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Das trevas à luz
Irreverente, anárquico, marginal e inquieto, Jards Macalé não se cansa de desafiar a rotina com música e poesia
Foto: Leila Fugii
De acordes, versos, risos, lágrimas, e até de vaias, alimenta-se um artista inconformado com a mesmice de fórmulas. Pelo menos foi assim que o carioca Jards Anet da Silva, ou Jards Macalé, ou Macao, construiu, e conquistou, seu espaço na história da música brasileira. Aos 75 anos, o músico, cantor e compositor joga-se novamente de cabeça num álbum de canções autorais. O anterior é O Q Faço é Música, de 1998. Com o recém-lançado single Trevas, escrito a partir de um poema do modernista norte-americano Ezra Pound, Macalé volta a cutucar quem se alimenta de status quo. Aluno do maestro Guerra-Peixe, ele já foi arranjador e músico dos baianos Gal Costa, Maria Bethânia e de Caetano Veloso, para quem produziu e fez a direção musical do disco Transa (1972). Também atuou no longa-metragem O Amuleto de Ogum (1974), de Nelson Pereira dos Santos, para o qual ainda compôs a trilha sonora. Entre seus parceiros na música, estão Capinam, Torquato Neto e o poeta Waly Salomão, com os quais criou obras-primas, a exemplo de Vapor Barato. Nesta entrevista, Macalé fala sobre as referências que amalgamaram sua geração, sobre nadar contra a corrente e valorizar as coisas simples da vida: “Tenho quatro violões, dois pares de sapato e um par de chinelos e já está bom à beça”.
Depois da sua geração – Gilberto Gil, Chico Buarque, Caetano Veloso, entre outros –, vieram outras que já desvaneceram. A que se deve essa longevidade?
Acho que isso vem da nossa formação.
Da formação num país extremamente musical. Somos filhos de Fernando Lobo, Vinicius de Moraes, Dorival Caymmi. Filhos do Tom Jobim, que também circulava com o pessoal, e de João Gilberto, que também dava as cartas para todos eles. A música brasileira sempre foi muito sofisticada, independente de boleros e foxtrotes. Como a geração de Noel Rosa e de Vadico, que foram de uma alta sofisticação. Também se agregam orquestradores como Radamés Gnatalli. Ou seja, há uma história que desemboca na minha geração. E tudo converge para o Chega de Saudade, para a Canção do Amor Demais. Em particular, para esse formato da canção e de orquestração [em julho de 1958, Elizete Cardoso lançou o famoso LP Canção do Amor Demais, com músicas de Tom Jobim e Vinicius de Moraes. Nele, João Gilberto acompanhava Elizete ao violão nas faixas Chega de Saudade e Outra Vez, primeiras gravações da chamada “batida da bossa nova”].
Essa busca pela canção popular foi algo premeditado?
Acho que isso veio naturalmente. Como não ser influenciado por Dorival Caymmi ou por Ary Barroso? Por Wilson Batista, Geraldo Pereira ou por Cartola, que veio depois deles e que compôs canções maravilhosas? Mistura-se de tudo: a canção urbana e a canção não urbana como as de Luiz Gonzaga e Jackson do Pandeiro. Desse caldeirão é que vem a minha geração. Da ideia de modernização do Brasil, que vem de Juscelino e de Brasília. Tudo converge de repente para: “Oba! Vou fazer uma coisa nova”.
Sendo assim, há um olhar que assimila diferentes referências sem preconceitos para a música de norte a sul do país?
Sim. Para alguns. Nem todos buscaram essa visão. Por exemplo, o ídolo máximo de João Gilberto, alguém que transformou a música brasileira, é Orlando Silva. É incrível que seja Orlando Silva o ídolo do João. Por quê?
Porque Orlando trouxe uma entonação específica para o cantor brasileiro da época.
Mas João e Mário Reis limparam essa exacerbação da voz e trouxeram a possibilidade de todo mundo cantar. Parecia que todo mundo podia cantar depois de João Gilberto. Parecia. Bastava ser afinado e ter um bom registro de voz, que você cantava. A partir daí apareceram vozes extraordinárias na música. Milton Nascimento é um exemplo exagerado, com aquela voz belíssima. Paulinho da Viola vem com toda a contenção e intimidade que o Chico também tem. De repente, todo mundo passou a compor, buscando essa modernização. Um percurso natural em que todos foram estudar. Cada um no seu canto e com seus mestres. Eu estudei com Guerra-Peixe [compositor brasileiro de música erudita, arranjador e estudioso da música brasileira que viveu de 1914 a 1993]; o Edu Lobo e o Paulinho da Viola foram estudar com a Esther Scliar [compositora, musicóloga, maestrina, professora de música e pianista brasileira que viveu de 1926 a 1978]. Ou seja, toda essa sequência de fatos vai desembocar numa geração privilegiada.
Percebi com o João Gilberto que voz e violão se complementam e que eu podia fazer aquilo, mas sem imitar
Quando se fala da música popular brasileira, não se tem ideia de todo estudo por trás. Como foi seu processo de pesquisa?
Fernanda Gianetti foi minha professora de canto. Ela morava aqui no Jardim Botânico. Não só eu, como vários, busquei uma técnica para poder exercer meu ofício. João Gilberto também fez todo um trabalho de conscientização de voz, de colocação, impostação, tudo isso faz parte da música popular brasileira. Na hora que vem o Radamés Gnatalli, por exemplo, com o afeto que ele tinha pela música popular brasileira, ele começa a fazer arranjos maravilhosos. Ele cria a orquestração na música brasileira, altamente sofisticada para uma música dita “popular”.
Ao mesmo tempo que bebe de referências brasileiras, sua geração dialoga com a música internacional, como o jazz. Como se dá essa mistura?
Como não amar o Ray Charles, a Billie Holiday, entre outros. Você passa pela questão do rock com Little Richard, pelos cantores de blues... Como deixar de ouvir Duke Ellington? Minha música de travesseiro. O que é um Brasil puro, sem ser contaminado? Toda a cultura brasileira foi contaminada por portugueses, africanos, europeus em geral, japoneses, americanos. Isso tudo é inevitável. Não existe nada puro. Quando chegamos parecia que havia uma identidade: o violão, a canção, mas a modinha é portuguesa. O batuque não é daqui, é africano. Está tudo misturado. O que queria dizer aquela passeata das guitarras elétricas, em 1967? Quem estava lá? Nara, Elis, uma bobagem… Eu mesmo vim de uma mistura total: de Vicente Celestino a Jimi Hendrix.
Foto: Leila Fugii
Sua música e letras ganharam o rótulo de “marginal” e hoje são consideradas “cool” pela nova geração. A que se deve cada uma dessas perspectivas?
Acho que por minha própria culpa.
Quer dizer, não há culpa. Acho que por minha própria condição humana: sempre fui muito tímido. A timidez me colocou como um instrumentista. Atrás do violão, eu estava livre de qualquer ataque, análise, seja lá o que fosse. O violão me defendia. Depois, eu sempre compus, mas tudo muito timidamente. Nenhuma canção que fizesse me expor. Também sempre me defendi da questão do mercado, de aparecer a toda hora, do tal egocentrismo. Foi o Wally Salomão que me encheu o saco e falou para cantarmos nossas canções. Ele praticamente me forçou a externar essa coisa do canto. Aí eu comecei a perceber que amava cantar. Percebi com o João Gilberto que voz e violão se complementam e que eu podia fazer aquilo, mas sem imitar. Descobri algo pessoal na minha forma de cantar e tocar violão. Até que inventei uma voz. E eu gosto muito de vozes estranhas, como a do Louis Armstrong. Tudo que não for normal, eu gosto. É isso que dá identidade a uma pessoa. E eu comecei a construir minha identidade. Tanto que não tem ninguém imitando Jards Macalé por aí. Não tenho nenhum clone.
No começo da carreira como músico e compositor, como você conseguiu viver e sobreviver da sua arte?
Foi duro. Duríssimo. Minha mãe era pensionista da Marinha e tinha uma pensão razoável. Eu recorria a ela até que um dia me disse: “Meu filho, você vai ter que se virar”. Fui à luta. Dormia na casa de um, de outro, como muitos da minha geração. Sobrevivi. Compreendia que naquele momento, dentro daquelas circunstâncias históricas, era o que eu podia fazer. Tinha que viver daquela forma. Claro que dava um desespero, um desânimo. Eu estava no meu nicho, na minha resistência. Queira ou não queira, meus amigos me respeitavam como músico, artista e resistente. Espalhavam que eu era uma pessoa complicada, difícil. Mentira, eu fazia as coisas de forma mais simples no meu trabalho. Todos os discos que gravei foram dentro do prazo, com carinho, precisão e técnica. Tudo em cima do melhor e da qualidade. A questão não era quantidade, mas qualidade.
Quanto aos seus parceiros na construção da sua obra, como se davam essas escolhas?
Antes de qualquer coisa, meus parceiros surgiram como amigos. Conheci Torquato antes de Caetano, quando ele veio passar as férias no Rio. Num dia qualquer, Torquato me apresentou Caetano. E aí começa… Caetano conhecia Capinam da Bahia. Toda aquela turma. Foi quando conheci Capinam. Tudo isso foi mais ou menos entre 1964 e 1965. Capinam, poeta, não parava de escrever, e nós começamos a fazer algumas canções. Depois chegou o Wally Salomão, cheio de dentes e aquele bocão. Um rapaz tímido, mas que chegou arrepiando. Todos [os meus parceiros] sempre foram ligados à poesia. Sempre chegaram para mim com poemas. Apesar de várias letras chegarem para que eu musicasse, acabei musicando poesias. Por isso são estranhas, porque não são letras de música. Eu prefiro musicar. Sempre foi assim. Nunca consegui colocar uma letra em cima de uma música.
Minha relação com o tempo ocioso não me traz angústia. Muito pelo contrário. Se tenho que fazer algo, aí, sim, me dá angústia. Adoro o ócio.
Qual sua rotina de trabalho hoje?
Vagabundo. Eu só faço as coisas quando tenho que fazer. Se temos prazos, vamos trabalhar, e aí eu me defino. Agora, não toco mais obsessivamente em casa. Para um show, ensaio dois dias antes. Gosto de chegar na hora e inventar. Eu era mais careta e mais obsessivo com o estudo, piano, orquestração, regência. Hoje não faço nada disso.
E como é sua relação com o tempo?
Vejo televisão, vou à padaria, converso com o pessoal, com os taxistas, encontro amigos e pronto. Vou dormir de madrugada e acordo cedo. Minha relação com o tempo ocioso não me traz angústia. Muito pelo contrário. Se tenho que fazer algo, aí, sim, me dá angústia. Adoro o ócio. Acho que a vida seria muito melhor ociosamente falando do que ficar nessa ansiedade de produção. Isso é coisa do capital. O Elogio ao Ócio [referência à obra do filósofo Bertrand Russell] é uma maravilha.
Hoje, ao olhar para trás, para todo seu repertório, há algum trabalho pelo qual demonstra uma satisfação especial?
Cada um tem uma particularidade. Gosto de todos, porque cada um teve uma energia específica. Para cada um queria dizer uma coisa determinada. Mas gosto muito de dois: Aprender a Nadar (1974), que é de uma invenção, liberdade... Uma explosão e aventura. O outro é Contrastes (1977), que também tem o viés da invenção, mas ao mesmo tempo é muito formal. Cada um teve seu momento.
Chegar aos 75 anos com uma carreira consolidada é um privilégio. O que é imprescindível hoje?
Tenho quatro violões, dois pares de sapato e um par de chinelos e já está bom à beça. Uma televisão e um computador onde fico brincando sem entender nada. E alguns amigos queridos, claro.