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Envelhecer em São Paulo

Ilustração: Marcos Garuti
Ilustração: Marcos Garuti

Envelhecer em São Paulo

A população paulistana vem envelhecendo de forma acelerada: enquanto em 1980, as pessoas idosas representavam 6,33% dos habitantes da cidade, no Censo de 2010 esse número aumentou para 11,89% (dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE). Como é envelhecer em São Paulo, metrópole de 12 milhões de habitantes que possui, no mesmo espaço, tanto riquezas e diversidade cultural quanto precariedades e desigualdade no acesso aos recursos, espaços e serviços? Analisam o tema a professora da graduação e pós-graduação em Gerontologia da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo Bibiana Graeff e a coordenadora e docente do mestrado em Gerontologia da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Beltrina Côrte.


Políticas de envelhecimento

por Bibiana Graeff

“São Paulo envelhece a gotas de chuva [...]”.
Gero Camilo


Como é envelhecer em São Paulo, metrópole de 12 milhões de habitantes que concentra tanto riquezas e diversidade cultural quanto precariedades e desigualdade no acesso aos recursos, espaços e serviços? O envelhecimento, para o ser humano, é um processo de perdas e ganhos ao longo da vida. A qualidade e o ritmo das transformações desse processo são determinados por diversas variáveis, inclusive socioeconômicas, culturais e ambientais. Assim como é preferível falar em velhices, haja vista a notável heterogeneidade que marca essa etapa da vida, vale destacar a multiplicidade das formas de envelhecer. Envelhecer em São Paulo até pode ser, para alguns, como um longo rio tranquilo (apesar de poluído); mas, para uma maioria, parece mais uma árdua travessia, entre inundações e escassez de água, a depender das condições, projetos e expectativas, bem como do acesso a redes de apoio, recursos, bens e serviços que os indivíduos e grupos podem ter. Em função da amplitude do tema, opto por ilustrar essa breve reflexão pelo envelhecer em São Paulo na fase da velhice, que, pela lei brasileira, começa aos 60 anos de idade. Em São Paulo, onde a população vem envelhecendo de forma acelerada, as famílias, a sociedade e o Estado, que têm o dever constitucional de amparar o idoso, estão preparados ou vêm se preparando para essa transição demográfica?

Sucedem-se, na Gerontologia, campo de estudos interdisciplinares sobre envelhecimento e velhice, as propostas conceituais sobre o bom envelhecer. Envelhecimento bem-sucedido, envelhecimento saudável ou envelhecimento ativo são algumas dessas formulações. Este último, por exemplo, é tido como o processo determinado pelas oportunidades de saúde, de aprendizagem ao longo da vida, de participação e de segurança/proteção. A lei brasileira e o Direito Internacional também tratam do envelhecimento como direito fundamental. Segundo o Estatuto do Idoso (lei 10.743 de 1/10/2003), o envelhecimento é um direito personalíssimo e sua proteção, um direito social (art. 8). Portanto, o Estado deve efetivar políticas que “permitam um envelhecimento saudável e em condições de dignidade” (Estatuto do Idoso, art. 9o). Na Convenção Interamericana dos Direitos Humanos dos Idosos (CIDHI) (assinada no Brasil em 15/6/2015, mas ainda não ratificada), relaciona-se o envelhecimento ativo e saudável com “o objetivo de ampliar a esperança de vida saudável e a qualidade de vida de todos os indivíduos na velhice e permitir-lhes assim seguir contribuindo ativamente para suas famílias, amigos, comunidades e nações” (CIDHI, art. 2o). Se as alterações relacionadas ao envelhecimento se associam “com interações dinâmicas e permanentes entre o sujeito e seu meio” (CIDHI, art. 2o), seria São Paulo um meio favorável ao envelhecimento ativo?

No Sudeste do país, 92,6% das pessoas idosas vivem em meio urbano (IBGE, Síntese de Indicadores Sociais, 2014). No Censo demográfico de 2010 (IBGE), São Paulo aparece como a quinta capital com maior percentual de idosos em sua população, a única com mais de um milhão de pessoas idosas (incluindo 5.776 centenários!). Há significativa diferença entre os percentuais de idosos em distritos como Alto de Pinheiros (22,76%) e Jardim Paulista (22,25%), similares aos de países ditos desenvolvidos, e os de distritos como Anhanguera (4,67%) e Jardim Ângela (5,89%), próximos aos de países menos desenvolvidos. Se em bairros mais pobres, sobressaem dificuldades financeiras e de acesso a serviços básicos, em distritos mais ricos, como Pinheiros, a vulnerabilidade dos velhos pode estar mais ligada à solidão ou ao isolamento, lembrando que este é fator de risco mesmo em países mais ricos, como demonstra o exemplo da morte de 30 mil idosos em uma onda de calor no verão europeu de 2003. Em São Paulo, 186.995 idosos residem sozinhos, 5,23% dos domicílios particulares permanentes (IBGE, 2010). Esse percentual só é mais elevado em Porto Alegre e no Rio de Janeiro. Nesse aspecto, as diferenças entre distritos como Jardim Paulista (11,74%) ou Consolação (11,58%) e Anhanguera (1,78%) ou Jardim Ângela (2,48%) também são significativas.

Há 16 anos, um estudo (SABE) vem acompanhando as condições de vida e de saúde da população idosa na cidade de São Paulo, revelando condições de saúde preocupantes (http://www.fsp.usp.br/sabe/). A conquista de maior longevidade deve se acompanhar por melhorias na qualidade de vida na velhice.

Na capital paulista, há diversos serviços especializados para o idoso, inclusive alguns ainda não implementados em algumas capitais, como Delegacias do Idoso e Centros de Acolhida para idosos em situação de rua. O primeiro Centro-Dia do município – onde idosos recebem cuidados e retornam aos lares no fim do dia, mantendo os vínculos familiares – foi enfim inaugurado em 2015. Embora exista um leque diversificado de serviços, há graves insuficiências em termos quantitativos (como a falta de vagas em instituições de longa permanência) e em termos qualitativos (como a ausência de capacitação gerontológica). Quanto às políticas públicas, não obstante o Grande Conselho Municipal do Idoso, instituído em 1992, seja um dos pioneiros no Brasil, até hoje não foi implantado o Fundo Municipal do Idoso, mecanismo de financiamento de ações de promoção dos direitos do idoso, crucial para o fortalecimento desse órgão participativo. Nesse aspecto, o município fica atrás de cidades como Porto Alegre e Florianópolis, onde os fundos já vêm funcionando.

São inúmeras as transformações necessárias para que São Paulo seja mais inclusiva e acessível para todas as idades, distintas condições físicas, mentais, intelectuais, sensoriais ou ainda socioeconômicas. Não se trata apenas de barreiras físicas (calçadas ou ruas esburacadas), mas também comunicacionais, sociais ou atitudinais (precariedade do transporte público ou aceleração e impaciência no trânsito). É preciso ouvir o cidadão para a superação dessas barreiras, o que é uma das premissas do programa Cidade Amiga do Idoso, da Organização Mundial da Saúde, que visa à promoção do envelhecimento ativo. Pesquisas inspiradas no programa têm sido desenvolvidas em bairros como a Vila Clementino, a Mooca e o Brás. Resultados preliminares no Brás revelaram que os participantes associavam a presença de migrantes internacionais a vários problemas do bairro, como a insegurança ou a alta dos aluguéis. A construção desses discursos parece ignorar tanto o macro (globalização, exploração do capital, insuficiência de políticas públicas) quanto o micro (a condição de migrante dos próprios participantes), resultando em generalizações e discriminações que condenam a presença do outro, do estrangeiro.

Em São Paulo, qualquer política de envelhecimento deve considerar a questão migratória e suas implicações em termos de projetos de vida, inclusão e redes de apoio. Quase um terço (31%) dos habitantes do município não são paulistanos (IBGE, 2010); 23,08% são nascidos em outro estado da federação, percentual bastante superior ao nacional (14,48%). A presença de imigrantes internacionais também é considerável em comparação a outras capitais brasileiras; em uma das pesquisas do SABE (cf. supra), de 2.143 idosos participantes, 8,7% não eram brasileiros. Na velhice, alguns migrantes podem encontrar dificuldades específicas, por exemplo, se a sua rede de apoio é reduzida. Para os que migram em idade avançada, pode haver dificuldades de inclusão, como o aprendizado da língua. As migrações têm aumentado entre a população idosa; enquanto alguns migram voluntariamente, outros, por necessidade. Envelhecer em São Paulo, para quem um dia escolheu ou foi levado a morar na cidade, implica uma constante possibilidade,¿necessidade ou desejo de retorno. Aliás, desde a década de 1980, o saldo migratório geral do município mantém-se negativo (IBGE, 2010), com mais emigrantes do que imigrantes.

O custo de vida em São Paulo pode se tornar inviável para aposentados e pensionistas ou idosos que necessitem trabalhar, já que o acesso ao trabalho para os mais velhos continua restrito. A hegemonia do capital imobiliário no município atinge também os idosos; processos de gentrificação expulsam antigos moradores para regiões mais periféricas. A isenção de IPTU para aposentados e pensionistas de menor renda, prevista na legislação municipal, não é suficiente para conter esses processos e formas de exclusão; urge a ampliação dos programas de aluguel social e a transformação de prédios centrais ociosos em moradia social.

As transformações para que se possa envelhecer em São Paulo de forma digna começam pela educação da população sobre seus direitos, envelhecimento e velhice. São Paulo (USP) e São Carlos (UFSCAR) são os únicos municípios brasileiros onde existem cursos de graduação, além dos de pós-graduação, em Gerontologia. Com sua visão holística, gerontólogos podem contribuir para o preparo para o envelhecimento e o alcance de maior intersetorialidade na atenção ao idoso.

É grande a desigualdade no envelhecer das diversas realidades paulistanas. O envelhecimento com dignidade para todos dependerá menos do indivíduo, seus méritos e êxitos em cuidar da saúde e de outras questões, do que das condições e direitos conquistados e construídos coletivamente.
 

Bibiana Graeff é professora adjunta da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo (EACH/USP), membro do corpo docente do Programa de Pós-Graduação em Gerontologia da EACH/USP e lidera o grupo de pesquisa Direitos Humanos, Envelhecimento e Velhice.

 

Metaphorai, tour pela (c)idade

por Beltrina Côrte

Metaphorai é o nome dado aos transportes coletivos da Atenas contemporânea, diz Michel de Certeau, em The Practice of Everyday Life (1984), acrescentando que cada história é uma prática espacial e que toda história é uma metáfora. Se histórias e metáforas são transportes coletivos que me levam à longevidade, é por meio deles que percorro a metrópole que me acolheu no final da década de 1960, quando São Paulo era considerada a Nova York tupiniquim. Todos os dias eles, assim como este relato – que é meu transporte coletivo sobre o longeviver na metrópole –, atravessam e organizam os lugares, fazendo itinerários. São percursos de espaços que começam quando ainda era menina.

Descobri a metrópole na minha infância, ao migrar para o Brasil junto com minha mãe e mais cinco irmãos. Nasci em uma vila muito pequena (Ribeira Brava) na Ilha da Madeira, Portugal, onde todos os cursos, do primeiro ao quarto ano, funcionavam em uma única sala de aula, onde a vizinhança inteira se conhecia, e onde o único ônibus para a cidade, Funchal, levava cerca de três horas, quando hoje leva cerca de 20 minutos. Os trajetos, quase todos, eram feitos a pé, presos ao fôlego, à lentidão.

A primeira parada da minha metaphorai foi em Lisboa, cidade grande, de pedra, que me seduziu à primeira vista.

Foi ali que descobri um dos primeiros transportes coletivos urbanos, o elevador, peça central na formação de uma metrópole, mas também na consolidação da sociedade sedentária em que vivemos. Hoje, peça central de acessibilidade, obrigatória, para quem tem mobilidade reduzida. Nossa brincadeira, na época, era subir e descer. Era mágico. Subir e descer, estando parada. Ver da janela do hotel vários prédios (e ainda não eram espigões), ver um formigueiro de gente e ouvir buzinas de carros. Alguns elementos da metrópole me foram apresentados ali.

A aterrissagem no Brasil se deu no aeroporto internacional de Viracopos, em outubro de 1969. Dali até a Baixada Santista (SP), o trajeto foi longo demais e cheio de paisagens jamais vistas, grandes e longas estradas, avenidas, favelas, prédios, carros, concreto e muita gente. Da janela da minha metaphorai eu ia incorporando emoções, sentimentos, já que meu corpo, como referência de base, ia interpretando e construindo o sentido de minha subjetividade, parte essencial do meu longeviver. Para explicar melhor o que tento descrever, tomo emprestado O Erro de Descartes (1996), de meu patrício António R. Damásio, para dizer que: a) o cérebro humano e o resto do corpo constituem um organismo indissociável; b) a interação não é nem exclusivamente do corpo nem do cérebro; c) as operações fisiológicas que denominamos por “mente” derivam desse conjunto estrutural e funcional e não apenas do cérebro.

Hoje sei que nessa travessia percebia que meu corpo, referência cultural básica de aferição, funcionava como um sistema de captação e de vozes. Sistemas que foram se transformando, assim como eu, a cidade e a metrópole. Da infância à juventude, à vida adulta e à porta da maturidade. Hoje, recordo a mim mesma e aos outros a complexidade, fragilidade, finitude e singularidade que nos caracterizam.

Como estrangeira em sua própria (c)idade, debrucei-me sobre a comunicação para nela perceber a São Paulo histórica, a megalópole, o espaço histórico/lembrança, o espaço velocidade/passagem, a cidade em permanente mudança, polimórfica, a cidade vivida, a (c)idade que a mídia me comunica. Ora, diante de uma (c)idade fragmentada, volátil e em permanente mutação, faço a pergunta feita nos encontros imaginários entre Kublai Khan e Marco Polo narrados por Ítalo Calvino em As Cidades Invisíveis: o que privilegiar quanto a envelhecer em São Paulo?

Se a (c)idade – como meio de comunicação – me comunicava uma São Paulo em movimento na qual fiz minha incursão e excursão... na diversidade desconexa, nos imbricamentos de signos, ritmos, estilos, linguagens, pontos, congestionamentos, i-legal(idades), violências..., imprimir forma a uma resposta é uma exigência da memória. É imprimir forma a uma construção da (c)idade, seja por meio da descrição, da linguagem ou da apresentação de um corpo em permanente mutação. Como a (c)idade é composta aleatoriamente de momentos, minha apreensão de São Paulo é parcial, fragmentada e momentânea, porque tudo nela é passageiro, veloz, finito, assim como o envelhecer que habita em mim desde quando nasci.

Para mim, a (c)idade deixa de ser um conceito geo e demográfico consolidado para se tornar símbolo da diamorfose. A cidade e a velhice são imagens construídas aleatória e permanentemente formando outras identidades, símbolos da mutação. No percurso, eu e a cidade mudamos. A cidade, como eu, não está destinada à imobilidade. Esta metáfora é mais uma contribuição ao discurso que se faz sobre ela, a (c)idade, que se repete em diferentes versões, dimensões.

Não se tenta digerir tudo o que a (c)idade apresenta, mas selecionar o que degustar... Nesta metaphorai projetei o passado para o presente, retratando a (c)idade que assume outras configurações, percepções, narrativas, pulsações, memórias, de corpos em movimento e em reconhecimento, nos e sobre os quais estão sendo continuamente inscritos sentidos e significados.

Essas inscrições nos corpos – urbano e humano – nos lembram o que Milan Kundera em A Lentidão (1995) já dizia: que existe um vínculo secreto entre a lentidão e a memória, entre a velocidade e o esquecimento. Com a passagem dos anos entende-se claramente que “o grau de lentidão é diretamente proporcional à intensidade da memória”, assim como “o grau de velocidade é diretamente proporcional à intensidade do esquecimento” e que ambos estão intrinsecamente ligados ao envelhecer na metrópole.


Beltrina Côrte é jornalista, com especialização e mestrado em Planejamento e Administração do Desenvolvimento Regional e doutorado em Ciências da Comunicação. Atualmente é coordenadora e docente do mestrado em Gerontologia da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e editora do site www.portaldoenvelhecimento.com


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