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Entrevista
Modesto Carvalhosa

É só impressão ou parece mesmo que a Justiça brasileira, de repente, virou uma bagunça?
A crise institucional no país afeta todos os poderes. O único poder que estava de uma certa maneira imune era o Judiciário porque sendo um poder muito fechado, autodefendia-se corporativamente e não se abria para a sociedade. Acontece que a crise institucional leva a esta situação de revelação da crise do Poder Judiciário, frente aos demais poderes e à própria sociedade. Um dos grandes veículos dessa discussão sobre a crise profunda do Judiciário é o Sepúlveda Pertence que, como presidente da Suprema Corte, tem discutido com a sociedade as questões relativas ao Poder Judiciário, propondo soluções que levam a sociedade a considerar o Judiciário como um poder e não como um castelo fechado onde ninguém pode penetrar.

Quais as razões que fizeram a Justiça chegar a esse ponto?
A razão fundamental, como em todas as crises do Estado moderno, sobretudo em países subdesenvolvidos, é o excesso de população. O Poder Judiciário foi concebido para o atendimento de uma burguesia, seja latifundiária ou urbana, nos seus pequenos conflitos, que eram em número muito menor há cinquenta anos. Com a explosão da população exponencial e a manutenção dos rituais que eram utilizados para um pequeno número de usuários do Poder Judiciário, a crise se estabeleceu de uma maneira brutal. Não houve a adaptação do Poder Judiciário ao receber isso. Os rituais judiciários ainda são do tempo manuelino, do século 16, 17, no máximo do 18. Então, ainda o processo tem milhares de instâncias. Há o processo oral no qual o juiz fica em audiência durante três horas enquanto a população do Estado de São Paulo é de 12 milhões de habitantes e a demanda é enorme. Como todo sistema burro e pouco desenvolvido, eles quiseram resolver isso na base do aumento de Juízes. O aumento de juízes é uma solução irracional porque o necessário é melhorar o processo civil, o processo penal. Depois, não há juízes porque o rigor dos exames do Judiciário é de tal ordem que elimina praticamente 99% dos candidatos. Em vez de se fazer o contrário, ou seja, criar uma escola de magistratura em que os juízes pudessem ficar internos, durante dois anos, aprendendo como devem agir diante de uma realidade social bem diferente. O Poder Judiciário é atrasado, reacionário, incapaz de se adaptar a uma realidade social absolutamente diversa daquela que havia no tempo dos pais dos juízes, por exemplo.

Em linhas gerais, nós temos uma Justiça brasileira do tempo do onça e um país moderno?
Um país de demandas, de crise permanente. Por exemplo, tinha-se o Poder Judiciário ligado a uma sociedade hegemônica e harmônica ao mesmo tempo. No Império e na República Velha a sociedade era harmônica com uma burguesia rural e, em certas áreas industrial, que exigia serviços do Judiciário. Hoje nós temos um país que não é mais harmônico; um país dos ricos que ganham mais de um salário mínimo e o país dos miseráveis que não ganham nada. Então, há conflitos brutais que escapam da administração do Poder Judiciário e conflitos enormes de massa que não existiam. Há questões que abrangem 100 mil pessoas, 500 mil pessoas. Coisas que não podem mais ser previstas em ações individuais.

Como se chegou a tal estado de esgotamento?
O Estado não se adaptou à demanda de massa da população em serviços públicos, transporte, saúde, educação. Não se adaptou também em matéria de Poder Judiciário. Toda a organização, toda a estrutura é feita para uma sociedade harmônica e pequena. O Estado não tem mais noção de que nós estamos diante de uma sociedade completamente diferente. Na prestação de serviços do Poder Executivo e do Poder Judiciário para uma massa enorme e desconexa, nós temos a disfunção das atividades de saúde, educação, transporte, previdência e também do Judiciário, que entra no alinhamento da discussão social completa. Não há nenhuma diferença entre a disfunção do Poder Judiciário e a disfunção geral do país em todos os demais serviços demandados pela sociedade.

Nós estamos falando de uma questão de infra-estrutura. E em termos de arcabouço jurídico?
Pessimamente servidos. O Código de Processo Civil é um absurdo, admitindo uma série de recursos e processos que não são normativos. O juiz, ao decidir uma questão, tem efeito normativo para alcançar todas as pessoas na mesma condição. O Supremo Tribunal, ao determinar que certo funcionário público tem direito a 14% de aumento, deve obter com essa decisão efeito normativo para que não existam 400 mil ações iguais. Se a Justiça do Trabalho julga alguma greve, a sentença pesa para todas as pessoas da classe daquele sindicato, estejam ou não sindicalizadas. Isso é uma decisão normativa. Como é que o Poder Judiciário no Brasil, fora a Justiça do Trabalho, ainda tem decisões que não sejam normativas? Outro erro fundamental é o do Processo Civil. O último Código do Processo Civil em vigor foi concebido por Alfredo Buzaid, dentro da teoria germânica do Processo Civil do século 19. Quer dizer, o Código do Processo Civil brasileiro tem de ser modernizado de maneira absoluta, radical, para que se possa prestar serviço para a população que demanda justiça. Para isso os juízes não têm alcance, cultura. A cultura do juiz é tradicional, ritual, formal. Eles não percebem que a única maneira é uma revolução dos códigos. O código de execuções penais no Brasil é absolutamente retrógrado. Ele leva a uma crise carcerária brutal e o Brasil tem milhares de pessoas encarceradas de maneira desumana, sem nenhuma tentativa de recuperação, o que cria monstros absolutos que só fazem, diariamente, revoltas nas prisões. O Código Penal é um absurdo porque admite recursos formais que levam a não-condenação pela prescrição e pelos recursos infundáveis do réu. O Código Civil brasileiro está cada vez mais, como é a tendência universal, suplantado pelo direito administrativo. Isso é uma coisa positiva, mas a crise é essa porque os códigos estão totalmente defasados, a cultura do Judiciário, com exceção de alguns juízes modernos, está também ultrapassada, sendo tradicional e formalista, levando ao desperdício absoluto. O Poder Judiciário, hoje, é constituído de três partidos políticos: o partido da associação dos magistrados brasileiros, que é o mais importante, constituído pelos juízes tradicionalistas e que comanda oficialmente o Poder Judiciário; o partido da esquerda dos juízes democráticos que desejam a reforma substancial, a Justiça para a população e têm propostas muito interessantes e revolucionárias, porém dentro de um plano institucional; o partido anarquista do judiciário, que é formado pelos juízes alternativos que julgam independentemente da lei, a partir de convicções pessoais e conforme a necessidade de justiça das classes sociais, levando em conta injustiças e opressões. São três partidos fundamentais dentro do Poder Judiciário, que está muito organizado em ideologias. Isso é muito importante porque é um fator de vitalidade. Tudo isso, hoje em dia, liderado pelo grande jurista Sepúlveda Pertence, que tem dado exemplos brutais de que o Poder Judiciário tem de estar a serviço da população, é questionável e admite ser discutido pela sociedade.

Nós temos um diagnóstico que evidencia uma infra-estrutura arcaica e um arcabouço jurídico arcaico. É difícil observar o Judiciário abrindo possibilidades para que se possa discutir reformulações. O que se vê mais é a questão coorporativa...
A questão coorporativa também é um fenômeno da sociedade moderna, sobretudo em países subdesenvolvidos como o Brasil. O Estado brasileiro não tem capacidade de prestação de serviço, incluindo o Judiciário. Os agentes públicos que estão envolvidos profissionalmente nesse serviço que não pode ser prestado, pela estrutura absolutamente inadaptável disso, voltam-se para a atividade de meio já que não podem praticar a atividade de fim. Então, por exemplo, em São Paulo existem 500 mil professores secundários que só brigam por aumento de salário e pelas vantagens do Estatuto de professorado, sem nenhum compromisso com a atividade didática. Da mesma forma, os juízes não podem prestar serviços por causa da estrutura na qual eles estão envolvidos. O que acontece é um fenômeno geral, segundo o qual, impossibilitado de prestar serviço, o Estado faz com que seus agentes se voltem para seus próprios interesses. Isso ocorre em todas as faixas do servidor público brasileiro, inclusive a do Poder Judiciário.

O senhor não acha que é perigoso o descompasso entre legislação e demanda social, por exemplo, no caso da reforma agrária urbana? Será que a Justiça não acaba atrapalhando a própria democracia?
Acho, sem dúvida nenhuma, que a Justiça, por não servir, leva as pessoas a soluções pessoais ou de grupos, de autojustiça. O movimento dos sem-terra é típico. Não interessa a lei, não interessa nada, cria-se o fato consumado e depois o governo tem de se haver com o fato consumado. A invasão, do ponto de vista jurídico, é um absurdo. O que acontece é que o Poder Judiciário, não podendo resolver a questão, leva à criação de um Estado dentro do Estado, ou seja, o Estado dos contralei. Hoje há o movimento dos sem-terra, dos sem-teto, a reação da UDR e assim vão se formando legiões, exércitos particulares, movimentos que não entram mais dentro da adequação das leis do Estado, da Constituição etc. Isso é fruto da incapacidade de visão dos poderes quanto à inadequação dos serviços prestados pelo Judiciário.

Qual é o tipo de resolução a ser tomada?
Sepúlveda Pertence, por exemplo, que é um homem extraordinário, poderia liderar um movimento efetivo de rearranjo total do Poder Judiciário e dos códigos. Essa questão do vinculante tem de ser considerada não para todas as causas, mas para questões que incluam o Estado, o que seria fundamental. Existem concepções revolucionárias ou radicais em relação à atuação do Judiciário, que estão aí e devem ser executadas.

Até que ponto o coorporativismo dos advogados prejudica a melhoria desse serviço da Justiça?
Eu acho que os advogados não são coorporativos no plano de defesa de seus próprios interesses, embora o estatuto dos advogados seja bastante coorporativo. Porém, em assuntos de modificação dos rituais judiciários, são arqui-reacionários. Acham que a modificação tira a estabilidade deles. No fundo, o advogado vive do processo e do recurso de impedir ou bloquear que seu cliente seja condenado. Realmente, o que acontece é que o advogado não tem uma significação daquilo que ele faz. O que é um absurdo porque se houvesse uma reciclagem radical do Judiciário no Brasil, os advogados seriam resignificados.

Em momentos de crise sempre surge a opção da necessidade de controle externo do Judiciário. Qual a sua idéia a respeito disso?
O controle externo do Poder Judiciário, uma concepção que veio da ordem dos advogados, é uma verdadeira palhaçada porque cria-se um conselho da magistratura como órgão, que vai ocupar um prédio inteiro em Brasília, com 500 funcionários. Isso é uma coisa absurda pois o controle externo do Judiciário é o controle sobre a conduta dos juízes. Conduta profissional. Se o juiz é amigo do fulano e julga a questão, se ele tem uma conduta imoral, antiética, isso é o que interessa no controle externo porque é a forma do advogado dizer que não quer ser julgado por determinado juiz, independentemente de qualquer coisa. É a capacidade de externamente a sociedade verificar a idoneidade do Poder Judiciário. Internamente o Poder Judiciário falhou no controle da conduta moral-funcional do juiz em termos do artigo 37 da Constituição, que verifica se ele age com impessoalidade, moralidade, publicidade e legalidade.

O senhor tocou na questão da publicidade. Por conta das milhares de liminares que foram concedidas pela Vale do Rio Doce, acusa-se um dos juízes de primeira instância de ter concedido as liminares em proveito próprio, conseguindo um tipo de publicidade gratuita. Você acredita nisso?
Não. O que demonstra as centenas de liminares ocorridas é um fenômeno saúdavel da sociedade, cuja cidadania se mobiliza para um assunto que é de interesse nacional, e a capacidade dos juízes intervir nisso positivamente, independentemente de uma postura quanto à questão da privatização. Sobre o exercício da cidadania enfocado no Brasil inteiro, não há coisa mais positiva do que isso.

Como fica o sistema jurídico frente às questões biológicas, como a dos clones, por exemplo, que são novidades em termos de sociedade e extremamente complicadas?
Sim, muito complicadas. A Internet, por exemplo, trouxe para o Direito questões absolutamente cósmicas. Os contratos que são feitos sem serem por escrito, os contratos de uso de imagens, de comunicação, coisas que o Direito nunca abrangeu. A clonagem também é uma questão séria. Eu tenho a impressão de que certos problemas dessa ordem, que entram em questões éticas fundamentais, deveriam ser objetos de tratados internacionais.

No caso da Justiça brasileira, tornou-se usual o conceito de que a Justiça é rápida para julgar o ladrão de galinha e lenta para colocar na cadeia o administrador público. Você concorda com isso?
Eu concordo inteiramente. Na medida em que o réu é o pobre, ele está previamente condenado. Os advogados não têm condições de dar uma assistência digna a eles porque sempre há dificuldade para o Judiciário funcionar, por falta de recursos, verbas etc. A Justiça é muito dura com os pobres, tanto que as estatísticas mostram que as cadeias estão lotadas de negros, paupérrimos e coitados. Enquanto que os ricos têm advogados, portanto são capazes de utilizar todo o arcabouço processual penal e civil, na defesa de seus interesses, e jamais estão perdidos. A questão da condenação do PC foi dificílima, extremamente rara, acabou sendo uma glória nacional. Eu acho que a Justiça brasileira é perversa em relação a essa questão de classe e é um reflexo da nossa injustiça, incapaz de prover justiça para as classes mais altas.

O senhor acha que essa distorção continua a existir enquanto permanecer a distorção da sociedade?
Não. Por exemplo, o partido judiciário dos juízes democráticos tem uma perfeita concepção dessas injustiças, enquanto os juízes alternativos têm uma ação de guerrilha contra o Poder Judiciário. Quer dizer, um é a luta armada contra a injustiça e o outra é a luta política, que visa acabar com a utilização do Poder Judiciário para combater a marginalidade miúda e acolher a impunidade da classe burguesa.

Dentro do pensamento do Direito brasileiro, encontram-se várias pessoas que legitimizam o que elas chamam de "a Justiça justa e a Justiça legal", acreditando, dentro de uma visão humanista, que o justo vai, muitas vezes, contrariar a lei, mas que é necessário ser justo. Como o senhor vê isso?
Essa é uma visão radical dos juízes alternativos e de certa maneira o partido dos juízes democráticos a utilizam no sentido da luta pela reestruturação, para que haja uma Justiça justa e não apenas legal. Eu acho que no caso a discussão de uma Justiça justa pode levar a uma extrema injustiça. Você não pode ter uma Justiça que não seja fundada na lei. Essa Justiça justa leva a uma concepção robesperiana da sociedade, uma visão jacobina em seu momento mais crítico de levar ao julgamento emocional, ideológico das pessoas. A Justiça justa é a suprema injustiça. A Justiça fora-da-lei leva à iniquidade. É facílimo julgar fora-da-lei. Se eu fosse juiz, eu julgaria conforme a lei em um princípio de justiça. O juiz precisa se conscientizar de que a finalidade do Direito é a justiça e não o acompanhamento ritual da lei. É perfeitamente possível julgar as pessoas justamente e dentro da lei.

Diante desse quadro, o senhor é otimista ou pessimista frente a uma possível solução?
Eu acho que o Brasil é um país, como Celso Furtado falou, subdesenvolvido e deve conscientizar-se dessa condição para que ele possa tomar um passo em direção à solução de seus problemas que estão cada vez mais patéticos. O Brasil é uma coletânea de horrores. Os problemas sociais são totais. A pobreza, a miséria e o tráfico de drogas dominam as cidades. É aquilo que em termos estratégicos se chama de estado insurrecional, ou seja, a desordem é absoluta. Na Praça Ramos de Azevedo, onde há o monumento a Rui Barbosa, as pessoas defecam na grama de forma que aquilo se transformou em um depositário a céu aberto. As pessoas que ali defecam são os milhões de desempregados da cidade. Quer dizer, a deterioração do Brasil como país é uma coisa galopante. O país se afastou inteiramente do mundo civilizado das sociedades harmônicas, onde todas as classes sociais são mais ou menos significativas.