Sesc SP

Matérias da edição

Postado em

Eu, Público; eu, artista com deficiência

Hoje Alimentamos sonhos de que cada pessoa tem o seu direito de experimentar as artes em apreciações e fazeres diversos como um cidadão cultural. Convido então você a mergulhar no meu sonho realizado de um público, de um artista com deficiência ou como você queira dialogar comigo.

O mais fácil é me entender como qualquer ser humano, que é um ser criador que deve ter sua autonomia e sua singularidade respeitados no contato criativo com as artes. Escrevo para acessar o seu coração criativo. Da minha janela sinto o ar e ouço os ruídos do dia que finaliza. Sinto que o sol se despede. Guardo sempre uma frase que me disseram na infância: “Quando o sol se põe, ele entra na gente”. É com essa sensação de sol que entra que posso agora compartilhar minha história, pois dentro de mim há luminosidades trazidas por uma obra artística. Escrevo ainda na emoção, como o vento que não cessa de entrar pela janela e passear pelo meu apartamento.

Antes que eu esqueça, devo apenas dizer que tenho 55 anos e que minha história ganha um marco nesta idade. Foi neste ano que entrei pela primeira vez num teatro. Era início da noite e eu podia sentir as estrelas que clareavam o céu, pois as pessoas passavam felizes por mim. O céu aberto é como uma obra de arte aberta a todos, deixando-nos felizes, pois somos vinculados às luzes das estrelas. 

Cheguei ao teatro no centro velho da cidade – lugar muito conhecido pelos meus pés que ali passam para trabalhar, mas que nunca pisaram naqueles mármores do velho teatro. Segui as orientações de acesso, sentindo os relevos nos pés que me guiavam à bilheteria.
O balcão adaptado me possibilitava um contato direto ao bilheteiro, que me tratou com o respeito natural devido a qualquer ser humano espectador. Expliquei que estava ali porque um amigo do Instituto de Cegos me falou que o teatro criou uma programação acessível ao público com a minha deficiência.
Logo percebi que estava ao meu lado uma jovem que se apresentou como mediadora cultural e que naquela noite era a responsável por me acompanhar.

Comprei o ingresso e recebi um programa em libras. Fantástico trabalho! Em seguida acompanhei a mediadora para que ela me apresentasse o equipamento de audiodescrição. Minhas mãos tremiam um pouco, pois misturava a emoção de ser bem acolhido e o nervoso de usar aquele equipamento pela primeira vez no teatro. Depois das explicações, aguardei um pouco e logo em seguida chegaram outros deficientes visuais, formando-se um grupo de cinco pessoas. Fomos convidados pela mediadora a visitar o palco e a conhecer alguns objetos do cenário e acessórios para facilitar a compreensão do que seria vivido em cena.

No palco, minhas mãos tocaram uma estrutura que parecia cimento de uma parede velha. Percebi que aquela sensação me trazia lembranças de minha infância sofrida, quando perdi a visão aos poucos e fiquei tocando meses nas paredes entre minha casa e a escola. Senti de novo minhas mãos descasadas… Respirei forte! A mediadora me chamou pelo nome: “Senhor Jonas, podemos descer”. Fiquei surpreso e feliz por ser chamado pelo meu nome.

Ela já tinha finalizado o percurso e as explicações. Antes de se despedir do grupo, apresentou o intérprete que estaria conosco pela voz durante o espetáculo. A mediadora explicou que nos deixaria então, pois um grupo de surdos a aguardava com uma intérprete em libras que ficaria ao lado do palco durante o espetáculo. Era um sonho ter aquelas pessoas solidárias nos introduzindo às artes.

O primeiro sinal soou. Naquele momento me vi como público com deficiência sendo respeitado como espectador que tem direito de estar ali e viver a imersão estética tão desejada. Quando fiquei cego, fui sempre excluído das atividades culturais na igreja e na família e não havia aulas de artes onde eu estudava. Nunca pensei em entrar em um teatro e ser público, mesmo com minha formação universitária em Direito. Foi meu amigo que me convenceu, pois tinha se transformado em militante pela cultura acessível a todos.

Segundo sinal. Meu coração bateu mais forte. Eu era ali um representante de 24% da população brasileira que tem algum tipo de deficiência e um dos 400 mil que têm salário para poder pagar aquele bilhete. Estava saindo ali da lista dos 60% dos brasileiros que nunca foram a um teatro. Era minha inclusão no mundo da fruição artística. Estava me sentindo importante! Ria internamente, para segurar minha ansiedade.

Terceiro sinal. Chegou a hora de colocar o fone de ouvido. Luzes apagadas fora e muita luz acesa internamente, para poder tudo ver através dos olhos da minha alma. O espetáculo começou! Ouvia o intérprete no fone de ouvido:
– Luzes azuis se acendem nas laterais do palco. Vê-se em cena um grande e imponente muro que divide o palco ao meio. Um homem entra numa cadeira de rodas, pela lateral direita. Segue lentamente para o meio. Uma luz branda ilumina seu caminho. Ele chega no muro e toca-o forte com as duas mãos.

Naquele momento ouviu-se um grito sobrepondo-se à trilha sonora. O grito me assustou e me jogou ao fundo da minha angústia, quando tocava nas paredes com suas cascas secas. Respirava forte apertando minha bengala e a cadeira.

– O personagem ergue suas mãos no mais alto ponto que ele pode e começa a descê-las lentamente. Há uma luz que focaliza suas mãos.

A voz do personagem era audível naquele momento. Estava na quarta fileira ao meio e o ouvia como se estive ao meu lado. Era meu primeiro encontro com um ator pela voz que dizia lentamente:

– Há um mundo para mim, mas minhas mãos ainda tocam este muro. Meus dedos repetem este mesmo movimento dia após dia na esperança de empurrar o muro. Sim! Ainda há um muro aqui. Ainda minha impossibilidade de ir e vir. Talvez eu esteja trancado... Quero passar ou sair! Eu sou gente!

A música de Caetano Veloso começou a tocar. Sua letra cruzava minhas entranhas (Gente pobre arrancando a vida / Com a mão / Gente viva, brilhando estrelas / Na noite / Gente quer ser feliz / Gente quer luzir!). Ouvia um barulho junto com a trilha sonora orquestrada com guitarras e violoncelo. Percebia que o ator se mexia rápido na sua cadeira. O intérprete prosseguiu a narrativa.

– O personagem dança em cena. Ele circula o palco rapidamente e se bate algumas vezes contra o muro. Num movimento brusco e coreografado, ele se deixa cair no chão. Fica estendido.

A música para de vez. Um silêncio depois daquela frase “fica estendido”. Era apenas o início do espetáculo e já me sentia captado pela obra. Aquele personagem era eu. Assim me sinto diante das adversidades da jornada diária. Há muros físicos, humanos, linguísticos, que nos impedem de acessar. O silêncio se quebra com ruídos de cidade e o intérprete nos esclarece.

– No lado esquerdo do palco entram cinco personagens falando ao telefone. A luz azul muda-se para um amarelo que vem do fundo, deixando os corpos apenas em contornos luminosos. Eles andam e realizam movimentos coreografados como se estivessem perdidos. Algumas vezes um cai e os outros passam por cima e continuam falando ao telefone. Enquanto isso, no lado direito uma luz ilumina as duas mãos do personagem cadeirante. Elas dançam lentamente Os cinco personagens começam a falar cada um a seu tempo sobre suas vidas em correria e frustações na relação com os outros. Algumas vezes pareciam que dialogavam entre si pela quebra de frases, mas continuavam sempre ao telefone. De repente, param de falar e ouve-se um som grave como de uma máquina que se move. O intérprete nos conduz.

Os cinco personagens viram para a direita como se enxergasse algo. O grande muro se divide em seis pedaços de forma uniforme ocupando todo o palco. Cada personagem fica colocado em frente a um pedaço. O cadeirante volta para sua cadeira e cola-se também a um pedaço do muro.

A música “Lado B Lado A” do Rappa começa a tocar. Suas palavras me enchiam de um sentimento de revolta e fé ao mesmo tempo. “Força, quando mete o pé, é com força, força, força. Quando mete o pé, é com força!”. Segue o intérprete, ágil.

– Luz branca ilumina toda a cena.

Vê-se os detalhes de cada um dos personagens de idades variadas. Dois são mais velhos. São três mulheres e dois homens. O cadeirante começa a dançar atravessando toda a cena. Faz movimentos bruscos próximos a cada um dos cinco outros personagens que estão como estátuas diante do muro. O cadeirante segue dançando com movimentos de braços e rotações na cadeira. Ele começa a retirar os celulares das outras pessoas e estas caem como se tivessem sido desligadas. O cadeirante retorna ao muro. 

Algo inusitado começou a acontecer comigo. Quando o intérprete falava dos movimentos da dança, meu corpo ressoava algo como se eu também quisesse dançar. Minha memória trazia à tona uma imagem da minha infância quando eu ainda não era cego. Um dia eu resolvi colocar uma música clássica e dançar para a família na sala. Meu pai correu, desligou o som, pegou o cinto e disse: “Homem não dança desse jeito”. “Você quer ser menina, é isso?” Seu cinto tocou como lâmina nas minhas pernas. 

Engoli o choro ali na plateia, como fiz quando olhei nos olhos de meu pai.

Segui minha vida e desisti de dançar, de ser artista. Como ser artista cego neste país? A música do Rappa repete-se na minha cabeça. “Pois a vitória de um homem às vezes se esconde num gesto forte, que só ele pode ver.” 

Ali na quarta fileira estava um público redescobrindo-se artista com deficiência. 

Dali para a frente a história se desenrolou numa fantástica narrativa surreal e simbólica. Aos poucos cada um enfrentou seus muros. Houve diálogos e conflitos fortes entre os seis personagens. Aos poucos os muros foram caindo e se transformando em pontes. Guardei momentos divertidos e tristes da vida daqueles pessoas que venciam seus muros por vezes criados por si ou impostos pela sociedade, religião etc.

Próximos ao final, sem muros, descobrimos que eram uma família com quatro filhos e que os conflitos passaram da revolta, da distância entre todos, ao amor que destrói muros. Muitas músicas, coreografias e textos poéticos me fizeram refletir sobre a família daqueles que têm deficiência e de como aquilo era um exemplo do que vemos na sociedade. Minhas lágrimas no final eram por perceber que ainda temos muitos muros entres nós, seres humanos, nesta família planetária. Ainda precisamos de muitas pontes para que consigamos acessar um o coração do outro.

Logo após a apresentação, houve um curto debate com os atores conduzidos pela mediadora cultural. Pude dialogar com o ator que fazia o cadeirante. Apresentei-me e perguntei para ele sobre como é ser artista com deficiência e se ele me indicava uma forma para entrar neste mundo das artes.

Com paciência, ele me respondeu.

– Boa noite, Jonas! Para mim foi um sonho que consegui realizar. Tive que suportar as negações de familiares e amigos que não acreditavam no meu potencial depois que tive o acidente de moto, aos 19 anos. Represento uma boa quantidade dos acidentados no trânsito no Brasil que ficam com sequelas. Resisti, fui fazer curso de dança contemporânea, vencendo preconceitos, e segui em uma companhia de dança. Este espetáculo traz muitos elementos da minha história e o quanto é necessário o artista com deficiência ser resiliente. Jonas, se quer fazer dança mesmo, deve seguir este sonho. Há alguns espaços culturais que possuem grupos de dança com deficientes visuais aqui na cidade. Você pode…

O ator continuava falando, mas eu não o escutava mais, pois meu sorriso começou a crescer e minha alma se encheu de esperança. Já me via no palco com as luzes e os aplausos. Após o debate, encontramos a mediadora. Perguntei a ela sobre por que o teatro começou a realizar aquele tipo de ação para acessibilidade do público. Sua resposta me surpreendeu.

– Estamos cumprindo a lei municipal. Nosso município nos obriga atualmente a adaptar o teatro e sua programação. Temos hoje um manual de acessibilidade cultural da cidade que nos orienta tanto nas questões arquitetônicas e estruturais como na programação adaptada às pessoas com deficiência. Conseguimos também reunir um coletivo de mediadores de alguns espaços culturais e estamos lançando um “Guia prático para acessibilidade nas artes cênicas”. Além disso, já modificamos nosso site com novos softwares para atender diferentes demandas deste novo público, muito bem-vindo. Minha função enquanto mediadora é estruturar ações do antes, para preparar o público, do durante, para que ele se aproprie da obra, e do depois, para criar uma maior reverberação e compreensão dos espetáculos. Isso é feito com o objetivo de formar e desenvolver uma inclusão cultural de espectadores autônomos, participativos e multiplicadores das artes. Você, por exemplo, saíra daqui hoje querendo voltar, não é mesmo?

– Com certeza! – Respondi.

Ao nosso lado já estava o intérprete. Rimos todos quando reconhecemos sua voz, que nos acompanhou durante a apresentação. Toquei em seu ombro e disse “ você é uma janela que nos faz ver horizontes inimagináveis. Eu agradeço sua generosidade de nos fazer rir e chorar com tanta leveza”. O intérprete, emocionado, explicou:

– Nosso trabalho de intérprete é estar junto com o público, guiando para que vivam suas emoções e reflexões de forma autônoma, respeitando sempre sua liberdade de fruição. É nosso dever cumprir as novas diretrizes com inovações para a acessibilidade cultural. Você sabia que no regulamento 48/96 lançado pela ONU em 1993, está escrito que os Estados devem oportunizar às pessoas com deficiência o desenvolvimento de seu potencial criativo e artístico? No texto diz que devem ser criadas atividades de dança, teatro, música, literatura e artes visuais para esse público. Estamos seguindo as orientações e nos adequando com tecnologias, formações continuadas e principalmente com a escuta de vocês, público!

Aquela palavra, “público”, ficou na minha mente. Eu ali tinha entrado como público e saído como artista em desejo de recriar minha história. 

Retorno o olhar para a minha janela, encerrando a escrita deste relato de alma encantada pelas artes. Na semana que vem, começarei aulas de dança. A noite aparece no azul escuro. Lágrima desce e desfaz-se nos meus lábios sorridentes. Minha alma de público e de artista com deficiência tem direito de ser feliz.