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Uma questão de vida

Na natureza, é óbvia a concentração de seres vivos em torno da água. Já viram como as crianças são fascinadas pela água? Mais que fascínio, é identidade: seres vivos são feitos predominantemente de água! 70% de qualquer animal ou planta é água. Não água parada, mas entrando, saindo, dissolvendo, carregando ... todo o tempo. Aliás, muito parecido com o que ocorre no planeta: mais de dois terços de sua composição é de água, também em movimento, ora nas nuvens, ora nos rios e mares, depois integrando organismos que transferem-na através dos elos da cadeia alimentar até devolvê-la ao solo, ou transpirá-la para a atmosfera, ou ainda atravessando lacunas da terra no que chamamos lençol freático. É um eterno ir e vir, evaporando, lavando, arrastando.

Na verdade, os seres vivos são como porções empacotadas do ambiente, com o mesmo conteúdo em linhas gerais, recombinado, rearranjado mas sempre com dinâmicas semelhantes. Faz pensar naquela frase que um índio norte-americano disse certa feita, em uma carta ao presidente dos Estados Unidos: "Tudo o que fizerem à terra, farão aos filhos da terra". Aparentemente, à sua maneira, ele tinha uma boa noção disso que hoje, o homem tecnológico começa a vislumbrar.

No nosso ambiente interior, a água perambula carregando açúcar, sal, alimento, calor, álcool, monóxido de carbono, hormônios, oxigênio, nicotina, genes, conservantes, aromatizantes, anticorpos, vírus, vitaminas etc. Não temos o hábito de fazer conta da conveniência daquilo que despejamos nas nossas enxurradas celulares, a não ser depois que algum sinal de problema ("doença") acione nosso instinto de sobrevivência levando-nos a refletir e tomar cuidados.

E no ambiente como um todo, a coisa é parecida. O hábito de olhar atentamente seja o que for, antes da catástrofe iminente ainda passa distante.

Conhecemos bem o papel do guarda-chuva. Pois bem, a presença de vegetação funciona como ele, amortecendo o impacto da chuva sobre o solo. Assim, ela escorre devagar entre as folhas sem causar estrago. Além disso, suas raízes favorecem a penetração da água na terra, alimentando o lençol freático. Contudo, não hesitamos em remover até a última erva rasteira, mesmo das margens de um curso d'água onde a situação é a mais crítica. Construir numa encosta desmatada é tão adequado quanto armar uma barraca de camping nos trilhos do metrô.

A água corre para baixo. Óbvio. Não é por acaso que os leitos dos rios sempre ocupam as áreas mais baixas. Também é óbvio que em épocas de muita chuva, esses cursos d'água tornam-se mais largos, avançando para as várzeas. Mas nem por isso hesitamos em construir vias expressas nessas áreas.

Asfaltamos, ladrilhamos, cimentamos, impermeabilizamos toda e qualquer superfície. É óbvio que toda chuva que cair vai escorrer, (sem penetrar no solo, o que seria predominante, normalmente) arrastando terra, lixo, carros, formando uma avalanche que tudo carrega, obviamente, para as baixadas.

É claro que sempre poderemos gastar milhões em estruturas para remediar a estupidez.

Cada papel de bala lançado numa rua entre a Av. Paulista e a Av. do Estado vai parar no Rio Tietê. As pontas de cigarro jogadas no Jardim Paulista vão parar no Pinheiros. As enxurradas da Dr. Arnaldo vão parar na Av Pacaembu, com tudo o que tiverem carregado. Para despoluir o Tietê, ou qualquer corpo d'água, é preciso controlar tudo o que vier pelas encostas de seus dois lados.

A água no rio é uma das etapas do grande ciclo. Ela atravessará turbinas de hidroelétricas, plantações, chegará ao mar, voltará às nuvens e assim por diante, indefinidamente. Mas nós estamos aqui, e precisamos dessa água para EXISTIR, e numa atitude suicida, estamos impedindo que ela se aloje no nosso subsolo e retorne a nós, pelos mananciais, estamos entupindo nossos reservatórios com terra e lixo, e envenenando o pouco que ainda resta.

Já importamos água da bacia do Rio Piracicaba. Daqui a poucas décadas toda a água de nossa cidade terá que ser trazida de regiões distantes. E como ficarão aquelas regiões?

Não há situações isoladas. Nem soluções isoladas. Já é hora de aprender a olhar ao redor.

Maria Alice Oieno de Oliveira é bióloga e animadora cultural do Sesc Interlagos