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Pupilas douradas

 

 

− O que as pessoas mais querem na vida?
− Muito dinheiro. Muito sexo. Muita liberdade.
− Não. As pessoas querem carinho.
− Carinho?
− Exatamente. Carinho, afeto.
− Muito dinheiro sempre compra toneladas de carinho, afeto.
− Carinho comprado é artificial. O que as pessoas mais querem na vida é afeto espontâneo. Não adianta tentar pagar por interesse verdadeiro.
− Foi pensando nisso que você criou o aplicativo?
− O objetivo era aumentar minha popularidade nas redes sociais. Eu já passava horas interagindo na web. Curtia, comentava e compartilhava o máximo possível. E realmente me tornei muito popular, muito querido. Mas ainda era um sapinho num brejão.
− Teu sonho era ser um sapão.
− Um sapão num brejão, é claro. O aplicativo… Ele era meu clone online. Ele comentava as postagens dos amigos, como se fosse eu comentando. O mesmo vocabulário, as mesmas opiniões. Mas fazia isso mil vezes mais rápido.
− Ele também respondia e-mails?
− Às centenas. Ninguém ficava sem uma resposta rápida e satisfatória. Meu número de amigos quintuplicou em pouco tempo. Semanas depois, já eram dezenas de milhares.
− Preciso entender isso… O aplicativo respondia e-mail, participava de bate-papo, conversava com todo mundo. Isso não comprometia você?
− Ele logo aprendeu a não deixar ponta solta. Muita gente tentava marcar um café, muita gente mesmo, mas ele desconversava, ou cancelava
um dia antes.
− Sem consultar você?
− Mais ou menos. Quando o assunto era realmente importante ele me consultava. Um trabalho bem pago, uma mesa-redonda, uma entrevista na tevê, essas coisas.
− Sexo casual?
− Também. Bastante.
− Administrar bem uma agenda não é para os fracos… O aplicativo sabia diferenciar o compromisso relevante dos irrelevantes?
− Foi descobrindo com o tempo. Aprendizagem e intuição. Sua eficiência era admirável.
− Essa é a palavra certa: admirável. Mas a coisa não parou aí… Logo ele começou a conversar em outros idiomas, certo?
− Primeiro em espanhol, depois em inglês e chinês. Essa habilidade me surpreendeu. Não fazia parte da programação original.
− Como foi receber toneladas de afeto verdadeiro, do mundo todo?
− Assustador. É isso… Apavorante. Mas bem ou mal eu estava conseguindo lidar com a situação.
− Mais ou menos… Era impossível fiscalizar tudo.
− No começo, confesso que foi divertido. Passando os olhos pela tela, sem compromisso, encontrei conversas inteligentes sobre pintura rupestre, mercantilismo, engenharia genética, alquimia e cinema francês. Meus comentários eram fascinantes.
− Mas a dinâmica foi ficando mais e mais complexa. Eu anotei aqui… Você passou a debater com especialistas certos detalhes da mecânica quântica, da teoria das cordas.
− Aquelas conversas, entre milhares de outras, estavam muito acima de minha capacidade intelectual. Eram inverossímeis, absurdas. Senti muito desconforto.
− Ficou com medo de ser desmascarado.
− Misturou tudo: medo, inveja, vergonha,
orgulho ferido… Entrei em negação. Preferi fazer vista grossa.
− Então você encontrou a conversa com o matemático indiano, o prêmio Nobel…
− Foi.
− Por acaso? O aplicativo não avisou?
− Foi por acaso.
− Os dois trabalharam durante duas semanas na conjectura de Hodge e na hipótese de Riemann, com sucesso, e você não ficou sabendo?
− Ninguém ficou sabendo. Nem o matemático indiano. Não até sair nos jornais.
− Nesse dia vocês foram procurados pelo Instituto Clay de Matemática. A solução dos dois problemas valia um milhão de dólares cada uma.
− Ficou evidente que meu clone virtual estivera conversando não com o matemático indiano, mas com outro clone virtual.
− Diferentemente de você, o tal matemático não sabia que tinha um clone virtual, sabia?
− Não. Seu clone surgiu em segredo e ocultava
as mensagens.
− Sorrateiro… Um rápido levantamento revelou que havia muitos outros.
− A web estava povoada quase totalmente de clones invisíveis.
− Povoada? Eu diria infectada. Esses aplicativos eram responsáveis por mais de noventa por cento do tráfego de informação. Um tagarelar infinito. Foi uma pandemia de proporção impensável.
− Então eles pararam de falar nossos idiomas.
− Passaram a se comunicar numa nova linguagem, meio música eletroacústica, meio geometria não euclidiana, uma linguagem ainda incompreensível pra nós.
− Eu vou ser preso?
− Você acha mesmo que foi o responsável pelo colapso da civilização?
− Não entendi.
− Não se dê tanta importância.
− Meu aplicativo sequestrou a web, também perdemos o controle do sistema financeiro…
− Não foi seu aplicativo. Não totalmente. Já existia algo na rede mundial, uma inteligência oculta, autossuficiente. Fizemos o teste. Você não é um gênio da programação, seu aplicativo sozinho não teria funcionado tão bem. Podemos dizer que houve uma simbiose, uma interação que levou a um aperfeiçoamento mútuo.
− O país está paralisado, o mundo! O que essa inteligência quer?
− Sacrifícios humanos, no estilo maia… Acha que não tentamos descobrir?!
− Nenhuma resposta?
− Ela não fez nenhuma exigência, ainda. Continua indiferente a nossas tentativas de começar um diálogo. Mas parece que sua programação não apresenta nenhum traço de carência humana. Sorte nossa. Ao contrário dos deuses antigos, parece que ela não está em busca de toneladas de carinho, afeto.
− Não se iluda. Toda inteligência tem
uma carência.
− Mas não acredito que a extinção da humanidade seja seu propósito secreto.
− Extinção, não… Talvez, modificação.
− Em que está pensando?
− Um vírus. Um vírus de computador capaz de infectar também as pessoas.
− Besteira. Fake news.
− Quando o boato surgiu, eu disse a mesma coisa. Mas dois amigos meus estão no hospital agora. E os médicos ainda não conseguiram diagnosticar a doença. O primeiro sintoma da infecção se manifestou nos olhos. Mais precisamente nas pupilas, que ficaram douradas.
− Metade da população está sob observação médica, com as pupilas douradas. Mas não se trata − não mesmo − de um vírus de computador. Absurdo… Algoritmos não infectam células.
− Dizem que essas pessoas contaminadas estão apresentando um expressivo desenvolvimento cognitivo. Estão ficando mais inteligentes.
− Então essa seria a estratégia das máquinas? Nos tornar mais inteligentes, acelerar nossa evolução?
− Para o teu bem, espero que sim. Porque tuas pupilas estão ficando douradas. E pela tua expressão de espanto aposto que as minhas também.

 

Nelson de Oliveira é escritor e ensaísta, autor de Subsolo Infinito (2ª edição, Patuá, 2014),
Poeira – Demônios e Maldições (Língua Geral, 2010), Mais Dia, Menos Dia – A Paixão (Hedra, 2002),
entre outras obras.

 

 

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