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Cinema autoral

Crédito: Paris nos Pertence (1958), Rivette (Reprodução uniFrancefilms)
Crédito: Paris nos Pertence (1958), Rivette (Reprodução uniFrancefilms)


Ao reunir juventude e sinceridade, os criadores da Nouvelle Vague apresentaram ao mundo uma onda revolucionária na sétima arte

Ao suceder o período do cinema do Pós-Guerra (1946-1959), a Nouvelle Vague protagonizou a fase correspondente ao período moderno, iniciada nos anos 1960 e responsável por uma onda revolucionária. A sétima arte ganhou, então, um frescor de linguagem proporcionado pelo aumento das possibilidades técnicas identificadas pelas câmeras mais leves que entraram em cena e, dessa forma, aproximaram os filmes da realidade.

Estudioso do movimento, Antoine de Baecque (editor-chefe da revista Cahiers du Cinéma entre 1997 e 1999) afirma no livro Cinefilia (Cosac Naify, 2010) que a base teórica da Nouvelle Vague foi o texto Uma Certa Tendência do Cinema Francês, escrito por François Truffaut e publicado na Cahiers em 1954. A Cahiers du Cinéma era a revista na qual os jovens críticos e futuros diretores publicavam suas ideias. O objetivo era rebelar-se contra os métodos convencionais de filmagens e o cinéma du papa (cinema do papai) vigente na França até então. Das páginas das revistas saíram dois grandes nomes da escola francesa, Truffaut e Jean-Luc Godard.

Para o crítico e professor de cinema Sérgio Alpendre, a afirmação de Baecque se justifica, pois o texto implementou na revista a “política dos autores” – nos artigos da Cahiers a palavra auteur era usada para qualificar cineastas cuja obra evidenciava uma assinatura pessoal em estilo e tema. Contudo, faz uma ressalva. “Já nos anos 1920, teóricos como Louis Delluc abordavam a ideia do diretor como o maior autor de um filme. Mas o texto de Truffaut, e os que vieram depois, serviram para popularizar essa ideia, ao mesmo tempo em que batiam no cinema francês da época, que eles julgavam impessoal em sua maioria”, explica. “O conceito de autor foi exportado para outros países – nos Estados Unidos, por exemplo, Andrew Sarris o utilizou e causou barulho nos anos 1960, influenciando críticos e diretores, principalmente os oriundos das escolas de cinema.”

Os métodos e temas da Nouvelle Vague influenciaram o cinema independente norte-americano e o leste europeu, principalmente a Tchecoslováquia, que produziu uma série de filmes sobre temas contemporâneos tendo como recurso a técnica do cinéma vérité (cinema verdade), contexto no qual surgiu o diretor naturalizado norte-americano Milos Forman.

No Brasil, é reconhecida a influência dos modos de produção da escola no Cinema Novo, que também se beneficiou dos métodos de filmagens não convencionais da câmera na mão e do improviso para criar seus filmes, em especial o diretor baiano Glauber Rocha, que defendia uma nova maneira de fazer cinema no país.


Estreias marcantes

Entre 1959 e 1960, o calendário do cinema francês foi emblemático. Filmes icônicos estrearam e trouxeram à luz os trabalhos dos idealistas e jovens cineastas: Jean-Luc Godard, com Acossado; François Truffaut, com Os Incompreendidos; Alain Resnais, com Hiroshima, Meu Amor; Eric Rohmer, com O Signo do Leão; Jacques Rivette, com Paris nos Pertence; e Claude Chabrol, com Nas Garras do Vício.

Para o crítico de cinema Franthiesco Ballerini, o que reunia fortemente esse grupo de jovens era “a vontade de renovar um cinema francês que, à época, estava fraco, repetitivo, artificial e teatral. Libertos de regras engessantes, deram ao mundo o cinema mais inventivo até hoje”, opina.


Godard e Truffaut

O primeiro de família rica, o segundo de origem humilde, que costumava sair de casa às escondidas para ir ao cinema, enquanto os pais estavam no teatro. Truffaut dizia que o contato com os filmes constituía um aprendizado, era fã de Hitchcock e do italiano Roberto Rossellini, do qual foi assistente de direção. Já Godard dizia que o cinema devia tudo ao diretor de Cidadão Kane, Orson Welles, e admirava Fritz Lang. Entre muitos pontos compartilhados, tinham Jean Renoir como mestre comum.

Truffaut e Godard vivenciaram o cinema em toda a sua plenitude e ajudaram a iconizar a Nouvelle Vague. Passaram pelo auge e pela crise de público, que não via mais a revolução francesa como novidade. Tempo de Guerra (Godard, 1963) foi um fracasso na época. Anos depois, a censura atacou o filme A Religiosa (Jacques Rivette, 1966) e, politicamente, os cineastas se juntaram a estudantes e grevistas, voltando às ruas em maio de 1968, na série de protestos que enfraqueceu o governo do presidente da França, Charles De Gaulle. Ballerini diz que depois da Nouvelle Vague nunca houve uma corrente cinematográfica tão poderosa. “Mas isso não quer dizer que o cinema mundial esteja pior. Ao contrário, está tecnicamente mais sofisticado e as condições de produção estão mais democráticas”, complementa.

O cinema também os afastou. Godard seguiu um caminho voltado ao cinema político e engajado, criticando a vertente clássica. Truffaut optou por obras que não preconizavam o envolvimento da sétima arte com a política. Por meio de ofensas trocadas publicamente, os dois romperam e seguiram caminhos profissionais e pessoais diferentes, enquanto a Nouvelle Vague já havia se transmutado em cinematografias ao redor do mundo. Juventude, câmera na mão, improviso, irreverência e autorreflexão.



Pickpocket (1959), Bresson (Reprodução New Yorker Films)



Acossado (1960), Godard (Reprodução uniFrancefilms)



Paris nos Pertence (1958), Rivette (Reprodução uniFrancefilms)



Hiroshima, meu Amor (1962), Rohmer (Divulgação)



Jules & Jim (1962), Truffaut (Reprodução uniFrancefilms)



Os Incompreedidos (1959), Truffaut (Reprodução uniFrancefilms)



Teoria e prática

Cursos livres, mostras e workshop aproximam o público do pensamento cinematográfico e de seus principais realizadores

No decorrer de 2015, o Sesc Consolação dará continuidade ao Cinerama, ciclo de encontros mensais que trarão profissionais representativos do audiovisual para compartilhar teoria e prática do cinema, por meio de cursos livres, mostras e workshop em cinema e vídeo. Em 2014, foram realizados os cursos “Mitos Chineses: A Linguagem de Hark e To”, “A Realidade Cyberpunk e os Subgêneros da Ficção-Científica”, entre outros.

Em janeiro foi a vez do cultuado movimento francês da Nouvelle Vague. Num total de seis aulas ministradas pelo professor e crítico de cinema Sérgio Alpendre, foram abordados temas como a influência do cinema americano nos cinéfilos franceses do pós-guerra e os cineastas que surgiram numa geração posterior, passando pelos jovens (críticos da revista Cahiers du Cinéma), que se diziam Hitchcock/hawksianos, e depois chegariam aos seus primeiros filmes, tais como Godard, Truffaut, Chabrol, Rivette, Rohmer, além de outros das diversas tendências que compunham a Nouvelle Vague, como Resnais, Varda e Rozier. Por meio de trechos de filmes, leituras de textos e análises cinematográficas, o curso foi uma base importante para o entendimento de como e por que o cinema moderno nunca mais foi o mesmo depois da Nouvelle Vague.

A escola francesa só vê a identificação dos estudantes e admiradores de cinema aumentar com o passar do tempo. Na visão de Alpendre, é importante ter em mente para compreender as nuances teóricas e técnicas do movimento o quanto os jovens diretores se inspiraram no cinema clássico americano. “Todos eles, como críticos, aprenderam muito vendo cinema clássico americano e, de certa forma, esse aprendizado pode ser percebido nos principais filmes da Nouvelle Vague”, afirma. “Há ainda a reapropriação de vários cineastas que vieram depois de alguns procedimentos muito realizados nos anos 1960. Bastante influenciados pela Nouvelle Vague, diretores como Hal Hartley, Philippe Garrel, Wes Anderson e Martin Scorsese contribuíram para que a escola continue sendo vista e estudada.”