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Bicho solto
A PAIXÃO PELA MÚSICA E PELA NATUREZA ALIMENTA A CRIATIVIDADE DESTE ARTISTA
QUE HÁ 46 ANOS ARREBATA DIFERENTES GERAÇÕES
Ao mergulhar no verde e nos sons da natureza, Ney Matogrosso refugia-se. Assim, o artista recarrega a energia vital para seguir gravando e se apresentando ao longo dos últimos 46 anos. Em seu sítio, no município de Saquarema, no estado do Rio de Janeiro, a Mata Atlântica é tanto sua quanto dos animais cuidados pelo Instituto Vida Livre – organização não governamental voltada para a reabilitação e soltura de animais na fauna silvestre –, do qual ele é patrono, uma missão que se soma à vocação deste grande intérprete da música brasileira. Em turnê com o show Bloco na Rua, Ney flerta com canções que fazem parte de sua história. Algumas já gravadas, como Sangue Latino (1976), outras da gaveta de memórias, caso de Eu Quero É Botar Meu Bloco na Rua (1972). Aos 78 anos, discreto e reservado, Ney é uma persona nos palcos e outra fora deles. Sob os holofotes, ele se vale das técnicas que aprendeu no teatro, arte à qual se dedicou antes da música. Desde a estreia em voz e performance no grupo Secos & Molhados, de 1972 a 1974, o fôlego deste homem que nasceu na fronteira do Brasil com o Paraguai, e cujas raízes se estendem pela América Latina, parece não ter fim. “Eu não pretendo sair dos palcos porque as pessoas estão desgostosas de me ver. Prefiro sair quando eu ainda estiver cantando”, deixa o recado.
Como chegar a esta fase da vida com tanta energia para seguir se apresentando em shows e festivais pelo Brasil?
Quando me falavam em ano 2000, eu pensava: “Nem chego lá”. Não achava que ia chegar a essa idade cantando. Mas eu gosto e ainda posso. Então, por que não fazer, né? Foi aos 50 que atinei. Moro no Leblon e, no auge do verão, na rua vi um homem com a pele toda enrugada, de sunga e tênis. Olhei para aquele senhor andando debaixo daquele sol e vi que tinha músculo por baixo daquela pele. Eu já estava com 50, com uma dorzinha aqui, outra ali. Quando vi esse homem, pensei: “Isso é possível”. E fui atrás. Comecei a fazer ginástica e nunca mais parei.
Além de atividade física, cuida da alimentação e do sono?
Sempre fui de comer pouco e não tenho restrição alimentar. Durmo entre meia-noite e uma hora da manhã. Acordo para fazer minha aula de ginástica às 10h, que é meu limite na cama. Eu gosto de dormir. Antes, eu fazia exercícios de segunda a sexta, uma hora e meia. Agora eu faço de segunda a quinta, 45 minutos. A questão da idade não é um problema para mim, porque tenho saúde. Se não tivesse, talvez fosse. E, claro, eu tive tempo de me adaptar. Não posso me queixar de nada.
No seu dia a dia, você reflete sobre espiritualidade e morte?
Eu convivo com isso com naturalidade. Penso muito a respeito. Há pouco tempo, tive uma pintinha no meu peito e quando fui fazer os exames fui direto ao oncologista. Era um câncer de pele dos piores, dos mais agressivos. Fiquei alguns dias com essa informação e te digo: não pirei. Fiquei tranquilo. Se tiver que ser disso, será. Só não quero sofrer. Se isso acontecer comigo, deixo um documento escrito: “Não me prendam. Me deixem ir embora”. Agora, Deus para mim é um princípio que está em tudo. Deus para mim é amoroso e não tem o dedo apontado me dizendo que errei. Não acredito nisso.
Homens e mulheres idosos falam sobre experimentar a solidão ou sentimentos de perda de amigos e cônjuges. Como você se sente?
Eu não tenho depressão nem solidão. Pelo contrário: preciso ficar sozinho. Sou uma pessoa que não suporta viver em rebuliço nem com multidão. Tenho amigos, mas há momentos em que preciso ficar sozinho. Isso para mim não é solidão porque eu necessito. Às vezes, vou para meu sítio e fico lá cinco dias sozinho. Minha mãe está por perto, na casa dela. Eu tenho uma cozinheira que vai lá fazer a minha comida e dorme perto, mas não tenho essa necessidade de estar acompanhado ou de falar.
Esse momento de solitude é também para pensar em novos projetos?
Lá, no meu sítio, fico gravando os sons do dia e da noite. Tenho tudo isso gravado e ainda pretendo gravar em estúdio, de alguma maneira. Porque os sons da noite começam às cinco da tarde, vão até cinco da manhã e vão se transformando. A cada hora entra alguém. A cada hora entra um personagem novo, um som novo. Fico gravando essas coisas.
Ou seja, a proximidade com a natureza é algo necessário e produtivo para seu processo criativo.
Sempre tive essa relação com a natureza, desde criança. Quando era adolescente, chegava do colégio, almoçava e me mandava para dentro de uma floresta: eu e meus 11 cachorros. Passava a tarde inteira lá com meus bichos e voltava ao entardecer. Isso era diariamente. Foi quando entendi os ciclos da natureza. Estava todo dia acompanhando transformações: a hora em que os animais procriavam, o período da fruta. Ia pelo faro. Nunca tive medo de bicho. Nunca ataquei nenhum animal. Eles não estão ali me esperando. É uma convivência respeitosa.
Por esse motivo você acabou tornando seu sítio um espaço de soltura de animais?
Meu sítio é uma Reserva Particular do Patrimônio Natural que agora transformei numa área de soltura. Tudo oficial, junto ao Ibama. Alguns animais chegam lá e são soltos na hora, enquanto outros têm que passar por uma quarentena porque a gente não pode soltar um animal doente. Lá tenho um lugar específico feito para animais reaprenderem a voar, por exemplo. Isso tudo faço com meu dinheiro. É um sítio dentro da Mata Atlântica, em Saquarema, e tem dois rios: um que passa perto da minha casa e outro que passa perto da casa da minha mãe. Água puríssima. A riqueza está aí.
Além desta preocupação com a natureza, você faz parte de uma geração que brigou por outras causas, mas nunca levantou bandeiras. Por quê?
Não sou de discurso e acho que minha existência conta. Eu sou a bandeira. No meu trabalho está refletido tudo o que penso. Não tenho necessidade de fazer discurso. Não sou político e não me interessa me aproximar disso. Isso não quer dizer que eu não observe o que está acontecendo e tire minhas conclusões. Em termos de geração, tenho interesse em deixar um legado de liberdade, de exercitar meus direitos, de defender a natureza, os índios, os negros, as minorias. Defender e apoiar todas as minorias. Esse é meu modo de olhar a vida.
Antes de ser cantor, houve um momento em que se dedicou a ser ator. Como foi essa transição?
Eu achava que cantar era interessante para o ator. Mas abri mão de tudo e segui na música. Só que, na década de 1980, a Ana Carolina me convidou para fazer um filme [Sonho de Valsa, 1987]. Era algo que eu nunca fazia e pensei na chance interessante de exercitar o ator, já que eu tinha feito teatro antes. Adoro fazer cinema e tenho feito alguns filmes [a exemplo de Não Devore Meu Coração, de Felipe Bragança, lançado em 2017]. Mas na música sou ator. Porque aquele lá não sou eu. O princípio do meu pensamento é teatral. Estou cantando, mas sei que estou fazendo muita coisa do teatro ali, sempre fiz e continuarei fazendo.
Há uma sensualidade em sua performance no palco e também uma preocupação com a coreografia?
Agora estou mais solto do que nunca na vida. Cada dia faço de um jeito. Isso me agrada muito: não ter uma coreografia. Apenas entrar e me soltar. Antes, todos os outros shows tinham uma coreografia. Acho que isso que faço agora é uma proposta de liberdade. Continuo exercitando isso [a sensualidade] no palco porque ela ainda existe em mim. Não é algo que está fora de mim e estou utilizando para seduzir. Nunca foi para seduzir a plateia. Sempre foi para demonstrar que era possível alguém ser livre sexualmente. E continua sendo isso. Eu não ia ficar inventando para agradar ninguém nem para fazer tipo.
No entanto, esse é um elemento associado a sua imagem. Isso atrapalha ou ajuda?
Minha intenção não é “pegar” ninguém da plateia e nunca foi. É possível você ser livre nesse aspecto. Ainda mais um homem que não poderia ser sexualizado e sensualizado. Das mulheres isso era exigido e, aos homens, vetado. Jamais quis ser mulher nem ocupar o espaço da mulher, mas achava que o espaço do homem não devia ser tão restrito. E vejo que isso repercute até hoje nos homens e que todos dançam e têm liberdade física para isso. O funk, então, determinou isso de uma maneira impressionante.
Foto: Adriana Vichi
Ao longo de 46 anos de carreira, sua discografia não é datada. Parece atemporal. Qual sua percepção a respeito?
Mas o que eu fiz nos anos 1980 tinha um estilo anos 1980. Tinha uns teclados que todo mundo usava na época. No momento, ele estava em todos os discos e no meu trabalho também tem. Não renego e não fiquei preso a isso. Era coisa do produtor na época. Moda nunca foi intenção para mim. Música para mim é música e nunca procurei estilos. No tempo em que trabalhava com o [Marco] Mazola, ele me entregava tudo pronto e eu colocava a voz. É que teve um momento em que o Lincoln Olivetti [maestro, arranjador, instrumentista, tecladista, 1954-2015] ocupava todos os espaços e estava em todos os discos. E isso deixa os anos 1980 evidentes.
Cada disco seu é único e você sempre se cercou de grandes músicos. Como é esse olhar sobre a constante renovação?
Procuro dentro do que me oferecem, quando quero músicas inéditas, algo que seja compatível com meu pensamento. Se não for, não gravo. E o que me leva a gravar uma música não é nem a melodia, é a letra. Quero saber se aqueles assuntos são compatíveis com meu pensamento para ser coerente. Tenho uma busca na minha vida pela coerência. E sempre fiz questão de ter os melhores músicos disponíveis. Eu me considero um artista popular.
Havia uma pressão por parte de produtores e gravadoras para fazer uma canção de sucesso?
As gravadoras dizem que sabem disso e também não sabem. Por exemplo, quando gravei Pescador de Pérolas (1987), esse disco me fez sair de uma gravadora porque ela não quis lançar o álbum. Então, entrei em outra gravadora exigindo que o lançassem. Diziam que não era um disco comercial, mas, no final, ele vendeu muito. Então, para mim, ficou comprovado que não existe fórmula. Ou seja, não existe essa coisa de comercial e não comercial na minha cabeça. Acho que não é para ficar preocupado com isso, mas fazer o que você acredita. Porque tem gente que até hoje está na mão de produtor, e eu estou nas minhas mãos. Faço só o que quero. Decido o que vou plantar, meu figurino... Eu sei da minha vida e arco com a minha vida artística e a outra também.
Já pensou se deveria ou não ter gravado alguma canção?
Homem com H, por exemplo, que foi meu maior sucesso. Não é que eu não quisesse gravar, mas achava que as pessoas iriam me achar um oportunista por estar gravando um forró sendo que não sou do Nordeste. Aí parei para pensar: “Poxa, não sou do Nordeste, mas sou do Brasil. E o forró faz parte do espectro da música brasileira. Então, por que eu não posso?”. Dali para frente acabou essa bobagem. Canto de tudo, tudo mesmo, e não tenho preconceito contra nenhum estilo musical. Acho que dentro de cada um temos coisas interessantes.
Como referências, você sempre apontou sua admiração por Raul Seixas e Chico Buarque, de estilos tão diferentes.
Isso. Eles são opostos. Quando o Chico grava um disco, eu fico na expectativa para saber o que vou gravar daquele trabalho. Já fiz isso muitas vezes. E, do Raul, A Maçã é a terceira música que gravo. Metamorfose Ambulante é quase minha – as pessoas acham que é algo que me identifica porque já cantei essa música, e gravei, várias vezes. Quase que Gita entra agora [na turnê Bloco na Rua, de 2019], mas optei por A Maçã. Eu não tenho pressa. À Distância, de Roberto Carlos, ouvi num filme italiano. Fiquei tão arrebatado que pensei: “Um dia vou cantar essa canção”. Passaram-se vários anos até gravar em Beijo Bandido (2009). Barco Negro era da minha infância – eu tinha uma vizinha portuguesa que cantava aquela música. Depois, fui ver um filme francês em que aparecia a Amália Rodrigues cantando. Nem sabia o que ia ser quando crescer e, no meu primeiro disco solo, a gravei.
Além do Raul Seixas, nesta turnê você inclui uma canção de outro cantor da sua geração, Sérgio Sampaio. Houve algum motivo especial?
Eu sempre quis cantar essa música do Sérgio Sampaio [Eu Quero É Botar Meu Bloco na Rua, de 1972]. Me lembro do impacto dela. Decidi que ia cantar essa música quando saiu a Phono 73 [Phono 73 foi um festival de música realizado no Centro de Convenções do Anhembi, em São Paulo, em maio de 1973, registrado em dois CDs e DVD lançados em 2005] e eu o vi cantar essa música. Achei aquele homem louco. A música ficou na minha cabeça. Neste trabalho, especialmente, eu queria pegar músicas de várias épocas. Não estava preocupado se aquela música tinha sido cantada 20 vezes por 20 cantores. Eu queria dar meu ponto de vista sobre ela.
E como é sua relação com um público de diferentes gerações?
Num show no Nordeste, subiu uma senhora de 80 anos no palco. Ela depois invadiu o camarim para me abraçar. Ela estava ótima. Acho que [essa relação com o público] passa pela coisa da sexualidade, mas não é de agora. Afinal, eu já “frequento” a casa dessas pessoas há muitos anos. Mas não as conheço. Acho que estou ali, no palco, para libertar. Sou um liberador e não reprimo nada. Só não podem me derrubar do palco. Teve um show em que eu me sentava na escada e cantava Beija-me, e elas vinham me beijar. Eu deixava. Como vou dizer “Beija-me” para a plateia, sentado numa escada, e não deixar que me beijem?
Quando você fala que só pode agradecer por chegar aos 78 anos, pensa que poderia ter feito algo diferente no passado?
Estou tranquilo e em paz com minha consciência. Trabalho sem parar há 46 anos. Não tiro férias. Houve uma época em que fazia dois shows, tinha duas bandas: uma parava e eu seguia com a outra banda. Fazia dois trabalhos ao mesmo tempo. Calhou de ser assim. Eu não decidi. Estava fazendo um show com a Aquarela Carioca e fiz um disco com músicas do Cartola. Eu tinha que fazer esse show [com músicas do Cartola] em três capitais para lançar um livro sobre o Cartola. O livro não chegou, mas fiz o show e houve uma repercussão grande que eu não esperava. Então, eu fazia o show do Cartola e outro com a Aquarela Carioca.
Você pensa em uma data limite para se apresentar no palco?
Não tenho uma data. Estou no lucro absurdo de cantar aos 78 anos e sei também que isso vai acabar em algum momento. Não sei quando porque estou começando essa turnê [Bloco na Rua, 2019] e não sei até quando vai. Por mais dois anos é fácil continuar a fazer shows. Na verdade, o real tempo de vida de um show é dois anos. Então, daria para completar 80 anos no palco. Minha voz não é igual à da época de Secos & Molhados. Eu era obrigado a cantar daquela maneira porque éramos um trio e era exigido de mim aquela voz. Só que minha voz agora tem mais nuances, mais médios, graves, além dos agudos. Claro que quando ouço a minha voz no Secos & Molhados acho linda, bem colocada, limpinha, mas hoje em dia tenho muito mais possibilidades vocais do que naquela época. Então, não pretendo sair dos palcos porque as pessoas estão desgostosas de me ver. Prefiro sair quando eu ainda estiver cantando.