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Asfalto, diversidade, atrações culturais e gente... Muita gente. São todas características que alimentam a paixão do psicanalista e escritor italiano Contardo Calligaris, 69 anos, pelo Brasil e, em especial, por São Paulo. Cidade cuja verve cosmopolita transborda no consultório, na coluna que assina no jornal Folha de S.Paulo e no roteiro da série de televisão Psi, exibida pelo canal a cabo HBO. Ex-aluno dos grandes filósofos Roland Barthes e Michel Foucault, quando morou na França e acompanhou seminários do psicanalista Jacques Lacan (grande influência em sua formação), Calligaris chegou ao Brasil em 1989. Apesar de idas e vindas entre 1994 e 2004, quando lecionou nos Estados Unidos, foi aqui que decidiu se estabelecer. Nesta conversa com a Revista E, o autor de mais de dez livros, entre esses Hello, Brazil! E Outros Ensaios (Três Estrelas), relançado no final de 2017, fala sobre os desafios do feminismo, a escuta psicanalítica e a finitude que nos espreita.

 

 

 


Hello, Brasil

O momento em que decidi deixar Paris e me instalar, pela primeira vez, no Brasil foi em 1989. Alguns dizem que foi porque me apaixonei por uma gaúcha, mas ela esperava o contrário: ir para Paris comigo. Naquela época, quase toda a minha formação era em língua francesa. A sensação que eu tinha era de que a cultura francesa nos anos 1970 foi algo extraordinário, como fogos de artifício, o que a condenaria [anos depois] a um ciclo de repetição chata. Lacan tinha morrido, Foucault tinha morrido, então, eu achei que a vida cultural seria mais interessante no Brasil e nada me desmotivou. Acabo de relançar Hello, Brasil!, que publiquei assim que cheguei. Nesse livro, falo dessa minha chegada e, numa nova introdução, conto como morei em Nova York de 1994 a 2004. Até que, num dado momento, tive que decidir se ficava por lá ou se voltava para São Paulo. Voltei para São Paulo. Não tenho desculpas, assumo.

Feminismo em foco

A coisa que mais me interessa neste momento é a segunda onda do feminismo, fato cultural e político mais significativo do começo deste século. Mas o debate não está como poderia estar. As questões que estão sendo debatidas ainda são muito marginais. A grande questão dessa segunda onda do feminismo, se é que podemos chamar de segunda, terceira ou quarta onda, é que a gente não consegue falar do mais importante: somos uma civilização construída há três mil anos em cima do ódio pela mulher. Os textos inaugurais da nossa cultura, tanto do lado judaico-cristão quanto do lado grego, colocam a mulher como a representante do mal. Isso está no coração da nossa cultura. A mulher é um lugar onde todos – homens e mulheres – projetamos o mal que nos persegue. Então, a misoginia não é um acidente. Esse é um problema maior que a posição ocupada pela mulher na sociedade. Todos esses problemas são consequência desse ódio que se perpetua. Uma mudança pode vir a acontecer daqui para a frente se o feminismo colocar o dedo em cima disso.

Ouvir e narrar

A escuta psicanalítica é, sobretudo, uma escuta de histórias “reescritas” pelo próprio paciente. Dá para dizer isso porque, cada vez que você conta sua história, algo muda. Seu próprio entendimento do que você achava que era central e não é mais, por exemplo. Ao reescrever uma história, tem-se o poder de mudar a vida das pessoas. Atendo clinicamente desde 1975, em lugares como Paris, Nova York, Porto Alegre e São Paulo [onde clinica atualmente]. É muita gente, muita história, mas não se trata só de escutar. Num envolvimento clínico, você passa a fazer parte da história da pessoa que está narrando. Inclusive, passa a fazer parte emocionalmente daquela história que também passa a fazer parte de você. Elas se acrescentam à bagagem da ficção que você leu e que viveu. Tanto que a primeira ambição que tive na vida, aos nove anos, era ser romancista, e vim realizá-la muito mais tarde, quando comecei a escrever romances no Brasil.

Indústria da depressão

A partir dos anos 1990, todo mundo se diz deprimido porque existem os antidepressivos. O hiperdiagnóstico de depressão é um dos fenômenos mais óbvios da psiquiatria contemporânea. A indústria farmacêutica tem um poder extraordinário de encontrar alguma coisa que tenha uma eficácia mesmo que muito relativa. As pessoas acham que os antidepressivos curam a depressão, mas, no melhor dos casos, apenas 37% dos pacientes depressivos respondem a eles. O diagnóstico de depressão deveria ser refinado. Esse é um diagnóstico complexo, porque a depressão não tem nada a ver com a tristeza conjuntural de quem quer que seja num momento específico da vida.

Pelo retrovisor

Fui diagnosticado com um câncer de pulmão aos 50 e poucos anos, o que me permitiu a experiência de ouvir alguém dizendo que eu teria um ano, ou um ano e meio, de vida, no máximo. Me operaram e descobriram que na verdade não era câncer: uma célula-tronco havia se desenvolvido no lugar errado. Isso para mim foi muito bom por várias razões. Primeiro por saber que não estava com câncer; segundo, e mais importante, porque me obrigou a encarar o fato de que viveria muito pouco a partir daquela data e minha reação foi perceber como eu era privilegiado. Eu tinha conhecido e amado tantas pessoas diferentes; tive uma variedade de experiências de vida; tinha viajado pelo mundo. Então, a única resposta à finitude é poder, ao menos, olhar para trás e dizer que tudo que você viveu valeu a pena.

 

 

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