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Somos a receita de nossos afetos

Na receita da vida, cada ingrediente forma um grande e farto prato de saberes.

Para a receita do dia a dia, conheci os ingredientes fazendo a comida ensinada pelos meus pais. Saber cozinhar sempre foi muito mais uma necessidade do que uma curiosidade.

Para minha mãe, ter conhecimento na cozinha era princípio básico para qualquer pessoa.

Em minha trajetória e na minha memória mais antiga sobre comer, o sofisticado nunca existiu: taças específicas, panelas de inox, tigelas de porcelanas, comidas requintadas, guardanapos bordados. No lugar disso, a simplicidade. A falta de tempo e o baixo investimento para isso davam o tom do que era possível. Alimentos-base, de época e só feito em casa.

Desde muito cedo, quando ouvia o chiado da panela de pressão e o cheiro de alho refogando, era o prenúncio do feijão com arroz de sempre ocupando o espaço do prato todo. Por cima dessa dupla tão brasileira, vinha a “mistura” (vulgo prato principal), que não necessariamente era a carne. Poderia ser um queijo fatiado no prato e derretido pelo feijão, abobrinha empanada em rodelas ou salada de ovo com batatas.

As refeições sempre à mesa e com a presença de todos que estavam em casa. Ai de alguém que não fosse para a cozinha quando ouvisse o anúncio de que a “Comida tá pronta! Do que tem, não falta nada”.

O serviço de porcionamento era feito pela chefe da família. Colocava em cada prato a divisão exata do que tinha na panela. Não tinha repetição, mas era o suficiente. Não podia sobrar nem um caroço no prato, afinal, “qual é a mala cheia que não cabe um par de meias?” – falavam. Sobremesa? Laranja, descascada pela minha mãe.

Para usar uma lata de leite condensado, tinha que fazer um quase “ofício” de autorização. O pacote de bolacha tinha que ser dividido entre as duas filhas. Se comesse tudo no primeiro dia, não sobraria para o resto do mês. Restaurante? Só em aniversário.

Se me fez falta? Confesso que, na época, não entendia

muito bem. Só depois de muito tempo me dei conta do quanto foi importante para a não valorização do

consumismo e dos modismos desenfreados,

que poderiam ser tão prejudiciais à saúde.

Meus pais, ao transmitirem seus conhecimentos culinários e

modos de comer, não sabiam que ensinavam muito mais que misturar ingredientes. Ensinavam o valor do simples, do caseiro, da partilha e de estar com pessoas que amamos. E, por que não, do saudável?

Gosto de quem cozinha.

Entro pelos corredores do Sesc até chegar em minha sala, cruzo com a Dona Conceição, que logo me pergunta “quando será a próxima oficina de culinária?”. Ao longo dos dias, vejo pessoas visitando nossa parede viva construída em uma das ações do Experimenta! e que já faz seu terceiro aniversário. Está viva e resistente ao tempo, porque as próprias pessoas a fazem viva: regam, cuidam, levam um pedacinho, trazem outras tantas mudas.

Nas atividades de saúde e alimentação, encontro Seu Paulo sempre na primeira fileira, e com um sorriso estampado fala aos quatro cantos que adora aquele momento. Reconheço também pessoas novas se interessando por PANC, flores comestíveis, preparações saudáveis. Converso com as cozinheiras das instituições sociais atendidas pelo Mesa Brasil e percebo que a profissão delas é tão cheia de desafios,

mas ao mesmo tempo tão rica.

Nesse sentido, o Sesc então difunde muito mais do que o conceito de saúde e alimentação. Promove também o resgate da receita da vida das pessoas: o acolhimento, o afeto e o prazer do encontro envolvendo o ato de comer.

Toque final dessa receita?

... Mexa (todos os ingredientes) com muito entusiasmo.

Ao ferver, não esqueça de colocar

Uma dose de esperança

E várias gotas de liberdade.

Sorrisos largos e abraços apertados,

Para dar um gosto especial.

Quando pronto,

assim que os olhos começarem a brilhar,

Sirva-o de braços abertos.

(trechos da poesia: Receita para um novo dia, do poeta Sérgio Vaz)

Do que tem, não falta nada!

Sirva-se!

 

Lilian Maria da Rocha é nutricionista e coordenadora do programa Mesa Brasil Sesc na unidade do Sesc Campinas, onde também integra a equipe de Educação em Saúde.

 

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