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História revelada

Foto: Gabriela Nehring
Foto: Gabriela Nehring

História revelada

por Silvio Tendler

Documentarista trilha o caminho da coerência ao produzir filmes que descortinam a realidade


Revelar. Esse é um dos verbos poderosos por trás das criações de Silvio Tendler, cineasta carioca na ativa desde os anos 1980 e empenhado em descobrir histórias e personagens que, segundo ele afirma, resultem em um produto de qualidade e de preferência voltado aos interesses da humanidade.

Nascido em 1950, é parte de uma geração que se formou na sala escura dos cineclubes e demorou um pouco até conciliar sua predileção com uma formação acadêmica na área. “Era normal na minha geração que o jovem de classe média também tivesse uma formação universitária, e os cursos de comunicação eram embrionários. Quem não sabia muito bem o que fazer optava pelo curso de Direito. E foi o que fiz”, explica. Em 1972, foi morar na França e se matriculou num curso de Cinema aplicado a Ciências Sociais organizado pelo cineasta Jean Rouch, no Musée Guimet. “Tive a oportunidade de fazer o curso de Cinema e História orientado por Marc Ferro. E me encaminhei nesse sentido do cinema documental ligado a temas históricos, que é o que faço até hoje”, resume Tendler.

Anos de formação

Nos anos 1960, época em que comecei a transitar pelo mundo do cinema, não havia escolas da área. Então a grande escola era a cinemateca do MAM (Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro), a cinemateca de São Paulo e os cineclubes, que eram fundamentais na nossa formação.

Era normal na minha geração que o jovem de classe média também tivesse uma formação universitária, e os cursos de comunicação eram embrionários. Quem não sabia muito bem o que fazer optava pelo curso de Direito. E foi o que fiz; comecei a graduação em Direito, frequentava os cineclubes, mas minha entrada na universidade coincidiu com o AI-5 [o Ato Institucional nº 5, de 1968, é considerado o mais duro da ditadura militar e concedia ao presidente, entre outros poderes, o de cassar mandatos e suspender os direitos políticos de qualquer cidadão por dez anos]. Então fui embora do Brasil em 1970, para morar no Chile e cursar Sociologia, a escola que quem queria ser de esquerda fazia. Nesse período, tive a oportunidade de ser aluno de formadores do pensamento latino-americano.

Em 1972 fui morar na França, matriculado num curso de cinema aplicado a Ciências Sociais organizado pelo cineasta francês Jean Rouch, no Musée Guimet.

Também participei do grupo Société pour le Lancement des Oeuvres Nouvelles (SLON), do grande cineasta francês Chris Marker, e tive a oportunidade de fazer o curso de Cinema e História orientado pelo historiador francês Marc Ferro. E me encaminhei nesse sentido do cinema documental ligado a temas históricos, que é o que faço até hoje.

Trajetória e influências

Quando comecei a transitar pelo mundo da cultura, nos anos 1960, com 15 anos de idade, nossos ícones eram o pessoal do Cinema Novo no Brasil e a Nouvelle Vague francesa, e aos poucos fui me encaminhando em direção ao documentário, achando o tipo de cinema que eu queria fazer.

Na época do meu primeiro longa-metragem, Os Anos JK – Uma Trajetória Política (1980), e em seguida de Jango (1984), estávamos saindo da ditadura militar. Era um período em que, por conta da vivência da censura e da ditadura, havia uma grande sede de conhecer o Brasil. As pessoas tinham curiosidade e fascínio pelas próprias imagens apresentadas nos documentários. JK e Jango são duas das maiores bilheterias do cinema brasileiro. E os trapalhões [Mundo Mágico dos Trapalhões, 1981], meu terceiro filme, é uma grande bilheteria, mas não por minha conta, por conta da própria realidade dos trapalhões, que naquela época representavam a grande bilheteria do cinema nacional. Os filmes foram muito bem recebidos e minha aceitação como documentarista foi imediata.

Professor e cineasta

Dou aula na PUC-RJ [Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro] há 36 anos na cadeira de Cinema e História. Acho que o trabalho universitário é complementar ao meu trabalho como cineasta, os dois caminham juntos. Não sou professor que faz cinema, nem cineasta que dá aula. Sou professor e cineasta, faço as duas coisas com o mesmo prazer e o mesmo orgulho.

Função reveladora

O documentário tem essa função de ser revelador. Um dos meus ídolos é Ken Loach [cineasta britânico vencedor da Palma de Ouro do Festival de Cannes em 2016], um cineasta que não é documentarista e produz filmes reveladores sobre a realidade, usa o cinemão para falar de operários, jogadores de futebol, imigrantes. Acredito que o cinema precisa desse aspecto revelador, e meu documentário O Veneno Está na Mesa II (2014) cumpre esse propósito. Temos as grandes produções sobre a agricultura, que normalmente são patrocinadas pelo agronegócio e não têm coragem de revelar a realidade por trás daquilo tudo que está lá. A coragem que tive é a daqueles que desejam revelar a realidade, potencializando a função do documentário.

Lógica do capital

A discussão sobre lucro e cinema é tão antiga quanto o próprio cinema. O cinema surge em 1895, digamos “inventado” pelos irmãos Lumière [os franceses Augusto e Louis Lumière], responsáveis pela primeira projeção pública de imagem em movimento, na cidade de Lyon.

Os americanos inventaram o aparelho pequeno no qual você mete a cara, bota uma moeda e vê uma imagem se mexendo, mas, como os americanos adoram contar vantagem e se apropriar da invenção dos outros, dizem ter inventado o cinema, quando na verdade o cinema foi inventado na França. Os irmãos Lumière tomam a invenção deles para a humanidade, viam o cinema até com uma finalidade mais científica do que artística. Já os americanos inventam o lucro, cobram, inventam a patente. Então, nessa dicotomia da criação estamos discutindo arte e capital, assunto que não se esgotou.

Ainda existem cineastas como eu, que fazem cinema pelo prazer de contar uma história, de torná-la pública, e existem aqueles que fazem cinema voltado para o lucro. Acho que a gente tem que conviver com esses dois mundos, o mundo da arte e o mundo do capital, ambos, curiosamente, resultam em produtos interessantes.

Não vale a pena condenarmos o filme apenas porque foi produzido no sistema capitalista, ou considerar que o filme será bom porque foi produzido no sistema socialista, porque os dois sistemas produzem coisas boas e coisas ruins. O fundamental é fazer um produto de qualidade e de preferência voltado aos interesses da humanidade.


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