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A concepção acessível beneficia todo mundo
Hoje em dia, ao prestigiar um show, assistir a um filme ou passear por um museu, dificilmente o público não perceberá à sua volta rampas e banheiros adaptados para pessoas com defi- ciência. A evolução da infraestrutura nos espaços culturais é perceptível, e uma vitória a ser comemorada, mas como ir mais longe? Para o professor Eduardo Cardoso, arquiteto e urba- nista, o caminho é compreender que toda obra de arte – seja ela uma peça de teatro, um filme ou uma escultura – pode e deve ser acessível para todos.
A partir de diferentes técnicas, como maquetes táteis, audiodescrições, objetos de contextualização e afins, o pesquisador afirma que é preciso descobrir a “vocação” de cada obra. “O que podemos explorar naquilo, o que podemos contar sobre ela, da época, do seu estilo. Que outra informação adicional posso trazer?”, reflete. Estudioso da área de acessibilidade e coordenador do grupo COM Acesso e do Núcleo Interdisciplinar Pró-Cultura Acessível da Pró-Reitoria de Extensão da UFRGS, Eduardo defende que a concepção artística acessível não beneficia apenas as pessoas com deficiência, mas todos aqueles que tiverem acesso aos espaços culturais com esses recursos.
Confira a seguir a entrevista exclu- siva que Cardoso concedeu à Cadernos de Cidadania.
Como o conceito de acessibilidade em ambientes culturais se diferencia das outras discussões sobre acessibilidade?
Eduardo Cardoso: Se você for buscar um conceito específico para acessibilidade, a gente vai encontrar vários, que muitas vezes seguem algumas normas ou leis que falam de igualdade, de ter acesso. Num primeiro momento, falava-se muito em ter acesso, mas depois, no caso de ensino e até de infraestrutura, falou-se muito em acesso e em dar permanência. Não era mais simplesmente dar condições de acesso, mas também condições de permanência.
Na sequência, começou a se falar bastante de igualdade. Hoje, o que discutimos, principalmente no âmbito cultural, é justamente isso: ter condições de acesso, de permanência e de uso em iguais condições. Podemos ter um público muito diverso num ambiente cultural, uma criança, um idoso, uma pessoa que tenha algum tipo de deficiência, seja sensorial ou física, mas muitas vezes essa diversidade de comunicação e de recursos pode ser benéfica para todos. Atualmente, trabalhamos muito a questão da fruição: não é mais dar condições de acesso, de permanência, de igualdade ou de equiparação de oportunidades, mas é também a condição de fruição.
O que essa condição implica?
Eduardo Cardoso: Na cultura, durante muito tempo se falava sobre o acesso à informação. Por exemplo: pensando em uma pessoa com deficiência visual, a ideia de audiodescrição era descrever exatamente aquilo que se vê, e não, por uma regulamentação, por um acordo comum de quem faz audiodescrição, descrever algo além daquilo. Mas, se eu tenho contato com uma obra, não é só uma questão objetiva do que eu vejo ali que vai me emocionar. Então a gente começou a identificar quais são as formas de comunicação pensadas para determinadas obras, das mais variadas linguagens (teatro, cinema, espetáculos ao vivo, museus com obras estáticas), o que elas têm que nos emocionam. A questão era identificar quais as ligações afetivas e emocionais que eram feitas para que tentássemos, através da comunicação, dar chance para que a pessoa com deficiência pudesse construir uma imagem mental e também sentir essa mesma emoção.
E como isso pode ser feito?
Eduardo Cardoso: Hoje eu vejo que se trata muito de ter essa sensibilidade para perceber todo o potencial que uma obra pode nos passar e tentar encontrar nesse potencial formas de abordar isso em diferentes recursos. O foco não está na deficiência, e sim na eficiência de cada um. Quando fazemos trabalhos em museus, eu brinco com os técnicos sobre qual a vocação de determinada peça. Chamo de “vocação” para querer saber o potencial, o que podemos explorar naquilo, o que podemos contar sobre ela, da época, do seu estilo. Que outra informação adicional posso trazer? Que objeto de contextualização eu uso para criar uma ambiência em que a pessoa possa se sentir mais imersa naquele universo epossa ter as experiências que qualquer outro tem? Na verdade, a gente percebe que esses recursos são bons para todos. A concepção acessível beneficia todo mundo.
E além de beneficiar a todos, a discussão de acessibilidade na cultura também envolve todos, é uma questão multidisciplinar, que passa por arquitetura, urbanismo, design, comunicação e afins, certo?
Eduardo Cardoso: A equipe de acessibilidade sempre vai ser multidisciplinar. Hoje, por exemplo, na minha equipe de pesquisa eu tenho pessoas ligadas a Libras, ao departamento de Letras, de Design, de Comunicação, gente que vai fazer roteiro, gente da edição de audiovisual, terapeuta educacional. Nós precisamos ter conhecimentos de antropometria, de ergonomia, para que possamos cobrir todas as áreas que nos ajudem a assimilar a diversidade. O grande lance é como compreender e tirar potencial das obras, das diferentes linguagens. Não adianta ter um espaço fantástico, com mil recursos, onde o espaço é todo acessível, se as pessoas que trabalham lá não têm uma postura inclusiva.
Dentro dessas atividades culturais, onde a inclusão costuma ser mais difícil?
Eduardo Cardoso: Uma coisa que precisamos trabalhar muito bem é a mediação. Acho que essa palavra é muito importante dentro desse contexto, porque quem recebe, quem faz o acolhimento, precisa estar bem preparado para atender a todos. Precisa conhecer as pessoas, os perfis, estar pronto para diferentes linguagens, recursos, diferentes relações, e é a mediação que vai fazer tudo isso. A acessibilidade é também atitudinal. Nós já vimos isso em alguns espaços onde fui dar cursos ou fazer avaliação: muitas vezes você não tem os melhores recursos, o melhor espaço, mas você tem mediadores e equipes com muita boa vontade e que estão preparados para trabalhar com diversidade. Então, se a mediação é muito qualificada, você consegue romper várias barreiras.
Você acha que a discussão sobre infraestrutura acaba se sobrepondo a outras articulações necessárias?
Eduardo Cardoso: Na verdade, hoje a gente tem várias áreas da acessibilidade – infraestrutura, atitudinal, barreiras de informação, de comunicação –, mas você vai ter também questões de acesso econômico, político, outras searas que acabam implicando em tudo isso. É difícil dizer qual se sobrepõe a qual, ou pensar que se resolver bem essa, a outra tem menor importância. Todas têm muita importância, vai depender do contexto.
Mas se as pessoas têm consciência, se conseguem compreender a diversidade, elas vão estar mais abertas a buscar soluções e não focar só no problema. Acho que o foco, como eu disse, é na eficiência, e não na deficiência. Já vi mediadores em espaços onde não existia nada de acessibilidade planejada, e a pessoa foi lá e, conhecendo seu público, pensou em maneiras de se comunicar de forma eficiente.
Gostaria que você comentasse sobre a ideia de “direito à diferença”, sobre o reconhecimento das diferenças em contraposição às tentativas de apagamento delas.
Eduardo Cardoso:Essa questão da diferença a gente usa bastante, para não usar muito a palavra deficiência, porque é basicamente isso: conhecer a diferença. Não é para conhecer a deficiência, mas para saber como aquela pessoa se comunica com o mundo e com as pessoas, como ela usufrui dos espaços.
Há uma fala da Silvana Cambiaghi, uma arquiteta que escreveu o livro “Desenho Universal”, em que ela defende justamente isso: num ambiente hostil, mesmo uma pessoa sem deficiência pode se sentir deficiente. Então a pergunta que eu sempre deixo é a seguinte: é a pessoa que tem deficiência ou é o nosso ambiente que tem deficiência? É o outro que tem deficiência ou é a gente que tem deficiência por não saber compreender e se comunicar com o outro? Acho que a questão da diferença vai muito de compreender que todos são diferentes e que precisamos dialogar com todos.
Recentemente, uma empresa de tecnologia promoveu uma ação com um time de futebol em que um aplicativo traduzia os cantos da torcida para a língua de sinais, que eram apresentados por três jogadores do clube no celular de três pessoas surdas. Na sua opinião, qual o papel que a iniciativa privada pode exercer dentro desse debate?
Eduardo Cardoso: Independentemente se essas atividades ou atuações forem da iniciativa privada, acho que todos que trabalharem pela inclusão vão ser importantes. A gente vê muitas vezes essas atividades pontuais com foco em marketing, em uma campanha específica, ou às vezes a gente vê como o início de uma cultura pela inclusão. Quando temos isso como formação de uma cultura, de conscientização, de criação de políticas e de estratégias, acho que é fantástico. Mas é claro também que a gente percebe que isso pode ser pontual apenas para um determinado objetivo.
Parece haver legislação suficiente para prever essa facilitação de acesso aos ambientes culturais. O problema não é normativo, então?
Eduardo Cardoso: Não. Na verdade, se você for comparar com outros países, o Brasil é um dos que mais tem legislação sobre norma e acessibilidade. Nosso grande problema é fiscalizar e garantir que isso seja feito adequadamente. Quando falamos de legislação, o mais comum hoje é ver que há dificuldades para colocar essas leis e normas em vigor. Então, é uma legislação que vai sendo implementada muito paulatinamente.
A audiodescrição, por exemplo, deveria ser obrigatória da época em que foi criada até agora. Começou com obrigatoriedade de 20% dos canais abertos, depois isso foi aumentando e aí, claro, muitas vezes por pressão da própria iniciativa privada, isso foi demorando mais para entrar em vigor, porque muitas vezes gera custos. Temos muitas normas e estudos, mas a legislação ainda não é tão fiscalizada. Temos um Plano Nacional de Cultura com 55 metas, e a meta 29 fala sobre acessibilidade. No plano se prevê que até 2020 todos os espaços culturais devem ser totalmente acessíveis, mas não se especifica o que significa ser totalmente acessível.
O fato de haver apenas uma meta sobre acessibilidade nesse Plano Nacional de Cultura representa um certo descaso com o assunto?
Eduardo Cardoso: Eu acho que nós temos muita legis- lação. Essa meta número 29 já cobre um monte de coisas, e eu nem chego a questionar que exista apenas uma, porque uma bem feita pode ser muito bom. A gente tem instrumentos legais e normativos, mas faltam instrumen- tos de regulação, de consulta. Como você avalia e acompanha as metas para que em 2020 os espaços estejam 100% acessíveis? O que vejo hoje é que temos poucas iniciativas de mapea- mento, e aí como vamos fazer para pensar nos planos e nas estratégias se eu não sei qual é a situação atual?
E esse planejamento estratégico, de mapeamento, levantamentos, isso deveria surgir de onde?
Eduardo Cardoso: De políticas públicas. Acho que tudo que pode ser feito em conjunto, todas as parcerias são possíveis e podem contribuir, mas acho que ainda falta bastante construção de políticas públicas. Hoje temos cada vez mais editais, formas de fomento à cultura, que agora estão atentando para acessibilidade. Isso começa a ser critério de inclusão ou exclusão de uma proposta. Temos que criar instrumentos junto às políticas públicas, ações que não só promovam, mas que também controlem e fiscalizem as questões de aces- sibilidade. Todo e qualquer fomento que for dar, linha de crédito, edital, tem que contemplar acessibilidade. Ou sai acessível para todo mundo ou não sai. Não dá pra ficar empurrando sempre. O raciocínio tem que ser esse.
Falando de aplicações práticas em ambientes culturais, quais os recursos que estão na linha de frente e que não são necessariamente tão difíceis de serem implementados?
Eduardo Cardoso: A gente tem muitas possibilidades, as estratégias e os recursos são os mais variados. O principal é identificar, de acordo com o contexto e a obra, as potencialidades daquele objeto. A gente vê que algumas coisas muito simples podem ser capazes de promover essa imersão. Durante a minha tese, por exemplo, a gente ia fazer a transposição de uma imagem bidimensional, uma foto de uma igreja, e aí buscamos objetos de contextualização. Um deles, que pra mim era muito marcante, eram aqueles sons de sinos que você escuta em alguns momentos da liturgia, com um artefato que depois descobri que se chama carrilhão, formado por três sinos que produzem esse som. Um objeto como esse, o carrilhão, pode ser um original, réplica, ou similar. Eu fui numa loja de artefatos religiosos e, por um custo superacessível, comprei um desses, que foi colocado junto da obra no museu. Se você for olhar, alguns simples objetos de contextualização similares podem ser adquiridos e ajudar a promover a imersão do visitante naquele contexto da obra, e muito provavelmente aqueles mesmos recursos vão ser eficazes para outros públicos também. Para mim, é uma combinação de recursos que a gente tem que usar para cada serviço, local, obra. Vamos precisar identificar o que é crível e mais efetivo para aquela situação.
Existem obras que não são adaptáveis?
Eduardo Cardoso: Claro que temos situações que são muito complexas. Na audiodescrição a gente fala que tudo o que pode ser visto, pode ser descrito. Isso serve para qualquer obra de arte: se aquilo pode ser fruído por alguém, a gente pode produzir recurso para que todos tenham acesso a essa fruição. Isso ocorre de maneiras diferentes, cada um vai ter que levar em conta seu repertório, suas associações, é uma interpretação que é única, mas isso acontece para quem vê e para quem não vê, para quem escuta e para quem não escuta.
Existem artistas que já pensam nisso desde a concepção da obra?
Eduardo Cardoso: Sim. Tem muita gente superaberta, e a questão da acessibilidade acaba sendo um tensionador, um tensiona- dor político até, que retoma aquela questão do patrimônio, do acervo que não pode ser tocado. Isso já acontece nos prédios: como eu faço uma rampa num lugar que não pode ser mexido? A acessibilidade traz esses tensionamentos, mas também um tensionamento que é conceitual. Quando você consegue explicar para um artista que talvez não tenha esse discernimento, esse conhecimento, a ideia de que a fruição de um cego, de um surdo, vai ser diferente, isso pode ser um estopim para que ele pense em situações diferentes.
Partindo da ideia de que a concepção acessível sempre será benéfica para todos, quais as perspectivas em um cenário em que os ambientes culturais sejam de fato acessíveis e integrados?
Eduardo Cardoso: Acho que a partir do momento em que pensamos para todos, incluindo as pessoas com deficiência, potencializamos as possíveis trocas que podem acontecer. Acho que estamos no mundo para ter experiências diferentes, isso aumenta o nosso repertório, nosso conhecimento, potencializa tudo. Então, se a gente pensar, de novo, em recursos, estratégias, que sejam concebidas para todos, a troca é muito maior, e o benefício é muito maior, porque hoje nós vivemos num mundo em que tudo ainda é muito visual.
A estratégia predominante, nos museus, na sala de aula, em qualquer espaço, ela é ainda muito visual, e aí privamos muito os nossos outros sentidos, deixamos de desenvolvê-los e de aproveitá-los. E, deixando de aproveitar, estamos deixando de nos emocionar por outras vias. O uso de recursos multissensoriais que promovem inclusão também promove nosso desenvolvimento. Hoje, quando eu vou assistir a uma peça, quando vou ao cinema, e tenho possibilidade de assistir também com audiodescrição, é outra experiência, porque a interpretação do audiodescritor ali é algo que eu não tinha percebido. Acho que a gente poder usufruir e potencializar os outros sentidos é um benefício para o desenvolvimento de todos.