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Força da palavra

Foto: Renato Parada
Foto: Renato Parada

Força da palavra

por Lira Neto


Escritor, biógrafo e jornalista, Lira Neto nasceu em Fortaleza em 1963 e desde 2012 mora em São Paulo. É autor de, entre outras obras, Getúlio, biografia publicada em três volumes (Companhia das Letras, 2012, 2013 e 2014), Padre Cícero: Poder, Fé e Guerra no Sertão (Companhia das Letras, 2009), Maysa: Só numa Multidão de Amores (Globo, 2007), O Inimigo do Rei: Uma Biografia de José de Alencar (Globo, 2006) e Castello: A Marcha para a Ditadura (Contexto, 2004). Ganhou quatro vezes o Prêmio Jabuti de Literatura (2007, 2010, 2013 e 2014) e uma vez o Prêmio da Associação Paulista de Críticos de Arte (2014), na categoria Biografia. A seguir, os melhores trechos do depoimento de Lira, no qual ele fala sobre pesquisa, escrita biográfica e os pontos de contato entre jornalismo e história.
 

Lira Neto esteve presente na reunião do Conselho Editorial da Revista E no dia 9 de junho de 2016

Jornalismo

Sou jornalista por formação. Deixei as redações em 2001 e tenho eventualmente colaborado com revistas e jornais, mas minha dedicação hoje é quase totalmente exclusiva aos livros que escrevo. Me incomodava profundamente a dupla pressão que se exerce sobre esse ofício: a pressão do tempo e a pressão do espaço. Cada vez havia menos tempo para apurar uma matéria e menos espaço para escrevê-la. Eu queria fazer jornalismo, mas procurava um outro suporte que não o jornal.

Foi quando veio a ideia de escrever livros, continuando com meu ofício de repórter, mas com cinco anos para apurar uma pauta e muitas páginas para escrever. Acho que ainda hoje sou essencialmente um repórter. Os meus livros são grandes reportagens; só que, em vez de fazer reportagens sobre o cotidiano e o tempo presente, eu faço sobre o passado. Sou um repórter do passado, e consegui juntar duas grandes paixões, o jornalismo e a história.

Personagens

Sempre digo que são os personagens contraditórios que me apaixonam e me fascinam. Personagens que não podem ser resumidos em uma única frase. O que me apaixona em qualquer personagem histórico é a sua capacidade de encarnar a ambiguidade natural do ser humano. No caso do Padre Cícero, essas contradições são muito explícitas. Ao mesmo tempo que ele era um líder religioso, ele também era um líder político, um homem que foi punido pela Igreja da sua época.

O que me encanta quando vou escolher um personagem para a biografia é a capacidade que esse sujeito tem ou teve ou continua tendo de mobilizar emoções. No caso do Getúlio, nenhum outro personagem da história brasileira foi tão amado e odiado ao mesmo tempo.

Existe um fio condutor em todos esses livros, algo que é o meu objeto de interesse permanente, que é o poder. Em todos os livros o poder é discutido. Mesmo na biografia da Maysa, existe outra natureza do poder. O poder da mídia, do mercado fonográfico.

Pesquisa

A fase de pesquisa de um livro biográfico tem vários momentos. O primeiro é o da pesquisa bibliográfica inicial, lendo tudo o que já se escreveu de relevante sobre o assunto. O segundo é, concomitantemente, ir em busca de fontes documentais primárias e entrevistar possíveis pessoas que tenham convivido de forma direta ou indireta com aquele assunto.

O cuidado que você tem que ter com a fonte oral é que a memória é seletiva e construída. Também é preciso entender que o mito não necessariamente é uma mentira. O mito serve para você explicar determinadas concepções de determinados protagonistas. A fonte oral serve também para isso, mas você nunca pode tomar nenhuma fonte, seja oral ou escrita, como verdade. Toda fonte, toda informação, é produzida com determinado interesse. A fonte oral passa pelo mesmo critério de crivo de qualquer fonte documental.

Ser biógrafo

Assim como toda memória é construída, toda reconstituição de qualquer coisa que a gente chama de fato é também uma reconstrução. O fato não existe por si só, ele só existe a partir de determinado olhar e é filtrado a partir da subjetividade. Qualquer reconstituição histórica é uma reconstrução e não o fato em si. O biógrafo também é atravessado pela subjetividade, e qualquer pessoa que utilizasse os mesmos documentos que utilizei poderia construir uma narrativa absolutamente diferente.

Boa parte da pesquisa fica de fora de uma biografia, então a escolha do que entra já tem o meu tom. Os documentos não falam por si, eles carecem de interpretação, e os mesmos documentos podem produzir vários olhares. Não há nenhuma ficção em uma biografia. Eu não permito que a minha imaginação preencha lacunas ou deficiências da minha apuração.

Palavra

É possível acreditar na força da palavra escrita mesmo nessa era dominada pela tecnologia, pela imagem e pela desinformação. Por isso sempre fui do impresso e nunca me aventurei a fazer jornalismo em outra área.

Eu acredito mais do que tudo na palavra. A palavra é a minha ferramenta básica de trabalho e acho que qualquer pessoa que trabalha com comunicação tem que ter essa consciência, o cuidado com a palavra. É isso que faz a diferença num mundo onde as informações são tão esparsas.

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