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Movimento Cinco Estrelas

Enrica Sabatini e Davide Casaleggio

O ativismo digital que alcançou o mundo a partir da Primavera Árabe, em 2010, seguido um ano depois pelo Occupy Wall Street, vai colhendo seus frutos. Trata-se do resultado de reações populares num contexto de participação em novas plataformas digitais, como o Movimento Cinco Estrelas (M5S) na Itália. Fundado em outubro de 2009, tendo como embrião um blog do comediante italiano Beppe Grillo, o movimento vem acumulando vitórias nas eleições italianas partindo de ações online e offline. Exemplo de net-ativismo, o M5S tornou-se o terceiro maior “partido” da Itália, apesar de não se reconhecer ideologicamente como de esquerda ou de direita. Apoiado em cinco pontos – água, meio ambiente, transporte, conectividade e desenvolvimento –, o movimento utiliza a Plataforma Rousseau para a participação dos inscritos em debates e na elaboração de propostas de leis. A plataforma também segue o princípio da participação digital. Falam sobre esse novo contexto da política e do exercício da cidadania Enrica Sabatini, coordenadora da Plataforma Rousseau, que hospeda as ações e resoluções do Movimento Cinco Estrelas, e Davide Casaleggio, um dos líderes intelectuais do M5S, em passagem pelo Brasil para participar do Seminário Internacional Net-ativismo: Plataformas e Arquiteturas de Interação e Cidadania Digital, realizado em dezembro no Centro de Pesquisa e Formação do Sesc.

 

Foto: Leila Fugii


Como nasceu a Plataforma Rousseau e qual a essência dela?

Davide Casaleggio Em 2016, decidimos juntar votos online e o blog em uma única plataforma, que tomou o nome de Jean Jacques Rousseau [filósofo francês do Iluminismo e um dos principais influenciadores da formação do pensamento político e educacional moderno]. Porque Rousseau dizia que a melhor forma de governar é conhecer a opinião das pessoas. Esse é o princípio inspirador da plataforma. Outro grande princípio é o da participação direta do cidadão na vida política. Ou seja, a plataforma nasceu para promover a participação das pessoas e fazer com que elas também possam escolher os candidatos que o movimento vai eleger. Elas podem compartilhar e participar da vida e das propostas de lei desses candidatos acompanhando-os e ajudando-os a elaborar novas leis na plataforma. Atualmente temos 1500 eleitos [do M5S] em várias partes da Itália. Eles foram escolhidos pela Plataforma Rousseau e levam as propostas de lei que os próprios cidadãos ajudaram a elaborar.

E como funciona a plataforma?

Enrica Sabatini Temos algumas seções ativas e outras que virão em breve. Tais como a Lex Parlamento, na qual é possível propor modificações em propostas apresentadas e intervir. Pela seção Sharing dá para compartilhar leis propostas pelos vereadores que podem ser interessantes para vereadores de outras cidades; algo como uma troca de experiência. Já a seção Learning é um curso online que capacita os inscritos e prepara os candidatos no âmbito parlamentar, regional e europeu. Na Call to Action, os inscritos podem pedir ajuda em determinada “batalha”, como limpar um parque, fazer um protesto contra uma determinada lei etc. Na Scudo Della Rete, um grupo de advogados coloca-se à disposição para ajudar em questões legais do movimento. A Fund Raising funciona como um crowdfunding, ou seja, levanta recursos, uma vez que recusamos o financiamento que, por direito, os partidos políticos ganham do governo italiano. Essa, aliás, foi a primeira coisa que fizemos: recusar esse dinheiro e nos manter somente por meio de doações. Por último, a função Activism, que estamos desenvolvendo, e pela qual qualquer indivíduo pode fazer download de programas do governo, brochuras, entre outros documentos, para disseminá-los em seu território.

Como tem sido essa entrada espontânea da doação das pessoas físicas? Tem sido em bom volume? Como as pessoas reagem?

D.C. Todos os gastos são apresentados online. Os doadores da plataforma têm uma contribuição média entre 30 e 40 euros. Mesmo que baixa, a contribuição é muito espalhada. Ou seja, não temos grandes financiadores, porque se tivéssemos financiadores com grande volume de dinheiro, nos tornaríamos menos autônomos.

E quem pode fazer parte da plataforma? Sindicatos podem fazer parte ou apenas pessoas físicas?

D.C. São grupos de indivíduos que se inscrevem na plataforma e estão ligados ao Movimento Cinco Estrelas. O que não pode é um sindicato entrar inteiro. Mas pessoas de um sindicato podem, sim, se inscrever, não como pessoa jurídica, mas como pessoa física.

Como nascem as propostas que vão para a plataforma? Quais os temas?

D.C. Por exemplo, no programa de governo que estamos terminando de criar na plataforma para as próximas eleições, vamos consultar alguns grupos sobre questões de viabilidade, mobilidade, energia, que são grandes questões ligadas às necessidades da Itália. Com base na consulta de especialistas, criam-se algumas propostas que são submetidas à votação na plataforma, na qual as pessoas irão debater. A partir daí, montaremos uma proposta de governo para apresentar nas próximas eleições na Itália. São 150 mil pessoas que participam dessa plataforma, em toda a Itália.

Como é constituído esse grupo que conversa com especialistas de diversas áreas e organiza propostas?

D.C. Para essa proposta de governo temos alguns parlamentares que já estavam trabalhando com questões específicas, como saúde. Pessoas que já tinham experiência na vida parlamentar e que elaboraram um plano para submeter à plataforma.
E.S. Na plataforma existe também a modalidade em que os inscritos podem propor um argumento, uma lei. Esse plano é recebido e deve estar dentro dos pilares do movimento Cinco Estrelas – água pública, transporte sem impacto ambiental, meio ambiente e lixo zero, energia limpa, desenvolvimento e conectividade de graça para todos. Esses são os valores que inspiram o movimento. Para os membros da plataforma há um aplicativo pelo qual é possível fazer isso, em âmbito local ou nacional. 

 

"O universo online é, obviamente, um universo de vozes. Mas, no interior da plataforma, a participação é construtiva, positiva, não de ódio"

Davide Casaleggio

Quais são os temas mais interessantes levantados pelos inscritos?

E.S. Um deles é o corte de gasto na política. Há várias propostas de lei que abordam a necessidade de corte de custos, como a redução do salário dos políticos e a redução da mordomia. Outro tema é a transparência: a possibilidade de o cidadão acompanhar a evolução dos projetos. Ou seja, fim dos privilégios da classe política, fim do desperdício do dinheiro público, transparência, acessibilidade às propostas de lei e aos atos do governo e democracia direta.

Qual o perfil dos eleitores que o M5S tem obtido por meio dessa plataforma?
Se é online, estaríamos falando, apenas, de uma geração mais jovem?

D.C. No começo era de fato um público mais jovem. Mas, com o passar dos anos, isso mudou e hoje conseguimos dialogar com toda a sociedade. Há uma evolução transversal que pega toda a sociedade.

O Movimento Cinco Estrelas é visto como um partido. Que reações esse tipo de afirmação gera?

D.C. Temos uma concepção, uma vontade de compartilhar boas práticas, boas políticas no território, seja no âmbito local, seja no nacional, e de levá-las ao exterior também. Então, não temos uma colocação ideológica.

Hoje vemos uma falência dos partidos e dos sindicatos, organizações da sociedade que vêm do século 19. Como vocês observam isso?

D.C. A mudança está na forma. As instituições partidárias foram grandes mediadoras para a população porque propunham interpretações com as quais as pessoas se identificavam. Hoje temos uma tecnologia que permite que as próprias pessoas construam juntas, por meio dessas plataformas, as visões, sem intermediários. Então, isso é um fato novo. Ou essas instituições se adaptam a esse formato ou vão desaparecer.

 

"Água pública; transporte sem impacto ambiental; meio ambiente e lixo zero; energia limpa; desenvolvimento e conectividade de graça para todos: Estes são os valores que inspiram o movimento"

Enrica Sabatini

 

Na Itália, as manifestações online têm uma tônica de ódio?

D.C. O universo online é, obviamente, um espaço de múltiplas vozes. Mas, no interior da plataforma, a participação é construtiva, positiva, não de ódio. Claro que depende do tipo de canal oferecido às pessoas, pois ele vai favorecer determinadas práticas e relações.

Qual a posição do Cinco Estrelas diante de um discurso nacionalista e xenófobo, de economia fechada, a exemplo do que temos visto no governo de Donald Trump? O M5S vai proteger o emprego dos italianos?

D.C. A melhor forma para proteger o trabalho dos italianos é acompanhar as mudanças e inovações tecnológicas. Caso da Adidas, que produz sapatos na China, mas voltou a fabricá-los também na Alemanha [a última fábrica na Alemanha havia fechado na década de 1990] por um processo de produção de automação e redução de custos. Esse é um exemplo de como é possível defender os interesses nacionais, mas indo na direção das transformações reais pelas quais o mercado está passando. O mercado da época industrial dos trabalhadores não volta mais. A própria tecnologia mudou, assim como a ideia de trabalho. Obviamente temos outra batalha que são os tratados internacionais que vão contra os interesses nacionais. Por exemplo, na Itália o frango não pode ser tratado com cloro. Já nos Estados Unidos, sim. E, nos últimos acordos internacionais, a Itália pode importar esse frango tratado com cloro, e isso precisa ser discutido e mudado.

Qual é a reação ao movimento por parte das forças estabelecidas entre outros partidos, mas, principalmente, entre as grandes corporações econômicas?

D.C. As grandes corporações – e os grandes interesses – da Itália nos últimos anos estavam bastante distraídas para enfrentar os próprios problemas. Não se deram conta do que estava acontecendo. Uma vez que temos o projeto de chegar ao governo, desde o ano passado, estamos travando um diálogo com todos os atores da economia italiana para apresentar um programa. Então, estamos numa fase de contato.

 

"Na plataforma existe também a modalidade em que
os inscritos podem propor um argumento, uma lei"

Enrica Sabatini

 

E como a grande mídia tem tratado esse movimento?

D.C. A primeira reação foi uma tentativa de ignorá-lo. Nenhum jornal havia falado sobre nossa iniciativa. Quando fizemos o primeiro encontro nacional e juntamos num final de semana 350 mil assinaturas – até um dia antes, o único canal que tínhamos utilizado era a mídia digital –, não fomos citados por nenhum grande jornal. No dia seguinte, saímos na primeira página de toda a imprensa italiana porque não havia mais como ignorar. A relação com a imprensa foi evoluindo da seguinte forma: primeiro ignoraram, depois riram, combateram e, no final, vencemos. Ela passou por essas quatro etapas. Atualmente, a imprensa voltou à fase do combate, de difamar de todas as formas qualquer atividade que fazemos. A imprensa tem tratado o movimento, em muitos casos, com uma onda de fake news.

Há questões polêmicas que não são contempladas na plataforma?

E.S. Sobre questões polêmicas, abre-se o debate para a própria plataforma e, muitas vezes, podem chegar à votação, se houver necessidade. Isso faz com que a plataforma discuta e debata. Por exemplo, a questão do aborto: na Itália já existe uma lei que o regulamenta. Ou seja, lá o aborto não é um tema polêmico como é no Brasil. Talvez um tema análogo poderia ser a questão da imigração. Há um movimento muito forte na Itália contra a imigração e outras pessoas que são contrárias e pensam que temos que receber todos que chegam, porque temos que ajudar o mundo inteiro. Então, esse é um tema muito polêmico na Itália hoje.

Qual é o tratamento dado ao tema da imigração na plataforma?

D.C. Fizemos um estudo detalhado sobre a imigração e propomos um cronograma de soluções que daria resultado em cinco anos. A questão é que atualmente a não regulamentação e a não organização da imigração provocam mortes. Os imigrantes saem do norte da África em pequenos barcos e atravessam o Mediterrâneo. Muitos morrem no caminho. Para o M5S, as pessoas que queiram migrar para a Europa devem fazer esse caminho de forma segura para que cheguem a salvo e recebam os cuidados necessários. Ou seja, precisamos de um plano para que a imigração corra num fluxo regulamentado. O segundo plano é agilizar o tempo de resposta para que o imigrante possa residir na Itália – atualmente, ele entra com o um pedido de asilo que pode levar até dois anos para ficar pronto, porque há muita burocracia e poucos centros preparados para essa demanda. Sou filho de imigrante, minha mãe veio da Inglaterra, e vejo que a imigração pode ser positiva, pode trazer um valor à comunidade italiana.

 

"A relação com a imprensa foi evoluindo da seguinte forma: primeiro ignoraram,
depois riram, combateram e, no final, vencemos" 

Davide Casaleggio

 

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