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Novo Feminismo

ilustração: Marcos Garuti
ilustração: Marcos Garuti


 

FEMINISMO HOJE

Apesar de o feminismo ter sempre buscado uma sociedade em que o gênero não seja utilizado para conceder privilégios ou legitimar opressão, o movimento mudou ao longo dos anos. Seria possível dizer que há hoje diversos tipos de feminismo? Quais os novos espaços de militância? Discutem o tema a pesquisadora e professora de Sociologia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) Maria Lygia Quartim de Moraes e a pesquisadora e mestranda em Filosofia Política Djamila Ribeiro.



PROJETO LIBERTADOR
por MARIA LYGIA QUARTIM DE MORAES

Vou definir o feminismo como uma resposta a um sintoma. O sintoma é o mal-estar que muitas mulheres sentem com respeito à maneira pela qual são tratadas, em casa, nos locais públicos e na mídia. Uma das maiores necessidades subjetivas que temos é de sermos respeitadas. E, em consequência desse desrespeito generalizado, as mulheres já nascem com desvantagem em termos de autoestima e segurança.

Assim, o feminismo é, antes de mais nada, uma tomada de consciência. Parar para reconhecer o mal-estar, para refletir sobre ele de maneira a poder agir. E se dar conta de que esse mal-estar tem várias origens: no trabalho é o salário, a falta de direitos, a falta de perspectiva, como também pode ser o assédio sexual, as piadas de mau gosto e outras situações em que basta ser mulher para despertar certo tipo de desrespeito masculino.

O feminismo diz respeito a todas as mulheres, mas existem mulheres antifeministas assim como muitos homens feministas. Se o feminismo tem como objetivo a melhoria da condição da mulher, por que ser antifeminista? Algumas mulheres não gostam da importância que as feministas dão ao fato de a mulher ter autonomia econômica, ter condições de pagar suas contas, de não depender financeiramente de ninguém, marido, pai, mãe.

Foi o que aconteceu com respeito ao divórcio, num país em que as mulheres das classes médias e altas não trabalhavam – e os pobres tinham vergonha de que sua mulher tivesse de trabalhar, pois essa era a comprovação de que não eram os provedores da casa, função masculina. A dependência das mulheres em relação aos homens fazia com que temessem as consequências do divórcio sobre seu padrão de vida – o temor era reforçado pelo fato de que a igreja católica sempre se opôs a esse tipo de rompimento. Os homens, por sua vez, não gostam de abrir mão de seus privilégios de gênero.

É preciso muito tempo para os preconceitos antigos serem superados. E o conhecimento é o primeiro passo quando precisamos comprovar nossos argumentos e lutar para sermos ouvidas. No nosso país, foram as mulheres com acesso à educação que iniciaram, no começo do século passado, movimentos pelo direito ao voto e à educação universitária. Elas não punham em questão o poder masculino, apenas exigiam algumas concessões iniciais.

AS DIVERSAS CORRENTES FEMINISTAS NO BRASIL DE HOJE

O movimento feminista sempre teve caráter plural, dadas as diferenças de classe, cor, etnia e entre homossexuais e heterossexuais. O movimento lésbico e o feminismo negro foram os primeiros a se autonomizarem. O movimento dos trabalhadores rurais, que sempre foi muito ativo no país, ganhou projeção internacional, com o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST). Também as mulheres das sociedades tribais se uniram em movimentos pelos seus direitos.

Mais recentemente, o ecofeminismo ganhou projeção, com sua proposta de novas formas de produção econômica que evitem agrotóxicos e práticas destruidoras do meio ambiente. O termo Ecofeminismo foi criado em 1974 pela feminista francesa Franc¸oise d’Eaubonne em seu trabalho O Feminismo ou a Morte. Em termos gerais, o movimento busca uma opção produtiva às práticas capitalistas. Os movimentos de mulheres dos povos das florestas em vários países da América do Sul desenvolvem cooperativas de camponesas que produzem de forma artesanal, respeitando a natureza.

Em janeiro de 2011 ocorreram diversos casos de violência sexual contra estudantes na Universidade de Toronto, no Canadá. Um policial machista observou que as mulheres deveriam parar de se vestir como vadias (sluts) para não serem vítimas. Em resposta a tamanho absurdo foi convocada uma manifestação nas ruas de Toronto, dando origem ao movimento “marcha das vadias”. O movimento estendeu-se internacionalmente, usando o slogan “mexeu com uma, mexeu com todas”. No Brasil, a marcha das vadias ocorreu em várias cidades, pois culpar a vítima pela violência sofrida é inadmissível. Como quer que eu me vista, aonde quer que eu vá: sim significa sim e não significa não.


IMPASSES FEMINISTAS

Não obstante as indiscutíveis conquistas dos movimentos de mulheres, muitas são as questões ainda pendentes. Uma delas diz respeito à questão dos direitos reprodutivos e, especialmente, do direito à interrupção de uma gravidez não desejada. Na maior parte dos países ocidentais este é um direito adquirido a partir dos anos 1960. Mas, no nosso continente, a honrosa exceção é o Uruguai.
No Brasil, em que existe uma grande tolerância com respeito à sexualidade e a exibição do corpo, a legislação não avançou nos últimos 40 anos. Ao contrário, a repressão a médicos e pacientes suspeitas de aborto tem se tornado mais frequente. Uma das explicações mais evidentes é a crescente influência das diversas igrejas, especialmente das igrejas evangélicas.

Finalmente, não obstante termos uma mulher na Presidência da República, a participação das mulheres nos partidos e nas instituições de comando da política e do Judiciário é muito reduzida. Assim, hoje coexistem vários tipos de feminismo: temos o feminismo dos conselhos estaduais, composto por funcionárias públicas escolhidas por critérios políticos; um feminismo de grupos nacionais e estrangeiros que participam dos Congressos Feministas; o feminismo das militantes sem terra; o feminismo das mulheres negras; o feminismo acadêmico e assim por diante. E também os blogs e os grupos atuando na internet.

Uma enorme diversidade, representando mulheres de classes sociais, etnias, idades, definições sexuais diferentes. O que é positivo por incluir a diversidade, mas às vezes dificulta o estabelecimento de uma plataforma de reivindicações unitária.
Assim sendo, 40 anos após o Ano Internacional da Mulher há muito que comemorar e muito a conquistar. Pois, na verdade, não se trata apenas de ter mulheres na esfera do poder político, mas de as mulheres PODEREM no quotidiano andar nas ruas sem serem importunadas; não serem discriminadas e ganhar o mesmo que os homens quando realizam trabalhos iguais. Além disso, há a necessidade de creches, de uma mais equitativa divisão do trabalho doméstico e de políticas públicas de combate a todas as formas de violência. Ou seja, ainda há muito a conquistar para que as mulheres possam desfrutar, plenamente, os direitos civis e de cidadania.


MARIA LYGIA QUARTIM DE MORAES é professora titular de Sociologia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas (IFCH/Unicamp) e Pesquisadora do Núcleo de Estudos de Gênero PAGU, da mesma universidade.


“O MOVIMENTO FEMINISTA SEMPRE TEVE CARÁTER PLURAL, DADAS AS DIFERENÇAS DE CLASSE, COR, ETNIA E ENTRE HOMOSSEXUAIS E HETEROSSEXUAIS. O QUE É POSITIVO POR INCLUIR A DIVERSIDADE, MAS ÀS VEZES DIFICULTA O ESTABELECIMENTO DE UMA PLATAFORMA DE REIVINDICAÇÕES UNITÁRIA”

 

POSTURA INCÔMODA
por DJAMILA RIBEIRO

Diferentemente do que muitos pensam, feminismo não é o contrário de machismo. Machismo é um sistema de opressão que visa conferir privilégios a homens na medida em que se negam direitos a mulheres, criam-se mecanismos que negam sua humanidade. Feminismo é justamente a luta contra esse sistema; é um movimento que busca a equidade entre os gêneros ou, como disse Amelinha Teles na introdução de Breve História do Feminismo no Brasil (Brasiliense, 1993), “falar da mulher, em termos de aspiração e projeto, rebeldia e constante busca de transformação, falar de tudo o que envolva a condição feminina, não é só uma vontade de ver essa mulher reabilitada nos planos econômico, social e cultural.

É mais do que isso. É assumir a postura incômoda de se indignar com o fenômeno histórico em que metade da humanidade se viu milenarmente excluída nas diferentes sociedades no decorrer dos tempos”. A história do movimento é dividida em três ondas. Segundo a história dominante do feminismo, no Brasil a primeira onda teve início no século 19. Em 1922, nasce a Federação Brasileira pelo Progresso Feminino, que tinha como objetivo lutar pelo sufrágio feminino e o direito ao trabalho sem a autorização do marido.

A segunda onda iniciou-se na década de 1970 e teve como pautas principais a luta pela liberdade sexual, a valorização do trabalho da mulher e a luta contra a ditadura militar. O primeiro grupo de que se tem notícia foi formado em 1972, sobretudo por professoras universitárias. A terceira onda, na década de 1990, é caracterizada pela discussão da diferença e o questionamento dos paradigmas estabelecidos nas outras ondas.

Mencionei que as três ondas foram assim caracterizadas segundo a história dominante do feminismo porque, por exemplo, na segunda onda, mulheres negras já estavam fazendo críticas em relação ao sujeito que o feminismo estaria representando, denunciando a invisibilidade das mulheres negras dentro do movimento. Costumo dizer que antes disso, ainda na primeira onda, isso já havia sido feito. Em 1851, Sojourner Truth – nome adotado a partir de 1843 por Isabella Baumfree – foi uma abolicionista afro-americana e ativista dos direitos da mulher.

Truth nasceu no cativeiro em Swartekill, Nova York. Truth, que também foi oradora, fez seu discurso mais conhecido, denominado “E não sou uma mulher?”¹, na Convenção dos Direitos da Mulher, na cidade de Akronem, em Ohio, Estados Unidos. Tal discurso, feito de improviso, foi registrado por Frances Gages, feminista e uma das autoras do grande compêndio de materiais sobre a primeira onda feminista denominado The History of Woman Suffrage. Truth já no século 19 mostrava que mulheres negras possuíam realidades diferentes e assim precisavam ser incluídas dentro de uma visão que contemplasse suas especificidades e a diversidade contida nesse ser mulher.

Por exemplo, uma das reivindicações da segunda onda, que era valorizar o trabalho da mulher, nunca foi uma reivindicação de mulheres negras/pobres. Segundo Núbia Moreira, “a relação das mulheres negras com o movimento feminista se estabelece a partir do 3º Encontro Feminista Latino-americano ocorrido em Bertioga em 1985, de onde emerge a organização atual de mulheres negras com expressão coletiva com o intuito de adquirir visibilidade política no campo feminista.

A partir daí, surgem os primeiros Coletivos de Mulheres Negras, época em que aconteceram alguns Encontros Estaduais e Nacionais de mulheres negras. A nossa compreensão é que, a partir do encontro ocorrido em Bertioga, se consolida entre as mulheres negras um discurso feminista, uma vez que em décadas anteriores havia uma rejeição por parte de algumas mulheres negras em aceitar a identidade feminista”. E isso acontecia devido ao fato de não se identificarem com um movimento até então majoritariamente branco e de classe média e pela falta de empatia em perceber que mulheres negras possuem pontos de partida diferentes, especificidades que precisam ser priorizadas.

A compreensão de que mulheres não são um grupo homogêneo passou a ser mais discutida e pensada. Como diz a feminista Sueli Carneiro, quando falamos de mulheres, precisamos sempre fazer a questão: de quais mulheres estamos falando? Universalizar as reivindicações das mulheres numa pauta comum acaba deixando de fora muitas outras mulheres.

Se a categoria mulher não é uma categoria homogênea, ou seja, se há diversas mulheres, o feminismo igualmente é diverso. Em termos de teoria feminista, há uma gama de produções por diversos enfoques. As pesquisas acadêmicas voltadas às questões feministas esforçaram-se inicialmente em “estender e reinterpretar as categorias de diversos discursos teóricos de modo a tornar as atividades e relações sociais das mulheres analiticamente visíveis no âmbito das diferentes tradições intelectuais”, segundo Sandra Harding. Além disso, seu início foi ainda marcado pelo compromisso acadêmico direcionado à causa da emancipação das mulheres. Faz-se importante ressaltar que não existe apenas um enfoque feminista. Há diversidade quanto às posições ideológicas, abordagens e perspectivas adotadas.

Hoje é maior o entendimento de que o movimento feminista contemporâneo possui um discurso múltiplo e de várias tendências; as opressões de gênero, classe social e etnia perpassam as mais diferentes sociedades ao longo dos tempos. Atualmente, o cyberativismo desempenha um papel importante por ser mais um instrumento de militância; muitas pessoas têm e terão acesso ao feminismo por meio de blogs, sites, redes sociais, e considero muito importante essa expansão e popularização.

A internet se tornou mais um espaço de luta feminista nesse sentido. Além da produção de textos e conhecimento, faz com que o repúdio a atitudes machistas possa ganhar visibilidade e facilita a organização das pessoas no combate a essas atitudes. É possível encontrar blogs e páginas sobre feminismo negro, transfeminismo; grupos que muitas vezes foram excluídos da pauta feminista conseguem se organizar e se fazer ouvir.

Esse tipo de ativismo é importante também porque ajuda a desmistificar muitas coisas em relação ao feminismo, de que o movimento prega a superioridade feminina ou quer controlar os corpos das mulheres. Importante ressaltar que o movimento propõe o questionamento sobre padrões impostos às mulheres, sobre a imposição de papéis de gênero; propõe-se a discutir e problematizar esses valores para mostrar que as opressões não são naturais ou providencialmente fixadas, mas construídas socialmente. E isso de forma alguma significa dizer que as escolhas não devem ser respeitadas.

Há projetos muito interessantes de valorização da autoestima que questionam a imposição de padrões de beleza. Em relação às mulheres negras, há páginas muito interessantes voltadas ao empoderamento estético da mulher negra, o que é de extrema importância num país como o nosso, que nega suas origens e não dá visibilidade à mulher negra de forma geral nos espaços midiáticos, além de outras que falam das necessidades específicas dessas mulheres em termos de ação política. O cyberativismo instrumentaliza a militância porque faz com que as pautas, a compreensão do que é o feminismo, alcancem um maior número de pessoas – e têm alcançado, sobretudo as mais jovens.

O feminismo hoje precisa ser interseccional, ou seja, dar importância às diversas intersecções como raça, orientação sexual, identidade de gênero, precisa incluir as diversas possibilidades de ser mulher para que realmente seja possível avançar no sentido da garantia de direitos e humanidade.
 

¹E não sou uma mulher? também é o nome do primeiro livro da teórica e feminista negra Bell Hooks, lançado em 1981 e inspirado no discurso de Truth.

DJAMILA RIBEIRO é mestranda em Filosofia Política na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) ecolunista do site da revista Carta Capital.

“A INTERNET SE TORNOU MAIS UM ESPAÇO DE LUTA FEMINISTA. ALÉM DA PRODUÇÃO DE TEXTOS E CONHECIMENTO, FAZ COM QUE O REPÚDIO A ATITUDES MACHISTAS POSSAM GANHAR VISIBILIDADE E FACILITA A ORGANIZAÇÃO DAS PESSOAS NO COMBATE A ESSAS ATITUDES”