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Preconceito disfarçado

Desde muito novo, Sidney Andrade teve alta miopia. Usava óculos com 13 graus para corrigir o problema. Com 19 anos começou a perder a visão. Sidney cursava comunicação social na Universidade Estadual da Paraíba (UEPB), em Campina Grande quando foi diagnosticado com baixa visão, condição em que lentes já não fazem mais diferença. A retina de seu olho direito descolou e ele ficou completamente cego desse lado; com o outro, via com muita dificuldade, mas se virava bem. “Para todos os efeitos eu enxergava. Como eu tinha uma acuidade visual suficiente para disfarçar, eu acabava negando esse aspecto da minha condição”, conta.

Assim seguiu até terminar a faculdade. Muita gente nem sequer percebia sua dificuldade, exceto pelos colegas de sala de aula, quando o viam lendo. “Para ler eu tinha que encostar o nariz no texto. Era bem difícil. Eu tinha vergonha dessa deficiência recém-desenvolvida e esse sentimento perdurou comigo até eu perder a visão do outro olho, no final da graduação”, relembra. Na época, com a monografia já concluída, um glaucoma fez com que ele se tornasse totalmente cego. “Esse foi o choque maior, porque agora eu não poderia nem disfarçar mais, como vinha fazendo. Foi quando tive que mudar a minha mentalidade, conhecer a condição de pessoa cega que agora eu era e me reajustar”.

Sidney entrou em depressão, suspendeu o plano de fazer mestrado em literatura e passou um ano sem sair de casa. A forma encontrada para seguir adiante foi estudar sobre deficiência e acessibilidade. Antes do glaucoma, ele havia experimentado um software de leitura de tela. Por meio da tecnologia, o texto disponível em computadores, tablets e celulares é declamado por uma voz sintetizada. “Passei cinco minutos com o leitor de tela e pensei: ‘Jamais conseguirei, se eu ficar cego eu estou lascado”, conta.

Por mais incômodo que fosse, contrariando sua própria expectativa, Sidney conseguiu, e o leitor de tela passou a ser o principal acesso ao conhecimento de que ele dispunha. Em grande medida, era também a principal via de contato com o mundo externo, já que lhe permitia usar a Internet e se conectar a outras pessoas. Aos poucos, ele foi se adaptando à cegueira. Prestou sem grandes expectativas a prova para um mestrado. Foi aprovado. Assim, saiu de sua reclusão e começou a frequentar o Instituto de Cegos de Campina Grande, onde aprendeu a ler em braile. Hoje, é professor voluntário de informática na instituição.

Foi durante esse período de estudos que Sidney descobriu uma palavra que há muito procurava: capacitismo. O termo descrevia um tipo específico de opressão que ele sofria mas ainda não havia sido capaz de formular. Desde que perdera a visão, Sidney sentia que se imprimia sobre ele um rótulo de invalidez. “Descobrir que esse negócio tem um nome foi crucial. Tem coisas que você só consegue dominar se for capaz de nomear. Enquanto elas não têm nome, ficam inalcançáveis. Eu achava que tinha de inventar um nome para esse desconforto quando eu descobri que já existia. Para mim foi libertador, embora eu saiba que isso pode cortar para os dois lados: um conceito pode servir tanto para te libertar quanto para te aprisionar. Mas, no caso do capacitismo, e da noção  que ele traz da pessoa com deficiência, que não é essa pessoa inválida, mas alguém a quem os outros atribuem invalidez, para mim foi libertador”, lembra.

Embora a palavra capacitismo seja relativamente recente, o que ela descreve não é novidade. É capacitismo o ato de julgar a capacidade de alguém fazer algo de acordo com sua deficiência. “Capacitismo traduz o preconceito com a condição de deficiência da pessoa. É quando de cara você rotula uma pessoa só porque ela é cega, por exemplo. É achar que ela não vai conseguir fazer nada sozinha e vai precisar de alguém a acompanhando o tempo todo”, explica Marta Gil, socióloga especialista em inclusão de pessoas com deficiência.

Capacitismo e trabalho

São muitas as expressões do capacitismo. Uma das mais perversas é a exclusão da pessoa com deficiência do mercado de trabalho. Um levantamento do Ministério Público do Trabalho, a partir de dados do IBGE de 2010, mostra que a porcentagem de pessoas economicamente inativas é consideravelmente maior entre aqueles que apresentam alguma deficiência.

Segundo o estudo, quase um quarto da população brasileira tem alguma deficiência visual, auditiva, motora e/ou intelectual/mental. Nesse grupo, cerca de 91% está em idade considerada apta a integrar o mercado de trabalho. No entanto, apenas 51% declarou estar empregada ou disponível para trabalhar. Entre as pessoas sem deficiência, nesta mesma faixa etária, a porcentagem de pessoas com emprego ou pronta para o trabalho supera os 70%.

Fatores de acessibilidade arquitetônica e urbanística ainda são um dos principais obstáculos às pessoas com deficiência, mas em realidade acabam sendo um desdobramento de uma questão mais profunda. O que está por trás da ausência de estrutura acessível é uma mentalidade social excludente, uma falta de “acessibilidade atitudinal”. Colocando de outra forma, é preciso que as pessoas sem deficiência tenham uma atitude diferente em relação ao assunto.

Uma pesquisa feita em 2016 pela Talento Incluir, empresa especializada na inclusão de pessoas com deficiência no mercado de trabalho, em parceria com a Vagas, companhia de recrutamento online, traz informações que ajudam a entender o panorama. Mais de 4.000 pessoas com deficiência, cadastradas no sistema da Vagas, responderam a um questionário que visava traçar um retrato parcial da relação do grupo com o mercado de trabalho. Também foram questionados os setores de RH de algumas empresas.

Para a pergunta “Qual o maior obstáculo para a inclusão?”, metade dos profissionais de recursos humanos disseram ser a falta de acessibilidade. Curiosamente, apenas 16% das pessoas com deficiência disseram ser este o principal problema. “A falta de acessibilidade causa um impacto muito negativo na nossa vida, mas a gente mora no Brasil, esse é um problema do país como um todo. Ela não é uma barreira excludente para o mercado de trabalho. Acho que a maior barreira não é a acessibilidade física, mas sim a acessibilidade atitudinal. É a cultura”, diz Tabata Contri, consultora da Talento Incluir.

O dado mais chocante, para ela, é justamente o que mostra a total falta de sensibilidade de certas pessoas no ambiente corporativo. Aproximadamente 40% dos participantes da pesquisa disseram já ter sofrido discriminação no trabalho por conta da deficiência, sendo que, destes, 57% afirmaram ter sofrido bullying. “São casos como imitar o jeito de andar de uma pessoa com encurtamento da perna ou a fala de um deficiente auditivo”, diz Tabata, que, no entanto, é otimista: “Se levarmos mais informação para as pessoas, as relações vão ficar mais respeitosas”, acredita.

A consultora é cadeirante e enfrenta o capacitismo no dia a dia. Ela sofreu um acidente de carro aos 20 anos e perdeu o movimento das pernas. Ficou quase dois anos afastada por conta do tratamento. Sua primeira oportunidade de trabalho depois da lesão foi como vendedora de uma fabricante de cadeiras de rodas. Tabata já tinha experiência na área – o que, segundo ela, fez toda a diferença.

Rompendo barreiras

Pesquisas conduzidas pelo Ministério Público do Trabalho (MPT) e por outras entidades mostram que o caminho para a inclusão ainda é longo, mas também apontam saídas animadoras. A principal delas é a efetividade de políticas afirmativas, como o artigo 93 da lei nº 8213/91, que ficou conhecido como a Lei de Cotas. A legislação estabelece que toda empresa com cem ou mais empregados é obrigada a contratar uma certa porcentagem de pessoas com deficiência. Essa cota varia entre 2% e 5% do total, de acordo com o tamanho da organização.

Segundo o MPT, atualmente o número de pessoas com deficiência que estão no mercado de trabalho ultrapassa os 400 mil. Desse total, 93% estão inseridos graças à Lei de Cotas, o que significa que poucos atuam em empresas que não precisariam cumprir a cota. “A conclusão para nós é a seguinte: a Lei de Cotas é essencial ainda, infelizmente. O ideal é que não precisasse de ação afirmativa para inclusão, mas os dados demonstram que sem a lei a inclusão seria muito mais difícil”, diz Sofia Vilela, procuradora do trabalho e vice-coordenadora da Coordigualdade, coordenadoria do MPT voltada à promoção da igualdade no trabalho.

O principal desafio, segundo a promotora, é lidar com os mitos que se perpetuam entre as empresas para justificar a não contratação de pessoas com deficiência. Um deles é o de que falta gente. Não é o que mostram os indicadores. Em um universo de 45 milhões de brasileiros com alguma deficiência, apenas cerca de 400 mil estão empregados.

Outra falácia é que os profissionais com deficiência são menos qualificados que os demais. Os dados do MPT mostram que as pessoas com deficiência estão dentro da média de formação do brasileiro. “O que a gente observa é que as empresas têm esses preconceitos e não estão se esforçando totalmente para incluir, não estão adaptando seu ambiente de trabalho para torná-lo acessível”, critica a procuradora do trabalho Sofia Vilela.

Para a socióloga Marta Gil, o preconceito e os baixos índices de inclusão representam o copo meio vazio da questão. Segundo ela, no entanto, há o que comemorar, como a legislação e o aumento da visibilidade das pessoas com deficiência. “A gente ainda tem preconceito, basicamente, por falta de informação. Acho que são poucas as pessoas que agem assim por maldade, é mais por falta de convivência”, diz

Uma longa história

Ao longo dos séculos, o olhar sobre  a deficiência variou muito. Na Antiguidade, enquanto em civilizações como Esparta as pessoas com deficiência eram sumariamente executadas, no antigo Egito, quem nascia com nanismo era cultuado. Durante  a Idade Média, o deficiente era excluído, escondido em instituições que os tratavam como seres defeituosos, mas não mais passíveis de extermínio. No século XX, depois da Segunda Guerra, a perspectiva começa a mudar, principalmente na Europa. Os ex-combatentes que, devido a ferimentos, ficaram com alguma deficiência, eram reconhecidos como heróis. A sociedade passou a se dedicar a melhorar a vida dessas pessoas. É dessa época o desenvolvimento da fisioterapia e da fonoaudiologia. Nesse mesmo período, também surgem instituições como a AACD (Associação de Assistência à Criança Deficiente), que tratam clinicamente a pessoa com deficiência e criam um ambiente estruturado para suas necessidades.

O que se seguiu depois disso, nas últimas décadas do século passado, foi um levante emancipatório e contrário à segregação. Pessoas com deficiências e apoiadores da causa passaram a lutar por uma inclusão verdadeira. As leis e convenções internacionais que hoje garantem direitos fundamentais são resultados desse esforço.

Hoje, não se entende mais a deficiência como uma condição biológica, mas como uma situação física, psicológica e social: uma questão biopsicossocial. “A definição mais completa de deficiência, atualmente, indica que devemos considerar não só a parte biológica”, explica Marta Gil. “Eu não posso ignorar isso, é claro: uma pessoa com uma perna amputada não tem um membro. Mas eu preciso levar em conta o que a sociedade oferece para ela e a que ela tem acesso”, complemente a socióloga.

A inclusão desejada, portanto, é aquela que entende as necessidades da pessoa com deficiência e, não menos importante, enxerga seu potencial. Se ficassem condicionados sob o olhar do capacitismo, pessoas como Sidney Andrade e Tabata Contri não teriam seguido adiante com suas vidas. Mesmo cego, Sidney lê e escreve bem o suficiente para concluir um mestrado e pleitear um doutorado. Tabata, em uma cadeira de rodas, entrou para o teatro e foi a primeira cadeirante a participar de uma novela na televisão. Nenhum deles é um herói da superação, o que é uma outra expressão do estereótipo capacitista. O que acontece é que existe um livro para Sidney e um teatro para Tabata – como aliás deveriam existir para todas as pessoas.