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Samba em Verso

Samba em Verso

Da alegria da batucada ao fim trágico, Assis Valente foi um dos grandes compositores da era de ouro do rádio brasileiro

Compositor que caiu nas graças de Carmen Miranda e tem em sua lista de feitos musicais as letras de Brasil Pandeiro (Chegou a hora dessa gente bronzeada mostrar seu valor), Boas Festas (Eu pensei que todo mundo fosse filho de Papai Noel) e Cai, cai, Balão (Você não deve subir / Quem sobe muito / Cai depressa sem sentir), Assis Valente nasceu na Bahia em 1908, mas passou grande parte da vida na cidade do Rio de Janeiro, onde realizou o sonho de ouvir suas composições nas principais vozes da época de ouro do rádio brasileiro.

Filho de mãe negra e pai descendente de família portuguesa vinda da colônia africana de Goa que aportou em Salvador, no final do século 19, Assis foi também filho da miscigenação em um país que caminhava em passos curtos rumo às necessárias transformações sociais.

Os pais não chegaram a oficializar a relação e, ainda bebê, foi adotado por uma família de boa condição financeira e levado para a cidade baiana de Alagoinhas. Perdeu o contato com a mãe e o pai biológicos, fato que deixou traumas no sambista. O padrasto era dentista, profissão exercida por Assis antes de sua inserção completa no mundo da música e que o acompanhou por toda a vida. Assis ajudava o padrasto e, depois de adulto, chegou a manter consultório protético em sociedade com um amigo. O futuro artista ficou famoso pela perfeição das dentaduras que fazia.

Outro talento guardado na manga era a aptidão para o desenho. Nos idos de 1923, então com 15 anos, em vez de seguir na oportunidade oferecida pelo Tiro de Guerra (formação militar da cidade de Alagoinhas), desejava mudar de rumo e atuar na imprensa local como chargista, vontade que desagradou a família. O jovem Assis não conseguiu ver sua assinatura no periódico local Diário de Notícias e, fora da casa dos pais, decidiu fazer as malas em direção ao movimentado centro urbano e cultural do Brasil, a cidade do Rio de Janeiro.

Olho no samba

Autor da biografia Quem Samba Tem Alegria (Editora Civilização Brasileira, 2014), Gonçalo Junior conta que um fato marcante que coincidiu com a mudança de Assis para o Rio foi o início das atividades da revista semanal O Cruzeiro. A partir de 1928 a publicação ocupou lugar de destaque na imprensa ilustrada nacional, atingindo níveis de venda impressionantes, equivalentes a 700 mil exemplares por edição.

“Mas famosa mesmo, quando Assis foi morar no Rio, era Fon-fon, criada em 1907 pelo célebre escritor e crítico de arte Gonzaga Duque”, afirma Gonçalo. Depois da recusa de ambas, decidiu investir numa publicação de menor alcance e popularidade, a revista ilustrada Shimmy, da qual se tornou um dos principais desenhistas, entre os anos de 1928 e 1929.

“Enquanto isso, para garantir seu sustento, empenhou-se como aprendiz de protético. Era impossível, para alguém com as suas pretensões artísticas, não perceber a importância que a música tinha nos meios em que ele circulava depois do expediente e nos fins de semana”, descreve Gonçalo Junior. “Os cafés eram frequentados por músicos, compositores, radialistas, jornalistas e artistas gráficos.”

Nessas perambulações pela boemia carioca, Assis conheceu o compositor Heitor dos Prazeres, sendo apresentado como o protético do Largo da Carioca e ilustrador. Em sua companhia, Assis subiu ao morro pela primeira vez e se misturou às rodas de samba da Vila Isabel, onde esbarraria em Noel Rosa. A amizade com Heitor dos Prazeres foi essencial para que Valente se aproximasse de vez da música e deixasse falar mais alto sua aptidão para compor. Caiu na noite e passou a frequentar os shows das estrelas da época, Araci Cortes e Carmen Miranda, com a ideia fixa de que elas interpretassem suas canções e, dessa forma, tivesse seu talento reconhecido.

Gravações

Não precisou de muito tempo para o letrista colocar em prática o sonho de ser cantado em verso e ritmo pelas cantoras que admirava. Mesmo trabalhando como protético e conseguindo se sustentar com a profissão, aventurou-se na missão de cativar a diva Araci Cortes. Era ela quem deveria interpretar sua primeira composição, o samba Tem Francesa no Morro (veja curiosidades sobre algumas de suas composições no boxe Na boca do povo). “Queria provar para todos que o haviam conhecido na Bahia e para si mesmo que era um artista. Mostrar para o pai branco e de origem europeia que o filho bastardo e mulato tinha algo de especial: sabia criar versos e fazer música”, opina o biógrafo, ressaltando o gosto amargo que não ser criado pelos pais biológicos teve na trajetória de Assis.

Outra que ficou na mira do sambista foi Carmen Miranda, a qual brilhava nos anos 1930, dominando as paradas com a marchinha Pra Você Gostar de Mim (escrita por Joubert de Carvalho). Para mostrar suas composições à estrela da vez, Assis passou por maus bocados. Era difícil se aproximar. Na biografia do compositor, encontramos um relato de sua nova obsessão:
Toda vez que eu esperava para falar com a menina, ela se fazia acompanhar de um homem alto, sisudo [...] Vim a saber mais tarde que era o professor dela, Josué de Barros. Não desisti e Carmen passou a ser minha obsessão continuada!

A insistência deu resultado. Assis começou a estudar violão com Josué, porém, nunca a encontrava durante as aulas. Em 1932, chegou o dia do encontro. O professor “apresentou-o a Carmen como um promissor violonista e autor de uma música que Araci Cortes lançaria em breve [Tem Francesa no Morro]”. A propaganda foi certeira e, completa Gonçalo Júnior, “esse detalhe atraiu a atenção de Carmen, pois via em Araci a mais forte concorrente entre as cantoras”, justifica Gonçalo Junior.

Daí em diante, as composições de Assis encantaram não só Araci Cortes e Carmen Miranda, mas Zezé Fonseca, Antônio Moreira da Silva, Jaime Vogeler, entre outros que figuravam no dial das rádios cariocas.

Vícios e dívidas

Em meio à promissora carreira, Assis Valente fez escalada descendente na vida pessoal. O sucesso foi intenso até 1939, quando o vício em cocaína, a depressão e problemas financeiros apareceram em cores mais fortes. A primeira tentativa de suicídio data de 1941 e ganha ares de drama de cinema. Ao decidir se jogar do Corcovado, símbolo da paisagem carioca, Assis se vê impedido de realizar seu intento ao ser barrado pela copa de uma árvore.

Agrediu-se por mais cinco vezes, até morrer de forma melancólica e sem o brilho estimado que conseguiu em sua trajetória artística. Levando à boca uma mistura de refrigerante e veneno de rato, num fim de tarde comum na Praça do Russel, suicidou-se em 1958.

A morte trágica não encobriu o talento e a inventividade do autor querido pelas damas da música brasileira. “Baiano, Assis Valente inaugurou seu caminho de compositor no Rio de Janeiro em um tempo em que a indústria fonográfica ganhava corpo com o rádio, e o samba e o carnaval cariocas desfilavam como a verdadeira identidade nacional”, explica Biancamaria Binazzi, radialista e uma das idealizadoras do projeto Goma-Laca (goma-laca.com). “Compositor favorito de Carmen Miranda, pode ter sido um dos primeiros cronistas musicais a revelar caras de um Rio (e Brasil) cheio de contradições.” Biancamaria contextualiza algumas das canções criadas pelo gênio: “Ao som dos tamborins, ele exalta seu Brasil Pandeiro para a folia do Tio Sam, sem deixar de olhar para a criança que dorme no chão em Recenseamento. A batucada colorida dos sambas de Assis Valente não fecha as cortinas para a Boneca de Pano num sombrio cabaré. E, mesmo denunciando desigualdade e exclusão em uma canção de natal como Boas Festas, o compositor triste proclama Alegria”.



Na boca do povo

Conheça algumas das canções mais populares escritas por Assis Valente

Brasil Pandeiro

Composta nos anos 1940, foi gravada pelo grupo Novos Baianos no disco Acabou Chorare (1972). “Aprendemos no ato a cantar “Brasil Pandeiro”, que veio a se tornar o carro-chefe do nosso manifesto brasileiríssimo e ao mesmo tempo universal: Acabou Chorare”, disse Moraes Moreira na introdução da biografia escrita por Gonçalo Junior.
 

Tem francesa no morro

Engenhosa canção que misturava francês com gírias dos morros cariocas. Letra engraçada que colocava uma francesa chique num morro da cidade. A francesa se via obrigada a manter contato com as morenas e malandros, que aprendiam ou copiavam seu fraseado.
 

Good bye, boy

Crítica bem-humorada contra o hábito de pronunciar expressões em inglês. Cantada por Carmen Miranda no ano de 1931 numa apresentação na rádio carioca Mayrink Veiga.


Fonte: Quem Samba tem Alegria (Gonçalo Junior)

 

Sons sem mistério

O compositor e outros representantes da música brasileira são temas da programação do Centro de Pesquisa e Formação

No mês de julho, o compositor Assis Valente foi tema do bate-papo conduzido pelo jornalista Gonçalo Junior, dando sequência à programação de música brasileira do Centro de Pesquisa e Formação (CPF), que continua durante o mês de agosto.

No dia 5 de agosto a professora da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP) Mônica do Amaral apresenta a obra O Hip Hop e as Diásporas Africanas na Modernidade (Alameda Editorial, 2015), que aborda os desdobramentos, de natureza estética e política, das diásporas africanas em diversas partes do mundo, a partir de diferentes campos do conhecimento, envolvendo desde a filosofia, a sociologia, a antropologia, a etnomusicologia e a educação.

De 6 de agosto a 3 de setembro, o docente do Departamento de Música do Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) Paulo Tiné ministra o curso Arranjo e Harmonia em Canções e Trilhas Musicais.

No dia 18, o pesquisador do núcleo Diversitas (USP), Fabio Nunes da Silva, media o encontro “Etnomúsica Brasileira: Tecnologia em Arranjos e Composições”, que tem como objetivo apresentar trabalhos musicais em que se reconhecem elementos das raízes da música brasileira e as tecnologias atuais.