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Critério para gastar

 

Nova lei promete punir desmandos com o dinheiro público

A Lei de Responsabilidade Fiscal, que visa evitar o mau uso do dinheiro público e pune o infrator com perda de cargo, multa e até prisão, foi o tema dos debates do Conselho de Estudos Jurídicos (CEJ) da Federação do Comércio do Estado de São Paulo (FCESP), presidido por Ives Gandra da Silva Martins, nos dias 8 de novembro e 5 de dezembro de 2000.

IVES GANDRA – Como a lei fiscal foi atrelada à lei penal, e o debate deve ser feito sobre as duas legislações, convidamos dois professores do conselho para tratar, cada um, de sua especialidade. Inicialmente, o professor Francisco de Assis Alves discorrerá sobre a lei 101 (de responsabilidade fiscal).

FRANCISCO DE ASSIS ALVES – Editada em outubro passado, a Lei de Responsabilidade Fiscal se originou da vontade da sociedade brasileira de dar um fim aos gastos públicos irresponsáveis. É algo inédito e muito sério. O governo se sensibilizou com o clamor social e preparou uma lei de impacto, que dispõe sobre várias matérias. Enfrenta problemas de ordem contábil e do direito administrativo, econômico, financeiro e constitucional. Sua abrangência é bastante curiosa: os governantes da União, dos estados, dos municípios e do Distrito Federal, e os poderes Legislativo, Executivo e Judiciário. Inclui ainda o Ministério Público e o Tribunal de Contas. Esses são os destinatários mais visados. A lei também alcança a administração indireta e ainda define que os fundos, as autarquias, a empresa estatal dependente e as fundações estão sujeitas às suas regras. Traz esta expressão nova para o nosso direito – empresa estatal dependente – e a define: é a empresa, ou fundação, cujos controladores entram com recursos para o custeio com despesas de pessoal, capital, etc. As fundações públicas também estão sujeitas a ela.

Ora, qual é o seu grande objetivo? Estabelecer normas sobre as finanças públicas. Para isso, os governantes terão de agir de forma planejada e transparente. Vou fazer uma síntese da lei 101, destacando os artigos mais importantes. O 15, por exemplo, diz que não se pode fazer despesa pública nem assumir obrigações se não houver uma fonte de recursos previamente definida. Além disso, as despesas deverão se adaptar à lei orçamentária anual e ser compatíveis com a lei de diretrizes orçamentárias. Se esses pré-requisitos não forem atendidos, o governante estará sujeito às penalidades da lei 10.028. Ora, imaginem as conseqüências disso.

O artigo 18 define a despesa com pessoal: todos os gastos relativos a pagamentos de salários, vencimentos, proventos de aposentadoria, horas extras e tudo o que integra os vencimentos do servidor público. Isso vai constituir uma base de cálculo que não poderá passar dos percentuais estabelecidos pelo artigo 19. O artigo 18 determina e limita os percentuais de que cada ente federativo dispõe para gastar com pessoal: a União, 50%, os estados e municípios, 60%. Onde esse percentual deverá ser aplicado? Qual é sua base de cálculo? São as contribuições tributárias, patrimoniais, agropecuárias e industriais. Essas arrecadações formarão a chamada receita corrente líquida.

O artigo 20 faz a redistribuição: os 50% da União serão distribuídos em 2,5% para o Legislativo e o Tribunal de Contas, 6% para o Judiciário, 40,9% para o Executivo e 0,6% para o Ministério Público. Na esfera estadual, os 60% poderão ser gastos da seguinte forma: 3% com o Legislativo e os Tribunais de Contas, 6% com o Judiciário, 49% com o Executivo e 2% com o Ministério Público. Esses artigos são a essência da lei. Sem as regras estabelecidas por eles, não haveria nenhuma possibilidade de que ela atingisse seus propósitos. Vejam por quê: se pularmos do artigo 20 para o 25, veremos que este último cuida das transferências voluntárias. A União poderá transferir para estados e municípios recursos de seu quinhão, com o propósito de dar assistência a eles. Esse artigo, sim, é de duvidosa constitucionalidade; cria um sério risco de a União fazer alguma negociata política com os estados. Não vi no artigo 15 um critério claro e objetivo que a União deva adotar para atender este ou aquele estado.

O artigo 25, que cuida dessa transferência voluntária, não tem nada a ver com o 64, que trata da assistência técnica da União aos municípios (os estados não estão incluídos) para que possam se adaptar à nova legislação. Não vejo, como outros juristas, de que modo esse auxílio possa acarretar uma negociação política.

Vamos falar do artigo 28, que prevê o socorro do poder público às instituições financeiras nacionais. Socorrer é a expressão usada. Não é admissível que a Lei de Responsabilidade Fiscal, que tem propósitos tão avançados, insira uma disposição como essa. Isso é assunto a ser tratado pela lei do sistema financeiro. Não é possível estar previsto em lei que, se uma instituição financeira se encontrar em estado de pré-insolvência, deva ser socorrida pelo poder público. Melhor seria dizer que ela poderia obter empréstimo do Banco Central.

Vamos saltar agora para o artigo 54, que dispõe sobre o relatório de gestão fiscal – uma das criações inteligentes da lei, apesar de seus perigos. O relatório deverá conter todos os gastos que o dirigente público fez em sua gestão e ser publicado no Diário Oficial. Será avaliado pelo Tribunal de Contas, que emitirá seu parecer.

No artigo 67, a lei cuida do chamado Conselho de Gestão Fiscal, formado por representantes da sociedade, do Ministério Público e de vários outros setores. Parece-me que esse conselho não vai passar de um órgão burocrático inteiramente dispensável. Não há necessidade dele, porque as competências para fiscalizar os atos dos governantes já estão muito bem distribuídas ao longo da lei, sendo que o Tribunal de Contas alargou sua competência fiscalizatória em relação aos órgãos governamentais e ao Ministério Público.

Como um todo, a Lei de Responsabilidade Fiscal é moralizadora e tem bons propósitos.

IVES GANDRA – Passo agora a palavra ao professor Antônio Cláudio Mariz de Oliveira, que fará uma exposição sobre a lei 10.028, que dá o caráter penal à 101.

ANTONIO CLÁUDIO MARIZ DE OLIVEIRA – A meu ver, a Lei de Responsabilidade Fiscal não deveria ser penalizada. Deveríamos punir os administradores e funcionários públicos no bolso, com multas, não com prisão.

O maior agravante é que a lei 10.028 foi mal formulada. Há três fatores que vão deixar o juiz inseguro ao aplicá-la: o excesso de normas penais em branco, a quantidade de elementos normativos e a dificuldade em analisar a lei 101. Um exemplo típico de "norma penal em branco" é a lei de tóxico, que criminaliza o uso e o tráfico, mas não discrimina os tóxicos. Isso fica por conta do Ministério da Saúde. É por esse motivo que o lança-perfume, hoje, é considerado tóxico; quem for encontrado com uma caixa do produto pode ser considerado traficante.

Já os elementos conhecidos como "normativos do tipo" são concebidos por juízo de valor. É o caso das expressões "mulher honesta" e "conduta imprópria", que se encontram no Código Penal. Muitos juízes deixam de aplicar a lei quando ela tem aspectos muito subjetivos, como esses.

No artigo 41-A há uma gritante imprecisão técnica: "Os crimes de responsabilidade previstos no artigo 10 serão processados e julgados de acordo com a lei 8.038, que permite a todo cidadão o oferecimento da denúncia". A denúncia é a proposta de instauração de processo penal visando à condenação de alguém pela prática de delito. Ora, ou houve uma imprecisão técnica e ele utilizou a expressão "denúncia" no sentido vulgar, ou o Ministério Público não é mais o titular da ação penal e pode fazer uma petição e denunciar a autoridade. O que se quer dizer é que qualquer pessoa pode dar a notícia do crime, o que é inconstitucional.

Alguns dispositivos, como o 359-A – "Ordenar, autorizar ou realizar operação de crédito interno ou externo sem prévia autorização legislativa" –, contêm dois elementos normativos. O que é operação de crédito? Primeiro, o juiz tem de saber se o que está julgando é uma operação de crédito, e verificar se houve a prévia autorização legislativa. A pena é a reclusão de um a dois anos. O parágrafo único desse artigo diz: "Incide na mesma pena quem ordena, autoriza ou realiza operação de crédito interno ou externo". É uma norma incompleta, que vai dificultar muito sua aplicação. No caso de governantes e legisladores que deixem despesa a ser paga na gestão seguinte, a condenação é de três meses a um ano de detenção.

O artigo 359-B afirma: "Ordenar ou autorizar a inscrição em restos a pagar de despesa que não tenha sido previamente empenhada ou que exceda limite estabelecido em lei". O que são restos a pagar? Já no artigo 359-F o crime é o não-cancelamento de restos a pagar: "Deixar de ordenar, autorizar ou promover o cancelamento do montante de restos a pagar inscrito em valor superior ao permitido em lei". O sujeito vai ser punido duas vezes: primeiro porque ordenou, depois porque não cancelou.

Confesso que entendi pouco a lei fiscal, mas a lei penal é muito ruim e leva à impunidade, porque os juízes conscientes não têm coragem de condenar ninguém com más leis. De modo que não adianta fazer lei penal desse jeito: desmoraliza o direito.

FRANCISCO ALVES – De fato, a lei 10.028 mistura de forma inconveniente as sanções administrativas e penais. Para aplicá-la, os juízes terão de conhecer infrações de ordem administrativa, relacionadas a contabilidade, direito administrativo, econômico e financeiro. E sabemos que os juízes, cuja especialidade é o direito penal, não têm conhecimento suficiente para aplicar essa lei sem desmando e de forma justa. Por isso a lei 10.028 precisa ser reestudada.

Quanto à aplicação das penas, o artigo 73 é muito claro: diz que as infrações cometidas contra a Lei de Responsabilidade Fiscal serão punidas pelo Código Penal, pela lei 10.079, pelo decreto-lei 201, que cuida da responsabilidade de prefeitos, e pela lei 8.429, de 1992, que é a Lei da Improbidade Administrativa.

NEY PRADO – Acredito que, além de uma demanda da sociedade, a Lei de Responsabilidade Fiscal foi uma exigência do Poder Executivo, que, não podendo controlar suas finanças, que estão ligadas às receitas e aos orçamentos municipais e estaduais, não conseguia estabelecer um equilíbrio orçamentário. De qualquer forma, sou um entusiasta dela. Se ficarmos presos ao formalismo constitucional, quando sabemos que a Constituição é toda eivada de vícios insanáveis, não atenderemos ao principal reclamo da sociedade, na medida em que o Estado não autolimita as finanças e a grande vítima passa a ser o contribuinte. Deixaria de lado o formalismo e me limitaria ao texto da lei, uma vez que ele realmente atende à funcionalidade e à operacionalidade do poder.

PAULO PLANET BUARQUE – Sou um entusiasta da lei fiscal, e prefiro as punições criminais às penas administrativas, que até agora não surtiram efeito. A lei não chama à responsabilidade apenas o autor da infração, ela vai além; responsabiliza os ministros e conselheiros dos Tribunais de Contas que aprovem medidas contrárias ao que ela estabelece, o que aumenta muito a responsabilidade de todos.

MARCO AURÉLIO GRECO – Tenho uma preocupação com o artigo 41-A, que menciona "qualquer do povo". Não é essa a redação?

MARIZ DE OLIVEIRA – É, sim. Diz que é permitido a qualquer do povo, ou seja, a todo cidadão, o oferecimento de denúncia.

MARCO AURÉLIO – E a representação criminal?

MARIZ DE OLIVEIRA – Representação não é denúncia, apenas dá início a ação penal.

IVES GANDRA – O que a lei pretende é dizer que a sociedade quer um dispositivo mais forte que a própria administração.

MARIZ DE OLIVEIRA – Quem vai julgar se o denunciado for o Judiciário? O povo?

IVES GANDRA – Desejo apenas afirmar a filosofia da lei, que é esta: nós, sociedade, queremos deixar claro que os senhores são nossos representantes, estão a nosso serviço e têm de agir sob nosso controle, porque pagamos os tributos, e os senhores não podem desperdiçar o que nos pertence. Esse complexo de dispositivo visa proteger a sociedade contra o poder público.

Há queixas permanentes de membros do Judiciário, do Legislativo e do Executivo de que os poderes dados ao Ministério Público foram excessivos, e de que eles estão exorbitando. Existe uma sensação generalizada de que, ao transformar o Ministério Público numa instituição de defesa da sociedade, ele se tornou uma instituição de auxílio a ideologias e perseguições. É bem possível que isso tenha sido colocado não acidentalmente, mas intencionalmente, para esvaziá-lo.

MARIZ DE OLIVEIRA – O Ministério Público não pode denunciar porque está sendo acusado pela sociedade. O que se faz quando o Judiciário é alvo de investigação? Ele não pode julgar.

IVES GANDRA – Todos concordam em que isso é inconstitucional.

NEY PRADO – Na área do trabalho, o Ministério Público está recebendo denúncias de qualquer cidadão, e processando-as de acordo com a sua competência. As denúncias são feitas pela sociedade.

MARIZ DE OLIVEIRA – Isso é legal: qualquer cidadão dá a notícia-crime, mas não instaura ação penal.

FERNANDO PASSOS – Voltando à penalização da lei 101, na minha opinião, quando o administrador público comete infração não é a cadeia que resolve, é a inelegibilidade.

MARIZ DE OLIVEIRA – O bolso.

FERNANDO PASSOS – O bolso, no caso de desvio de dinheiro. Ao contrário da tendência do direito penal moderno, o Congresso Nacional está seduzido pela idéia de criminalizar tudo. É um absurdo o que estão fazendo com o direito econômico, desestimulando a iniciativa privada com a criminalização.

MÁRIO SÉRGIO DUARTE GARCIA – Como todos aqui ponderaram, a Lei de Responsabilidade Fiscal veio a bom tempo, com o fito de preservar a moralidade pública e a defesa da cidadania. Queria levantar apenas uma reflexão sobre a conclusão de Mariz de Oliveira a respeito da modificação do artigo 339 do Código Penal. Não vejo esse dispositivo como um meio de evitar excesso do Ministério Público. Quando o artigo 339 diz "dar causa a instauração de investigação administrativa, inquérito civil ou ação de improbidade", leio que é uma punição a quem levar denúncia ao Ministério Público; sua função é promover privativamente a ação penal pública e o inquérito civil. Não estou aqui para defender, ao contrário, sou crítico do Ministério Público há décadas. O promotor imagina uma ação civil pública, convive com o juiz, social e profissionalmente, e, quando propõe a ação civil pública, no mesmo dia consegue o beneplácito da decisão que concede a liminar, muitas vezes até programada com a magistratura.

No Guarujá houve um caso de três condomínios que foram alvo de ações civis públicas, distribuídas a diferentes juízes; no mesmo dia foram concedidas três liminares absolutamente idênticas.

Então me pergunto se essa disposição não visa exatamente inibir a apuração de um ato lesivo à própria Lei de Responsabilidade Fiscal. Quando ela penaliza aquele que der causa à instauração do inquérito civil, ou à ação de improbidade administrativa, não estará criando dificuldades para quem possa levar ao Ministério Público um determinado fato que ele teria de apurar para em seguida promover ação civil pública por improbidade administrativa?

DAMÁSIO EVANGELISTA DE JESUS – Concordo que essa lei exagerou nos elementos normativos do tipo e nas normas penais em branco, gerando grande incerteza quanto à pena. Há muitos anos ensino que é necessário escrever a lei penal com absoluta objetividade e restrição, para que o destinatário saiba exatamente o que pode e o que não pode fazer. A lei penal não pode usar termos técnicos, senão ninguém sabe o que está acontecendo.

Estou de acordo também em que estamos vivendo uma época alarmante em relação a novas leis penais. Depois de estudar 40 anos de direito penal, não sei mais o que está em vigor. Desde 1956 estudo o Código Penal brasileiro, e hoje me encontro numa situação em que, quando um aluno me pergunta qual a legislação vigente, tenho de estudar dois ou três dias para saber, e não tenho certeza se minha resposta é a mais coerente.

Todos concordamos que é necessário elaborar uma norma para acabar com o descalabro na administração pública, mas é preciso cuidado com a lei penal.

Vejam bem o que acabei de descobrir hoje: modificou-se o artigo 339 do Código Penal, da denunciação caluniosa, mas o legislador não verificou que já estava em vigor o artigo 19 da lei 8.429, que fala em denunciação e improbidade administrativa. Quem fez isso não conhecia o artigo 19. Quando um aluno pergunta: "Se houver uma denúncia a respeito de ato que constitui improbidade administrativa mas não é delito, qual a lei que se aplica?" A resposta é: o artigo 19. Agora, se esse ato administrativo constituir crime, então aplica-se o Código Penal. É possível que alguém denuncie um agente público por improbidade administrativa. O legislador não pensou nisso.

GASTÃO ALVES DE TOLEDO – Concordo plenamente. Mas não deixa de ser alentador verificar que a Lei de Responsabilidade Fiscal parece o grito de implantação da nossa República: a res publica começa a aflorar 111 anos depois da sua proclamação. Assim como a República foi proclamada com a ausência do Executivo, o próprio Executivo hoje vem implantá-la 111 anos depois de proclamada. As deficiências técnicas e os problemas interpretativos fazem parte do processo de sedimentação da implantação da res publica em nosso país, que pode levar um, dois, cinco ou dez anos, mas vai acabar acontecendo. Faço votos que isso ocorra.

HÉLIO DE BURGOS-CABAL – A lei é falha, mas nasceu do desespero de ver que, mesmo havendo 31% de tributação, 50% da receita é desviada de sua aplicação. Apesar de todas as penalizações, 50% dos prefeitos atuais são objeto de ações penais. Por isso, não devemos exagerar na crítica objetiva à 10.028. Senão, vamos desmoralizar todas as tentativas para coibir o estado caótico das finanças públicas.

MARIZ DE OLIVEIRA – Vou fazer uma colocação filosófica – minha e de todos os que lidam com direito penal – que diz respeito à absoluta falência da pena de prisão. Advogados, promotores e juízes penais entendem que a pena de prisão deve ser reservada exclusivamente para o elemento de alta periculosidade, que não pode conviver em sociedade. Sabemos que a cadeia não regenera nem intimida a parte da sociedade que deseja cometer esse tipo de delito. Hoje se está condenando e prendendo, sim; 120 fiscais da prefeitura foram processados, 60 e poucos estão presos e nem por isso eles deixaram de praticar suas ilicitudes. A pena não está cumprindo seu papel de instrumento de intimidação geral, nem particular, pois inúmeros criminosos do colarinho branco estão reincidindo. Acho que esses delitos deveriam ser apenados de modo alternativo, atingindo direitos outros que não a liberdade. Esse é o grande problema do Brasil: no que tange à aplicação da norma secundária da sanção, a lei não é fiscalizada nem cumprida, e então se desmoraliza.

Concordo inteiramente com todos aqueles que entendem que a lei fiscal veio em boa hora, tem defeitos e não deve ser penal. Se o sujeito cometer algumas infrações administrativas, terá uma multa de até 30% dos vencimentos anuais do agente; é algo considerável, desde que seja cobrado. A lei penal deveria vir mais tarde, sendo descrita de forma clara, para não dar margem à discricionariedade que muitas dessas normas vão trazer.

EDVALDO BRITO – Gostaria de destacar o caso das intersecções tributárias. Cito apenas a das isenções, que condiciona a eficácia destas ao cumprimento dos limites. Há poucos dias, um empreendimento internacional conhecido, no município de Mata de São João, ganhou isenção fiscal por ter gerado 5 mil empregos em um trimestre. Agora, com medo da nova lei, a prefeita quer cancelar a isenção. Esse é apenas um dos aspectos que precisa ser mais bem pensado. Aplaudo a lei fiscal, mas não deixo de olhar os problemas jurídicos que poderão comprometer sua aplicabilidade.

IVES GANDRA – O problema foi exatamente a falta de norma de transição, porque os dois regimes jurídicos são violentamente opostos. Houve uma mudança radical, extremamente positiva, mas falta a ponte que liga uma legislação à outra. Meu receio é que, se muitos deixarem de cumprir a lei 101 e o Poder Judiciário começar a justificar, ela estará morta.

NEY PRADO – É óbvio que os percentuais fixados pela lei devem estar ligados à arrecadação. No caso de uma recessão econômica, como esses percentuais serão cumpridos?

FRANCISCO ALVES – Essa é uma das grandes preocupações. Se houver uma recessão, a base de cálculo vai diminuir e os percentuais continuarão os mesmos.

IVO DALL’ACQUA – Quando dá meio-dia, minha cidade morre porque o serviço público ficou limitado à possibilidade do atendimento, uma vez que o prefeito está preocupado em terminar o mandato com o mínimo possível de problemas. Então, para fazer caixa, ocorrem algumas coisas malucas, como o estímulo ao pagamento do IPTU em condições especiais, o que favorece os especuladores. Mas acho que a partir de agora vão acontecer coisas interessantes, como o desejo de muitos municípios de voltar à condição de distrito.

AYRES FERNANDINO BARRETO – Em uma crônica do século 19, Machado de Assis aborda o assunto, como se estivesse no século 21. Diz ele: "Não os reconheci encontrando-os próximo à esquina. Talvez não os tenha reconhecido porque me pareceram mais elegantes e mais gordos. Mas eles me reconheceram: somos nós mesmos, somos os impostos inconstitucionais de Pernambuco. Estamos mais fortes e rejuvenescidos porque sempre damos um jeitinho à corte". A ausência de regras de transição cria inconstitucionalidades sucessivas.

FRANCISCO ALVES – Ao comparar as duas leis, lembrei-me da teoria estética de Kant, que diz que na comparação de duas grandezas podemos descobrir um momento de prazer e outro sem desejos. O prazer é a Lei de Responsabilidade Fiscal, uma lei necessária, que gera certo contentamento, se bem aplicada, porque é o atendimento a uma reivindicação antiga da sociedade. Por suas imprecisões e dificuldade de aplicação, a lei 10.028 é a parte da teoria sem desejos. A conclusão a que chego é que a Lei de Responsabilidade Fiscal representa não apenas uma alteração jurídica, mas traz em si a idéia de uma mudança cultural que tanto a sociedade reclama.

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