instituição central na formação dos Estados modernos e contemporâneos.

Essas duas instâncias se encontram no momento em que compreendemos o arquivo como o paradigma técnico-científico do projeto progressista de sociedade moderna. Para os artistas, os arquivos vão exercer a função de um laboratório experimental de investigação sobre o lado irracional da sociedade moderna. Lembremos, por exemplo, do movimento dadaísta, que propôs uma série de ações com o objetivo de evidenciar a lógica e os modelos classificatórios como formas de interpretação. O papel do artista no arquivo está em operar um deslocamento de atenção do conteúdo guardado no arquivo, para fazer saltar aos olhos a superfície onde é possível ver a realidade indexada.

Para aproximar o modelo de arquivo na arte do arquivo na instituição, tenho trabalhado com a ideia curatorial de “tornar público”. É disso que trata o programa de ação curatorial que desenvolvo desde 2014 com a articulação de pesquisas artísticas e a formação de grupos de trabalho em torno de arquivos e acervos. O programa articula-se no desejo de repensar as instituições de memória e suas práticas, bem como de mobilizar processos de pesquisa em arte para a criação de espaços de escuta e reflexão sobre a experiência histórica traumática brasileira.

Nos últimos anos, começou a despontar nas artes visuais brasileiras um conjunto de exposições que abordaram temáticas relacionadas a processos de violência na história brasileira como a AI-5 50 ANOS – Ainda Não Terminou de Acabar (2018), com curadoria de Paulo Myiada; Agora somxs todxs negros? (2017), com curadoria de Daniel Lima; Do Valongo à Favela: Imaginário e Periferia (2015), com curadoria de Clarissa Diniz e Rafael Cardoso; Empresa Colonial: O Presente do Passado (2016), com curadoria de Tomás Toledo; A Queda do Céu (2015), com curadoria de Moacir dos Anjos. Sem falar, é claro, de exposições organizadas no Museu Afro Brasil.

Se considerarmos, como propõe a historiadora Antoniette Burton, que a democratização do acesso aos arquivos se tornou parte da própria retórica da globalização e de suas práticas (de mercado), com a proliferação de demandas para a constituição de arquivos (digitais) sobre diferentes tópicos e grupos – interessados na legitimação de suas histórias –, todavia, pouco se tem discutido sobre a formação dos arquivos e quanto eles são artefatos da própria história.

Nessa direção, as teorias pós-coloniais mostraram como a compreensão da função dos arquivos e de museus vem sendo modificada no sentido de não serem mais os detentores de uma autoridade única (seja como repositório, seja como visualidade). A prática de selecionar, coletar, classificar e organizar não garante, como se supunha, a capacidade de oferecer uma leitura definitiva do passado. Uma questão que me interessa ressaltar dos estudos pós-coloniais é o que Boaventura de Souza Santos identifica como um “déficit de representação”, inerente aos povos colonizados e que resulta em procedimentos de “autodescrição” de tradições apagadas e de “autodestruição” de representações impostas.

Para Achille Mbembe, a relação paradoxal que se estabelece entre preservar e abandonar os arquivos reside, justamente, na violência constitutiva do Estado, contida nos documentos armazenados nos depósitos legais. Se, por um lado, cabe à instituição preservar seus arquivos, por outro, o arquivo contém em si a própria ameaça a sua existência, pois garante a possibilidade de reconhecimento de uma dívida.

Vistos por esse prisma, a invisibilidade, o abandono e o risco de apagamento de acervos documentais artísticos no Brasil ganham outros contornos. Nesse sentido, minha proposição tem sido discutir como se dá o reconhecimento da experiência histórica traumática na arte brasileira no século 21 a partir da noção de que a arte é capaz de prefigurar a violência contida nos arquivos, ao desafiar sua origem e as formas através das quais estruturam nossa realidade.

A confrontação artística com o reconhecimento das histórias de violência contida nos arquivos e a realidade precária do estado de conservação de nosso patrimônio histórico resulta em práticas de reescrita que se produzem a partir do desejo de completar ausências, de criar   interpretações, de deslocar e interromper a divisão entre um passado que não quer passar e um presente fraturado pela exclusão do outro. Nesse aspecto, a operação artística se desloca da “coleção” para a problematização trazida pelo próprio processo de confrontação com os “dados”.

Há uma vontade nos artistas de compreender como se produz o conhecimento histórico e de assimilar as narrativas historiográficas como material de trabalho, o que acarreta extensos processos de pesquisa que transbordam para outras áreas de investigação. Por trás disso, manifesta-se uma desconfiança nas narrativas produzidas pela história “oficial” e pelos meios de comunicação. Em vista disso, observa-se que essas práticas têm como propósito apresentar outras interpretações possíveis para os acontecimentos. Em vez dos procedimentos de apropriação e manipulação das imagens para esvaziamento de seu significado anterior, dos riscos de perversão do conteúdo e das estratégias de acumulação compreendida como simples reunião de coisas aleatórias, percebe-se que se trata de práticas de articulação e de reescrita.

A hipótese é que estamos diante de um procedimento historiográfico na arte que atua na articulação e na redistribuição de informações tendo como motivação fazer parte da realidade na qual está inserida. É justamente nessa fronteira entre passado e presente que o procedimento historiográfico da arte ganha forma e manifesta, com agudeza, a força de sua operação.

Ana Pato é curadora, pesquisadora e professora. Doutora pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (2017), mestra em Artes Visuais pela Faculdade Santa Marcelina (2011). Foi curadora do 20º Festival de Arte Contemporânea SESC_Videobrasil (2017) e curadora-chefe da 3ª Bienal da Bahia (2014). Em suas pesquisas, dedica-se às relações entre arte contemporânea, arquivo e memória.