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Compositor de destinos
Ele se tornou uma moeda, no entanto está sempre em falta. Mesmo assim, pensamos que o temos de sobra, para vender ou trocar. Até que lá vem ele a nos passar uma rasteira. Tempo, tempo, tempo. Versado por poetas, questionado por filósofos, medido por cientistas. “São proverbiais as dificuldades que os primeiros filósofos encontraram a respeito do tempo. Elas estão concentradas em Platão, para quem o tempo é a imagem da eternidade”, descreve Franklin Leopoldo e Silva, professor aposentado da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo
(FFLCH-USP). Já no campo da física, “para podermos distinguir o passado do futuro ou, se preferirem, contemplar a constante transformação do mundo, precisou-se inventar um conceito físico – o conceito de tempo”, explica George Matsas, professor do Instituto de Física Teórica da Universidade Estadual Paulista (Unesp) e membro titular da Academia de Ciências do Estado de São Paulo (Aciesp). Ambos participaram da atividade Dois Olhares que Conversam: Tempo na Física e na Filosofia, no Centro de Pesquisa e Formação (CPF) do Sesc, em agosto passado. Pesquisadores que atuam em searas distintas, mas que se questionam sobre o mesmo objeto de estudo. Seria o tempo um conceito abstrato ou uma medida concreta? Afinal de contas, o que é o tempo? Neste Em Pauta, Silva e Matsas traçam visões particulares sobre o assunto.
Dois olhares sobre o tempo
Franklin Leopoldo e Silva
São proverbiais as dificuldades que os primeiros filósofos encontraram a respeito do tempo. Elas estão concentradas em Platão, para quem o tempo é a imagem da eternidade. Isto é, o que vemos e vivenciamos como tempo, como transitoriedade e devir de todas as coisas é apenas aparência, como tudo que se situa no mundo percebido pelos sentidos. Em realidade não há tempo, e na verdade a eternidade é essencialmente o modo de vida das coisas essenciais, e será o nosso modo de viada depois que nossa alma se livrar da prisão do corpo e retornar ao Lugar Celeste, mundo das essências e das formas puras, onde não há lugar para o envelhecimento e a morte.
O mundo que habitamos não é o mundo verdadeiro, isto é, real. A realidade consiste nas formas transcendentes que habitam a esfera da verdade e que constituem as essências de tudo que existe. O filósofo aspira a voltar a este mundo, portanto aspira à morte (do corpo), que constitui a libertação da alma, cujo destino é a contemplação das verdades puras no mundo das essências.
Essa recusa do mundo sensível, considerado mera aparência, é recusa do tempo, que faz o jogo do ser e do devir pelo qual acreditamos na passagem do tempo, o que é apenas uma participação mínima dos instantes na eternidade que contém a todos. Com efeito, o decorrer do tempo só pode ser racionalmente visto como uma espécie de união contraditória entre o ser e o não-ser, que o intelecto não pode aceitar. Seria como se entre as diferentes realidades vistas ou vividas houvesse um intervalo de nada, representado pela transitoriedade, próxima do não-ser. Assim, quando pensamos no ser pleno, na totalidade do real, não podemos pensar no tempo que passa, provocando descontinuidade na totalidade plena do ser.
Isso explica também a angústia que acomete o ser humano, que é o único animal que sabe que vai morrer e vê a aproximação desse instante na passagem do tempo que o conduz ao nada. Mas se sabemos que o espírito não acompanha o corpo em sua dissolução, então temos motivos para afirmar a imortalidade, e podemos ver o transcorrer do tempo como a aparência que oculta a eternidade. Foi dessa maneira que Platão, visto como o inventor da metafísica, por via da concepção da dualidade do corpo e do espírito, viu na alma racional, no intelecto, uma maneira de restabelecer a verdade, transportando-nos, em conhecimento e em inteligibilidade, para a dimensão do eterno, que a aparência mundana traduz como tempo, como movimento em direção à morte.
Em movimento
Entretanto, no final do século 19, o filósofo Henri Bergson deslocou profundamente esta maneira de pensar, valorizando, ao contrário da tradição, a passagem e a transitoriedade, o movimento constante, como o autêntico estofo da realidade. Ele se deu conta de que a filosofia, ao longo de séculos, havia negligenciado a verdade mais visível e a mais percebida, externa e internamente, de todas as verdades: o tempo passa. Essa constatação, por mais simples que possa parecer, opera uma verdadeira revolução na cultura. Com efeito, são todas as convenções que nos fazem representar a realidade que são invertidas por essa ideia.
Em primeiro lugar, a linguagem, a convenção que, a partir da fixidez e descontinuidade das palavras, nos encoraja a crer que vivemos num mundo compartimentado pelos instantes, que, como a série numérica, nos apresenta a realidade como segmentos separados e descontínuos, concebidos como lugares de cuja soma formamos o que entendemos por mundo.
Por que o fazemos? Porque a linguagem, o pensamento conceitual e o próprio senso comum encaminharam-se nesta direção? A resposta de Bergson tem a ver com a teoria da evolução, concepção de ponta em sua época e da qual ele foi partidário, embora fizesse da evolução uma ideia mais radical do que a dos cientistas.
A filosofia da evolução, na verdade, e de acordo com Bergson, estrutura-se não apenas sobre o tempo e a história, como a teoria da evolução, mas sobre uma nova concepção do tempo que, como vimos, faz do movimento, da passagem ou do fluxo o autêntico teor da realidade, invertendo a filosofia platônica: as aparências, a nossa representação do mundo, vê no tempo a descontinuidade dos instantes, quando na verdade ele seria um fluxo contínuo, qualitativo e não mensurável pelas convenções criadas ao longo da história da cultura.
Tempo x realidade
Seria o tempo da ordem do inefável? Sem admiti-lo decididamente, podemos, pelo menos, supor que ele não é da ordem da matemática, o que significa que a ciência não o apreende. Uma filosofia da evolução faz a diferença entre os hábitos consolidados, a partir de nossa natureza, a especulação de que a vida não tem necessidade, por apreender uma verdade que não se relaciona com a sobrevivência.
O homem não é sapiens, mas faber: isto quer dizer que ele não foi feito para se preocupar com a verdade da realidade, mas apenas com seu teor pragmático, ou seja, com aquilo que lhe permite viver e sobreviver, como todos os outros seres vivos. A inteligência humana, órgão de sobrevivência, pensa apenas na justa medida em que isto é necessário para que o ser humano empreenda ações de que necessita para sobreviver.
No entanto, o homem ocupa entre os seres vivos um lugar ambíguo, na medida em que sua inteligência pode ocupar-se também daquilo que está além da mera sobrevivência e, assim, pode pensar gratuitamente, pode pensar a verdade. É esse passo adiante, que é dado pela evolução em nós, que nos torna animais “antinaturais” e é por isso que nos preocupamos com assuntos irrelevantes para a vida natural.
O que vemos e vivenciamos como tempo,
como transitoriedade e devir de todas as coisas
é apenas aparência, como tudo que se situa
no mundo percebido pelos sentidos
Disto a filosofia se ocupou eventualmente, mas a arte teria feito de tais preocupações sua razão de ser e sua finalidade. Não, evidentemente, seguindo o ritmo da evolução natural, mas uma certa intuição que desvela aos olhos do artista uma realidade mais “real”, isto é, o movimento e o fluxo, constituintes da “essência” de tudo que existe. Por isso os artistas são seres gratuitos, distraídos em relação à finalidade vital, mas atentos ao que menos interessa: a intuição da essência da realidade, no sentido contrário à tradição, isto é, ao tempo como fluxo construtor da realidade em sentido profundo.
Ora, a filosofia deveria ter na arte o seu paradigma, se quer pensar aquilo em que a ciência e o senso comum não estão naturalmente interessados. A filosofia deveria pensar deliberadamente e por reflexão o mesmo que o artista pensa acidentalmente, e quase sem saber por quê. A filosofia que pretende ter como tema a evolução, isto é, o teor temporal da realidade, deveria ser radicalmente crítica da tradição e dos hábitos consolidados em seu desenvolvimento.
Uma vez liberada desses hábitos, a realidade não se apresentaria mais como um sistema de convenções, e o tempo como o ritmo segmentado de realidades separadas. Poderia aproximar-se, por via de uma reflexão metódica, da intuição, que é essencialmente o procedimento do artista. E assim o tempo se apresentaria não mais como um modo de organizar a realidade, mas como a própria realidade em seu movimento constante e permanente de produzir diferenças.
É claro que assim quase todos os procedimentos culturais estariam em jogo, principalmente a ciência e a tecnologia, que sempre dependeram das convenções. Mas não precisamos abandoná-los, pois o homem tem um lugar ambíguo na natureza: cabe-lhe segui-la, como todos os seres vivos, mas cabe-lhe também, pela força do espírito, superá-la e refletir sobre ela, compreendendo-a e, assim, compreendendo o seu lugar. Ele é capaz de lançar um outro olhar a si mesmo e ao mundo.
Franklin Leopoldo e Silva é professor aposentado da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP), autor de Ética e Literatura em Sartre (Unesp, 2004) e Universidade, Cidade, Cidadania (Hedra, 2014), entre outros livros, além de palestrante e professor de cursos sobre as relações entre literatura e filosofia.
O tempo: o que é e como medi-lo, segundo a física
George Matsas
O tempo permeia tudo em nossas vidas e, mesmo assim, nada parece mais elusivo do que “aquele que a tudo devora.” Os gregos chegaram a associar um Titã ao “tempo”, Cronos, pai de Zeus – o principal deus do panteão olímpico.
Ninguém expressou melhor nosso sentimento de perplexidade diante do “tempo” do que o grande pensador cristão, Agostinho de Hipona, mais conhecido por Santo Agostinho. Escreveu, ele, no fim do século 4, sobre o tempo: “Se ninguém me pergunta, eu sei. Se alguém me pergunta, eu não sei”.
Essa declaração foi dada 12 séculos antes de Galileu Galilei nos ensinar que a forma mais eficiente de investigarmos a natureza não é a partir da tradição filosófica grega, mas por meio do método científico. Hoje, passados quase quatro séculos desde a morte de Galileu, temos a obrigação de dar uma resposta mais satisfatória do que a de Santo Agostinho.
O primeiro ponto a reconhecer é que o mundo está em constante transformação. Cientistas passam boa parte de suas vidas prevendo o futuro a partir de seus conhecimentos sobre o passado. E para podermos distinguir o passado do futuro ou, se preferirem, contemplar a constante transformação do mundo, precisou-se inventar um conceito físico – o conceito de tempo. Tudo isso pode parecer trivial e, de fato, não passaria de palavras ao vento, se não fôssemos capazes de dar uma prescrição concreta de como medi-lo.
Que horas são?
Em resumo, “tempo” é o que “relógios honestos” medem e relógios honestos são aparatos que não atrasam e nem adiantam. Grande novidade – pode você pensar –, isso todo mundo sabe! De fato, mas como saber se um relógio atrasa ou não se não existe um relógio universal com o qual possamos compará-lo? Ou seja, um relógio honesto não atrasa nem adianta com relação a quê?! A resposta é: com relação a outros relógios honestos. Pode parecer uma resposta circular, mas não é!
Digamos que você receba uma caixa de relógios e lhe seja dado o desafio de separar os relógios honestos dos desonestos. Como podemos proceder? O primeiro passo é separar em caixas diferentes relógios que fazem tic-tac em passos distintos. Um ponto fundamental que a relatividade de Einstein nos ensinou é que a comparação deve ser feita com os relógios em repouso entre si e no mesmo lugar. Não vamos permitir comparações entre relógios que se movam entre si, nem admitir que os relógios estejam distantes um do outro.
Digamos que todos os relógios possam ser separados em duas caixas: A e B. Vamos começar nos concentrando nos relógios da caixa A, que, pelo procedimento acima, sabemos estarem avançando a par e passo entre si. É um bom começo, mas como garantir que os relógios da caixa A não foram maliciosamente programados para atrasarem de forma combinada a fim de nos enganar? Para eliminar essa possibilidade, devemos desligar por períodos aleatórios os relógios e verificar se, ao serem religados, voltam a “tic-taquear” no mesmo passo. Aqueles relógios que ao serem religados não voltarem a avançar no mesmo ritmo dos demais serão considerados desonestos e devem ser descartados.
Depois disso, restarão apenas relógios honestos no sentido de que avançarão a par e passo independentemente de suas histórias passadas. Isto é, avançarão no mesmo ritmo independentemente de quando foram fabricados, se foram desligados por algum tempo ou não, ou mesmo quais eram suas trajetórias antes de serem colocados na caixa.
Você deve ter percebido que há uma condição para que essa estratégia funcione: de que haja na caixa pelo menos um par de relógios honestos. No caso desse não ser o caso, acabaríamos ao final do procedimento acima com uma porção de relógios avançando cada um em um ritmo diferente. Neste caso, não saberíamos se todos ou se todos menos um seriam relógios desonestos e precisaríamos testar os relógios nas outras caixas, que no nosso caso se resumiria à caixa B.
Se você não conseguir identificar nenhum par de relógios honestos em nenhuma das caixas, eu recomendo que você troque seu fornecedor, pois ele não só produz péssimos relógios, mas pode ainda estar tentando te enganar com relógios maliciosos que adiantam ou atrasam de forma premeditada.
E se acontecer de encontrarmos um conjunto de relógios honestos em cada uma das caixas A e B? Haveria um conjunto mais honesto do que outro? Na física, ao contrário do que se ouve nas ruas, honestidade é um conceito absoluto. Assim, no caso de encontrarmos um conjunto de relógios honestos em cada uma das caixas A e B, eles só poderão diferir por um fator constante. É o que aconteceria, por exemplo, se os relógios das caixas A e B marcassem o tempo em segundos e minutos, respectivamente.
Em resumo, “tempo” é
o que “relógios honestos” medem e
relógios honestos são aparatos
que não atrasam nem adiantam
Os melhores relógios já construídos são relógios atômicos. Quando um elétron em um átomo isolado transita entre diferentes órbitas, ele emite uma onda eletromagnética. Pense nela como uma onda do mar que se propaga com suas cristas e vales. Se a velocidade de propagação das ondas do mar e a distância entre suas cristas fossem constantes, poderíamos usá-las como relógios.
Nada do que foi será
Poderíamos inventar uma unidade de tempo que corresponderia à passagem de 10 cristas desta onda por uma boia. A chegada de 20 cristas corresponderia a duas unidades de tempo e assim por diante. Ondas do mar são muito inconstantes para serem usadas como relógios, mas ondas eletromagnéticas geradas em transições atômicas específicas são perfeitas para isso, pois se propagam exatamente à velocidade da luz e a distância entre suas cristas são uma constante da natureza.
Os relógios atômicos mais precisos são capazes de medir o tempo de vida do Universo (14 bilhões de anos) com uma incerteza de menos de um segundo! Pode parecer um exagero querer determinar o tempo com tanta exatidão, mas a medida do tempo é incrivelmente importante no mundo moderno. Para dar um exemplo, o sistema global de posicionamento (GPS) não funcionaria sem relógios atômicos.
Os relógios nos satélites e nas bases em Terra, que são o coração do GPS, precisam se manter sincronizados em frações de milésimo de milésimo de segundo. Do contrário, o GPS teria dificuldade em saber em qual cidade você se encontra, quanto mais em informar em que esquina você deve virar. Lembre-se disso cada vez que seu avião pousar em segurança. Bom, agora que você já sabe mais sobre o tempo, vamos combinar: já é tempo de encerrar o artigo.
George Matsas é doutor pelo Instituto de Física Teórica da Universidade Estadual Paulista (Unesp)
com pós-doutorado na Universidade de Chicago, professor titular do Instituto de Física Teórica da Unesp
e membro titular da Academia de Ciências do Estado de São Paulo (Aciesp).