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Trabalho remoto
Arte: Werner Schulz.
Seja em fim de semana ou no feriado, a qualquer hora do dia e da noite, milhões de pessoas estão atendendo a demandas de trabalho em casa. Se por um lado o home office se desprende da necessidade de enfrentar engarrafamentos ou ter gastos com transporte e almoço, por outro, ele se apega a uma quantidade sem fim de horas e dias de tarefa. Neste último caso, para o sociólogo Ruy Braga, chefe do Departamento de Sociologia da Universidade de São Paulo (USP), há uma reorganização e vivência do tempo de trabalho: “Na medida em que esse trabalho é regulado economicamente pelo sistema de administração por metas, e considerando que as empresas tendem a endurecer permanentemente seus objetivos, verifica-se certa implosão das barreiras entre tempo livre e tempo de trabalho. Ou seja, todo o tempo da vida de quem está em home office transforma-se em trabalho”. Neste panorama pesam, também, consequências sobre a saúde do trabalhador. “Pode haver um sentimento de isolamento muitas vezes acompanhado de quadros depressivos. O homem sempre foi um ser gregário e estar junto, ou fazer parte, é algo que estimula muito os vínculos afetivos assim como desenvolve novas habilidades na convivência”, pondera a psicóloga e psicanalista Dorli Kamkhagi, doutora em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Entre perdas e ganhos, o que está por trás do home office? Os pesquisadores Braga e Kamkhagi tecem suas reflexões.
Dilemas do teletrabalho
Ruy Braga
Uma questão clássica das ciências humanas, debatida ainda hoje, consiste em saber se o progresso tecnológico ajuda a satisfazer as necessidades sociais ou apenas aprofunda a alienação humana. Em poucas palavras, a tecnologia serve para nos emancipar ou nos explorar? Muitos analistas que veem a flexibilidade do trabalho como aspecto positivo do atual desenvolvimento das tecnologias de informação e comunicação – em especial, o aumento da produtividade do trabalho em escritórios devido à difusão dos sistemas de informação – tendem a se alinhar ao polo “otimista” do debate. Aqueles que enfatizam o desemprego estrutural produzido pelos avanços da atual revolução da internet das coisas e da manufatura complexa no setor de serviços e na indústria tendem a se aglutinar no polo “pessimista” do debate.
Diante desse dissenso, como interpretar o inegável crescimento do número de profissionais em home office, isto é, de pessoas trabalhando fora da sede das empresas que as contrataram? Se no Brasil a tendência é recente, concentrando-se, sobretudo, em empresas prestadoras de serviços tecnológicos ligadas ao mundo virtual, nos Estados Unidos estimativas indicam que, independentemente do setor econômico, 40% de todo o trabalho de escritório já é realizado em home office. Além disso, com a recente reforma da CLT, que regulamentou o teletrabalho no Brasil, a tendência é que essa modalidade de contratação seja cada vez mais utilizada pelas empresas.
Flexibilidade ou precarização?
Quais os principais impactos dessas mudanças para a vida dos trabalhadores e dos quadros profissionais? Perceberemos um aumento da flexibilidade ou da precarização do trabalho? Em primeiro lugar, é importante sublinhar que a tecnologia não é em si mesma exploradora ou emancipadora. Aqui, as questões-chaves são: como o progresso tecnológico é apropriado pelas empresas e como ele é regulado pela sociedade?
Nesse ponto, vale diferenciar duas ordens de problemas. A primeira diz respeito ao próprio conteúdo do trabalho realizado. A segunda refere-se ao atual contexto vivido pelo mercado de trabalho brasileiro. É por meio da interação entre essas duas ordens de questões que devemos avaliar o aumento do teletrabalho no país.
Da perspectiva do processo de trabalho, o home office apresenta, de fato, uma face muito sedutora. Afinal, vivendo em uma cidade como São Paulo, por exemplo, quem não gostaria de trabalhar em casa, evitando o trânsito e os perigos ligados à circulação nos espaços públicos, como assaltos e acidentes, por exemplo? Além disso, o trabalho em home office satisfaz com mais frequência a parcela feminina da força de trabalho, que percebe na flexibilidade da jornada uma maneira de equilibrar demandas profissionais e exigências domésticas.
No entanto, cabe observar que muitos efeitos deletérios para os profissionais em home office têm sido registrados por sociólogos do trabalho. Na medida em que esse trabalho é regulado economicamente pelo sistema de administração por metas, e considerando que as empresas tendem a endurecer permanentemente seus objetivos, verifica-se certa implosão das barreiras entre tempo livre e tempo de trabalho. Ou seja, todo o tempo da vida de quem está em home office transforma-se em trabalho.
Aqui, não se trata mais de falar em flexibilização da jornada de trabalho, mas em ampliação de uma jornada que devora os finais de semana e não diferencia o dia da noite. As chamadas “horas extraordinárias” raramente são consideradas pelas empresas no cálculo da remuneração dos profissionais. Isso sem mencionar que, quando estes vão para home office, geralmente, seus salários caem.
Alienação e regulação
Trabalhar em casa pode aprofundar o sentimento de alheamento pessoal devido ao isolamento em relação aos colegas. É muito conhecido o efeito de emulação do trabalho que a sensação de fazer parte de um grupo produz. Num mundo cada dia mais familiarizado com a depressão psíquica, o caráter destrutivo desse sentimento de alheamento não deve ser desprezado. Um estudo recentemente divulgado na Inglaterra e que acompanhou 20 mil pessoas por dez anos concluiu que mulheres trabalhando 55 horas por semana apresentam 7,3% mais chances de desenvolver depressão do que aquelas que trabalham 40 horas. Reconhecidamente, as mulheres que trabalham em casa são as que realizam as jornadas mais longas.
É IMPORTANTE SUBLINHAR
QUE A TECNOLOGIA NÃO É EM SI MESMA
EXPLORADORA OU EMANCIPADORA
É necessário mencionar que nem todo mundo que trabalha em home office consegue alcançar o patamar de autodisciplina exigido pelo sistema de administração por metas. A verdade é que existem pessoas que se sentem mais confortáveis recebendo cobranças de forma direta, “olho no olho”, interagindo no ambiente de trabalho. Ou seja, a sociabilidade inerente ao ambiente coletivo de trabalho é uma fonte importante de estímulos psíquicos, quer sejam positivos ou mesmo negativos. Afinal, amadurecemos ao solucionar conflitos, em particular no ambiente de trabalho, e é natural desejarmos que nossos méritos sejam reconhecidos por nossos pares.
Tendo em vista o contexto atual do mercado de trabalho, vale lembrar que atravessamos um momento de aprofundamento da mercantilização do trabalho com um claro recuo da proteção do trabalhador.
Além disso, a combinação da estagnação da renda com o elevado número de desempregados e subempregados aumenta muito a pressão para que profissionais aceitem condições desfavoráveis de contratação.
Quando pensamos no aumento dos contratos intermitentes, por exemplo, em que os profissionais ficam aguardando pelo contato da empresa sem receber nada pela espera, percebemos os riscos que o atual contexto econômico traz para aqueles que não alcançaram uma posição protegida no mercado de trabalho, caso dos profissionais mais jovens, por exemplo. O trabalho em home office e o trabalho intermitente apresentam uma perigosa afinidade eletiva.
No entanto, é importante frisar que a degradação do trabalho não é inelutável. O teletrabalho pode ser uma modalidade adequada de contratação para alguns profissionais em certos momentos de suas carreiras, mas não deve satisfazer apenas aos interesses das empresas. Além disso, deve existir um equilíbrio entre o trabalho em casa e a convivência com os colegas no escritório.
Finalmente, cabe destacar que muitas das potencialidades positivas da atual revolução tecnológica podem conviver harmonicamente com a regulação protetiva. Nesse sentido, já é possível perceber em países desenvolvidos um “contramovimento” para redefinir os limites do tempo de trabalho por meio do direito à “deslogagem”. E muitos governos estão atuando de forma mais decidida a fim de coibir as horas extraordinárias não pagas. Para tanto, é necessário que nossa legislação trabalhista avance na direção de proteger aqueles que não têm condições, em especial, mulheres e jovens, de enfrentar esse “admirável mundo novo” a partir exclusivamente do isolamento de seus lares.
Ruy Braga é chefe do Departamento de Sociologia
da Universidade de São Paulo (USP), onde coordena o
Centro de Estudos dos Direitos da Cidadania (Cenedic).
É autor, entre outros livros, de A Rebeldia
do Precariado (Boitempo, 2017).
Os limites e as possibilidades do home office: felicidade x solidão
Dorli Kamkhagi
Cada vez mais, graças ao avanço tecnológico, a utilização de técnicas de trabalho a distância, também denominadas tecnologias de informação e comunicação, faz-se presente como possibilidade nas organizações de trabalho. Conhecido por home office ou teletrabalho, a atividade profissional desenvolvida em casa apresenta pontos positivos e negativos (A terminologia home office apresenta diferentes sinônimos, que vão além de trabalhar em casa: escritório em casa; trabalho a distância; trabalho portátil e outros. A terminologia “tele” significa distância e é o fator determinante para que esse trabalho ocorra).
Podemos pensar nessa nova possibilidade, que a pós-modernidade acaba por nos propiciar, como mais um facilitador na relação entre o homem e seu trabalho. É interessante pensar em algo que há 15 anos parecia impossível: desenvolver um trabalho, pertencer a uma empresa e não ter uma relação presencial e diária num determinado local indicado por essa organização.
Outrora, alguns privilegiados boêmios, artistas, escritores, desenvolviam sua arte (trabalho) noite adentro, em geral em casa ou num estúdio. Isso dava certa aura de glamour e de idealização de um trabalho com requintes. Estar ao mesmo tempo em casa, poder se dedicar a outros afazeres e também usufruir da presença de filhos, animais ou outras atividades.
Para as empresas, tal forma de trabalho pode resultar em uma economia imediata de alguns gastos, como transporte e alimentação. Porém, tal facilidade encontrada por um sujeito pode não ter a mesma plasticidade e compromisso com a empresa revelada por outro. Podendo estar presencialmente atentos e disponibilizando de diferentes cargas e turnos.
O trabalho do espaço corporativo exige grande disciplina. Criar novos e diferentes hábitos e separações entre a moradia e o espaço de trabalho são condições necessárias para bons resultados. Assim, tornar um mesmo espaço lar e local de trabalho significa uma ampliação da privacidade e das necessidades pessoais.
Muitas vezes o trabalhador tem dificuldade de se desconectar das atividades de trabalho. Julgando-se importante que seja feita uma boa avaliação do perfil dos funcionários das empresas para encontrar aqueles que mais se adequam às demandas e conseguir flexibilidade para lidar com as dificuldades desta atividade.
É importante notar que estas delimitações se fazem presentes para que o colaborador que fez tal opção possa, realmente, se sentir num ambiente de trabalho, ou melhor, ter em mente o valor desta postura de trabalho e de disposição de enfrentar outro tipo de jornada. Uma jornada que se faz por meio de uma disponibilidade emocional. Um desafio de, sobretudo, saber que vai ter que lidar com um isolamento e uma solidão que o trabalho dentro de uma empresa, de alguma forma, não deixa transparecer. Um sentimento de isolamento, ao menos, não tão aparente.
De dentro para fora
Estar em contato com amigos, sair para almoços, ter discussões em grupo ou simplesmente tomar um café para uma pequena troca afetiva ou de desabafos podem ser fatores importantes para a sensação de pertencimento. Muitas pessoas que trabalham em casa relatam a facilidade de, por exemplo, não enfrentarem o intenso trânsito da cidade; a possibilidade de ir à empresa com menor frequência; entregarem tarefas por malotes e realizarem videoconferências.
Mesmo assim, existe uma diferença sutil entre nos sentir trabalhando, isto é, desenvolvendo algo, e entre fazer parte da criação de um projeto. Sabemos que a presença dos outros nos estimula e nos ajuda em nosso desenvolvimento psíquico-emocional. Ser olhado e escolhido em nosso ambiente de trabalho traz uma importância vital em nossa vida organizacional. Ser reconhecidos por nossos familiares, por nossos pares e, sobretudo, por nós mesmos. Estar dentro de um lugar, de uma estrutura, na qual temos responsabilidades e comprometimentos. Seja a distância ou no dia a dia da empresa.
O psicanalista D. W. Winnicott, ao considerar a importância do ambiente na formação psíquica e emocional de um bebê, contribui com a ideia da necessidade de se constituir para o outro como algo fundamental. Para algumas pessoas o trabalho a distância é possível, pois elas se sentem bem interiorizadas com sua vida pessoal, e com a provisão nutricional de afetos e relacionamentos. Outras, no entanto, podem ter aparentemente certa liberdade nesta nova forma de trabalho. Algo que não corresponde com o processo que se desenvolve nessa relação de emprego e trabalho.
Sobre essa possibilidade que o home office nos possibilita, Solange Ines Biesdorf (Reflexões Contemporâneas de Direito do Trabalho, Ed. Rosea Nigra, 2011) aponta uma nova forma ou substituição parcial ou total do contato pessoal do empregador e colegas de trabalho, dando lugar a um funcionário virtual, que estará presente em alguns momentos. Todavia o sentimento de pertencer e de se sentir integrado é fundamental ao desenvolvimento humano.
As pessoas muitas vezes necessitam de um olhar que reforce o seu existir, a sua marca no trabalho, e naquilo que elas se propõem fazer. Este olhar é algo que nos valida desde a nossa infância, quando necessitamos que nossos pais nos aplaudam ou mostrem o quanto somos capazes de realizar uma atividade elementar.
HÁ RELATOS DE PACIENTES QUE NOS CONTAM
SOBRE O ESTRANHAMENTO DO “NÃO SAIR DE CASA”
Enfim, os jogos lúdicos infantis serão mais tarde substituídos também pela capacidade de nos relacionarmos em grupos nas empresas. E de sermos tolerantes às críticas e dificuldades nas relações competitivas que se estabelecem nas organizações. Principalmente no mundo corporativo e empresarial, no qual os egos tendem a ter um papel preponderante, facilitando relações de poder e de medo.
Embora existam muitas oportunidades de trabalhar em casa no dia a dia, também pode haver um sentimento de isolamento muitas vezes acompanhado de quadros depressivos. O homem sempre foi um ser gregário e estar junto, ou fazer parte, é algo que estimula muito os vínculos afetivos assim como desenvolve novas habilidades na convivência. O quanto é possível que ocorra um adoecimento lento e silencioso quando nos encontramos muito afastados de um grupo no qual depositamos nossa identidade e reconhecimento?
Novas formas
Pudemos observar que algumas pessoas que tiveram os seus trabalhos formais perdidos viram nesta oportunidade uma nova forma de pensar o que fazer e como fazer o home office. Para muitos foi uma solução, a priori, alternativa e, pouco a pouco, uma maneira de driblar a angústia de um tempo aparentemente vazio e ocioso, além de ter uma fonte de renda.
Há relatos de pacientes que nos contam sobre o estranhamento do “não sair de casa”. O tempo era redimensionado de outra forma. Faz-se necessária uma dose de coragem, de dinamismo e, sobretudo, de uma crença de que existe um trabalho que pode ser feito com dedicação e entusiasmo sem, necessariamente, um diretor a quem se reportar constantemente.
Isso pode funcionar muito bem para pessoas que não necessitem sentir que estão fazendo integralmente parte (do ambiente de trabalho). Mas em algumas fases da vida torna-se fundamental essa “rotina”: dormir, separar a roupa e se aprontar para mais um dia de ver pessoas, desenvolver uma função e sentir-se parte de um contexto social, econômico e dinâmico.
Com o aumento da longevidade houve também esta retomada e uma nova perspectiva de que existe vida após a aposentadoria, e a reinvenção se faz presente. Talvez seja esta discussão importante sobre a validade do home office? É bom estarmos conectados com as pessoas, com projetos e, sem dúvida, com um trabalho que nos permita administrar nosso tempo, fazer escolhas e, se possível, nos deixar espaço para ver o pôr do sol. Podemos amar e apreciar as pequenas/grandes coisas que a vida nos oferece, porém é necessário fazer o movimento da vida.
Movimento que nos permite nos transformar e nos adequar àquilo que é melhor no momento presente. Também é preciso aceitar esse novo mundo no qual trocas são feitas e, sobretudo, as oportunidades nos possibilitam ver novas nuances de outra realidade.
Dorli Kamkhagi, é psicóloga e psicanalista,
mestre em Gerontologia e doutora em Psicologia Clínica
pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).
Coordenadora de Grupos de Maturidade no Instituto
de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade
de São Paulo (FMUSP), no Laboratório de Neurociências.