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Acessibilidade: direito à cidade

Ilustração: WM
Ilustração: WM

texto: Ligia Helena F.  Zamaro*

Assistente Técnica da Gerência de Estudos para Sustentabilidade e Cidadania

Segundo a convenção da ONU sobre os direitos das pessoas com deficiência, estas “são aquelas que têm impedimentos de natureza física, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade com as demais pessoas.

Paralelamente, os dados do Censo 2010 revelam que a deficiência é uma característica em 23,9% da população: 45,6 milhões de pessoas no Brasil têm algum tipo de deficiência – física, visual, auditiva, intelectual, múltipla, sendo que representam cerca de 9 milhões de pessoas apenas no Estado de São Paulo.

Além delas, há populações que ainda se encontram algumas vezes invisíveis – as pessoas com transtorno do espectro
autista, com déficit de atenção, com transtornos psicossociais, disléxicos, pessoas com nanismo e outras, com algum grau de analfabetismo funcional ou plenamente analfabetas. Embora estas condições não caracterizem especificamente uma deficiência, tal como a definição anterior, os mecanismos de acessibilidade também favorecem a experiência destas populações em sua vida social.

O pressuposto conceitual do trabalho em acessibilidade no Sesc São Paulo é pautado diretamente no modelo social de deficiência – perspectiva atual que adota uma leitura sistêmica das barreiras (sociais, culturais, comunicacionais e físicas), com foco na relação entre as pessoas e destas com o ambiente. Nesta ótica, a deficiência não é questão única do sujeito, isolada: é vinculada de forma complexa ao ambiente e suas barreiras relacionais, culturais e físicas, que podem prejudicar a participação das pessoas. Entende-se a deficiência como uma característica humana, devendo ser respeitada e contemplada em um convívio social que se planeje plural. As pessoas não podem ser definidas unicamente a partir de suas características orgânicas ou biológicas; são compreendidas em sua totalidade e complexidade humanas, recordando suas dimensões fundamentais (subjetividade, personalidade, identidade) dentro de um contexto socialmente construído e dinâmico. Uma visão ampliada desses elementos contribui para que as pessoas com deficiência usufruam o acesso com autonomia e equidade. Assim, a acessibilidade seria uma manifestação possível da educação para a diferença, tendo como base a relação entre indivíduos e ambientes

Barreiras atitudinais

O entendimento da pessoa com deficiência em uma perspectiva social para além de uma visão estritamente médica ou assistencialista – nos faz perceber como as reais barreiras eventualmente residem nas atitudes, que podem ser limitadoras de um processo de emancipação e independência. Ou seja, dificultam o exercício da cidadania plena das pessoas com deficiência.

O Sesc São Paulo focaliza suas ações em um atendimento pleno de seu público prioritário – trabalhadores do comércio, bens, serviços, turismo e saúde, bem como seus dependentes, além da comunidade em geral. Com esta ênfase, o foco do olhar baseado no acesso também abrange trabalhadores que porventura apresentem algum tipo de deficiência. Por sinal, a inclusão no mercado de trabalho é crescente no país, em função dos dispositivos legais, como por exemplo, a Lei de Cotas (1991), que tem trazido oportunidades à inclusão laboral de pessoas com deficiência. O trabalho em acessibilidade também atinge outras esferas, como, por exemplo, a melhoria de qualidade de vida das pessoas com deficiência que trabalham no Sesc. É, portanto, muito relevante considerar o oferecimento de condições de participação livres de barreiras a cada vez mais pessoas, tornando de fato a experiência nas unidades do Sesc mais gratificante, acessível e potente a toda a comunidade envolvida no cotidiano das unidades.

A cidadania é exercida nas cidades, nas ruas, nas escolas, no trabalho, no deslocamento pelo transporte, aspectos que delineiam um desejo de cidade, que todos queremos: o lugar ao qual pertencemos, no qual vivemos com autonomia, segurança e no qual nosso direito de ir e vir é respeitado e assegurado. Isto é reflexo de um desejo coletivo: poder participar de sua pólis e ser reconhecido como parte dela é uma busca social essencial, pautada na ânsia de estabelecimento de relação, de troca e de vínculos.
Não seria diferente no caso das pessoas com deficiência. Uma pessoa cega certamente gostaria de locomover-se sozinha
e com segurança pela cidade, com independência, para assistir a um filme. Uma pessoa com deficiência intelectual provavelmente desejaria mais autonomia para circular pelo transporte público e conhecer sua cidade sem receio de se perder. Todos nós almejamos oportunidades semelhantes. Basta nos lembrarmos da sensação de visitar uma nova cidade pela primeira vez, buscando compreender como se inserir em outra lógica de lugar, de espaço e de temporalidade.

Direito à cidade

E por que relacionar acessibilidade e direito à cidade? E em se tratando de cidade, que espaço é esse (que o tempo todo permeia a individualidade e a coletividade, que entrelaça o público e o privado)? Que cidade é essa? E, sobretudo, para quem é ela? Quem dela se beneficia tal como é organizada, gerida, planejada? 

As respostas sempre serão complexas, principalmente quando lidamos com uma leitura das relações comunitárias que atravessam a vivência urbana cotidiana.

A discussão sobre pertencimento à cidade passa por uma compreensão sobre as políticas públicas, sua articulação no planejamento de um local e seu impacto na vida coletiva. No Brasil, em 2015, foi promulgada a Lei Brasileira de Inclusão, que legitimou uma série de medidas para a paridade de acesso das pessoas com deficiência à educação, transporte, saúde, trabalho, esporte, cultura
e lazer, dentre outras áreas  relevantes.

Neste documento, muito do que foi ratificado na Convenção da ONU assume forma de lei federal, constituindo um marco evidente da construção de políticas apoiadas no acesso. E, embora se destine à população com deficiência,
sua efetivação refletirá na qualidade de vida da sociedade como um todo.

Outro aspecto são os direitos culturais das pessoas com deficiência. Sua participação na cultura, como público ou criador, é direito humano inalienável, compondo, na sua ausência, um vácuo muito profundo na personalidade e identidade de um indivíduo.
Em face disso, os ambientes culturais devem se preparar, garantindo o acesso cotidiano de seu público plural às experiências que proporcionam.

Para desenvolver essa dimensão, a educação não-formal é premissa essencial de uma perspectiva ampliada de acessibilidade, que sustenta a Política de Acessibilidade do Sesc São Paulo, atualmente em construção na  instituição.

Cidadania cultural

Para uma cidadania cultural não-exclu- dente, há uma via de mão-dupla que conduz o trabalho com viés em acessi- bilidade ou a habilidade de criar acesso: em primeiro lugar, é preciso garantir o direito de ser público, ou seja, fomentar que a pessoa com deficiência tenha acesso à fruição, participação e experi- mentação de propostas culturais com equidade. Em segundo lugar, é neces- sário garantir o direito de ser criador, ou seja, incentivar que as pessoas com deficiência tenham acesso à criação, cocriação, protagonismo e desenvolvi- mento de propostas culturais com equidade em relação aos demais profissionais.
No Sesc São Paulo, na estrutura física e arquitetônica dos espaços, grande parte das edificações, inclu- sive as que estão em projeto, já encon- tram-se adequadas, quanto ao desenho universal. Outras unidades mais antigas estão em adequação física. Há iniciativas regulares também no campo de ações esportivas, que são desen- volvidas há mais de vinte anos, com ênfase em metodologias e difusão de saberes relacionados à prática espor- tiva de pessoas com deficiência. O Sesc é parceiro de instâncias como, por exemplo, a Secretaria de Estado dos Direitos da Pessoa com Deficiência, realizando anualmente a Semana Inclusiva. Nela, ocorrem ativi- dades esportivas, culturais e educa- tivas com ênfase na participação plena. Há um incentivo ampliado para o mapeamento do território como parte dessa construção, que sempre possui um viés comunitário muito forte. Identifica-se que o desafio maior hoje está em implicar a sociedade na apli- cação prática da acessibilidade, cons- ciente de que não é preciso ser pessoa com deficiência para se ressentir de uma cidade sem acesso, sem auto- nomia, sem segurança e sem respeito ao direito fundamental à vida na cidade.