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Rota turbulenta

 

Ilustração: Orlando Maver

Transporte aéreo tenta superar restrições para crescer

Em palestra proferida no Conselho de Economia, Sociologia e Política da FCESP no dia 14 de setembro de 2000, Ozires Silva falou sobre a aviação comercial brasileira e suas dificuldades para enfrentar a competição internacional

OZIRES SILVA – Nas palestras deste conselho, alguns aspectos gerais sempre são destacados, como o acentuado desequilíbrio social e as dificuldades por que passa a população. Tudo se torna mais agudo quando comparamos nosso país – com os mesmos 500 anos de idade e mais ou menos a mesma área territorial – aos Estados Unidos da América. Nesses cinco séculos, os americanos do norte foram capazes de construir uma das maiores potências da Terra, enquanto nós, os brasileiros, não conseguimos nada parecido.

Explicações existem muitas, mas no fundo sabemos que tudo parece vir de um viés cultural que nos amarra ao subdesenvolvimento, de uma forma ou de outra. E sem entrar mais profundamente no mérito da questão, pois isso já poderia ser razão de outras discussões, e muito mais amplas, gostaria de lhes falar sobre um dos temas que considero importantes para o nosso desenvolvimento e que está sujeito a uma nova configuração em futuro muito próximo – o transporte aéreo.

Agora que cruzamos os primeiros 500 anos de vida do Brasil e estamos entrando no século 21, poderíamos imaginar que vivemos um momento mágico. Instante oportuno para fazer algumas reflexões sobre o passado e tentar responder por que os americanos conseguiram encontrar o caminho do desenvolvimento e o mesmo não aconteceu com a parte sul do continente.

Mas para enfocar esse tema desejo informar que, através da edição de uma nova base regulamentar – a ser remetida em breve à apreciação do Congresso Nacional –, o governo federal pretende fixar novas regras de operação para o transporte aéreo. Em diferentes setores da economia modificações já foram feitas. Por exemplo, temos a Agência Nacional do Petróleo, a de energia elétrica, a das telecomunicações. Em conseqüência disso, já é possível medir resultados e aprender com as experiências, aferindo o que aconteceu em termos de expansão, de oferta, de eficiência, de custo de operação, etc.

No transporte aéreo parece que a alternativa a ser proposta é semelhante, isto é, entrará em discussão no Congresso Nacional a criação de uma Agência Nacional de Aviação Civil. Quero acentuar que esta palestra pretende se enquadrar no propósito de colocar o tema em discussão e debater alguns dos mecanismos da futura possível configuração do transporte aéreo de modo que possa se desenvolver, uma vez que estamos convencidos de que ele é extremamente importante. Não há dúvidas de que o setor é um dos pilares da infra-estrutura nacional e fundamental para o tão desejado desenvolvimento do país. Precisamos de empresas aéreas competentes, que possam oferecer aos cidadãos serviços seguros, eficientes e a preços adequados.

Vou discorrer sobre as condições operativas atuais e depois fazer algumas considerações adicionais. Como ponto de partida podemos utilizar o exemplo das telecomunicações. Com a privatização dos serviços houve uma reconfiguração que está sendo impressionante sob vários aspectos. Saltamos de 600 mil telefones celulares em 1995 para 16 milhões hoje. Gostaríamos de esperar algo semelhante no transporte aéreo.

A globalização colocou o cidadão no centro do mundo e, atravessando fronteiras com uma imensa permeabilidade, desnacionalizou as economias e o próprio cidadão. Na atualidade ele é capaz de comprar produtos do mundo inteiro onde quer que esteja e, mais que isso, conhece os preços e exerce seu poder de comparação. É uma clara eliminação de produtos 100% nacionais. Hoje a produção tem caráter global, os insumos vêm de todas as partes. Ganham as nações que trabalham com coeficiente de alto valor agregado. No Brasil temos conseguido pouco nessa direção. Apenas um dado para reflexão: quando exportamos um quilo de soja, nós o vendemos por US$ 0,35; quando vendemos um quilo de avião, conseguimos US$ 1.000. É uma diferença substancial, e aí parece que está o germe fundamental da riqueza e de sua formação.

Estamos efetivamente na era da globalização, em que pese existirem movimentos internos questionando esse movimento, como se fosse possível interromper o processo.

Um dos elementos-chave da globalização é a tecnologia, que nos proporciona as comunicações e as novas modalidades de transportes. Na década de 90 houve uma crise no transporte aéreo mundial, pela primeira vez depois da Segunda Guerra Mundial. Quando terminou o conflito, havia uma quantidade enorme de aviões que sobraram da guerra e que foram lançados no mercado. No mundo todo isso determinou a criação de uma grande quantidade de linhas aéreas. Por exemplo, nos Estados Unidos, o transporte aéreo se consolidou, crescendo numa taxa de 6% a 7% ao ano consistentemente de 1945 até aproximadamente 1990. Nesse momento uma primeira crise surgiu, basicamente em conseqüência do extraordinário desenvolvimento das telecomunicações globais e instantâneas, fazendo com que as pessoas reduzissem o número de viagens. De 1990 a 1995 isso foi assimilado e hoje novamente o transporte aéreo volta a crescer na mesma taxa anterior.

Do mesmo modo que outros setores da economia mundial a aviação comercial está vivendo sua globalização, que está provocando a alteração dos regulamentos operacionais e a forma pela qual os serviços são concedidos pelos diferentes governos. As conseqüências têm sido várias, entre elas as grandes fusões através das quais as companhias se juntam para ganhar escala e melhor explorar as condições de tráfego aéreo. Todavia, devido ao que foi estabelecido pela Convenção de Chicago de 1944, ainda hoje prevalece o princípio da bilateralidade, que rege as negociações de direitos de tráfego entre países. Embora defendidos, em particular pelos Estados Unidos, os mecanismos multilaterais ainda não são universalmente aceitos. A razão da resistência à aplicação de acordos globais parece estar nas diferenças econômicas entre as nações. Por exemplo, a participação norte-americana no tráfego aéreo mundial é de cerca de 37%, enquanto a da Europa atinge 34%. A Ásia chega a 17% e toda a América Latina, inclusive o México, consegue 4% apenas – e o Brasil somente 1,4%. Desse modo, quando se abordam as discussões multilaterais fica difícil defender posturas a partir de uma participação tão pequena. Isso não ocorre com os Estados Unidos, por exemplo, quando defende a tese dos Céus Abertos, isto é, a abertura para que qualquer companhia aérea mundial opere em qualquer país.

Evidentemente, quando se pensa em modificar a regulamentação do transporte aéreo, todos os aspectos precisam ser considerados. Seria conveniente, por exemplo, como aconteceu nas telecomunicações, que empresas estrangeiras viessem operar no tráfego de cabotagem no Brasil? Posso quase afirmar que, se uma pesquisa fosse realizada, muito provavelmente a opinião pública aprovaria essa opção. Existe uma percepção generalizada de que nosso transporte aéreo, executado por companhias aéreas brasileiras, não se caracteriza como um bom serviço. Muitos mantêm a imagem de que nossos serviços são caros, pouco eficientes, e que as companhias aéreas brasileiras ainda operam sob esquema de cartéis. Recentemente, um conhecido ex-ministro fez publicar um artigo devastador contra as empresas de transporte aéreo brasileiras, no qual aborda o assunto exatamente como imagino que passa pela cabeça dos brasileiros. Evidentemente, o texto atingiu as empresas, e respostas foram produzidas, que certamente não foram publicadas do mesmo modo. Essa é a razão pela qual insisto que o assunto deve ser enfrentado através de amplas discussões públicas, a fim de que possa acontecer um contexto regulatório avançado e que atenda as expectativas dos futuros usuários.

Creio que a aviação comercial tem uma importância econômica insuspeitada pela maioria dos brasileiros. Tenho ido a inúmeros simpósios e congressos de infra-estrutura e, estranhamente, quando se discute esse assunto em geral a aviação não é abordada. Parece que ela não faz parte da infra-estrutura brasileira. A razão, possivelmente, venha da origem do órgão governamental que a controla – o Comando da Aeronáutica, que substituiu o antigo Ministério da Aeronáutica.

Independentemente disso, é importante que se saliente a relevância do setor e se fuja da concepção de que seja absolutamente normal ir a uma loja, comprar um tíquete, ir para o aeroporto, ver o avião no estacionamento, uma comissária sorridente, os pilotos a postos, tudo pronto para a partida. Por trás disso existe uma estrutura imensa, que gera uma grande quantidade de empregos. Eu diria hoje que a Varig, com 16 mil postos de trabalho diretos, seguramente proporciona uns 200 mil empregos indiretos para que esse serviço possa ser regularmente prestado, não só na área de passageiros como no transporte de carga, correio e na agilização das atividades em geral. É, portanto, algo importante para o país.

O transporte aéreo, vendendo velocidade, dá ao usuário uma disponibilidade de tempo que ele não teria se utilizasse outro veículo. E tempo é seguramente a variável mais importante do mundo moderno.

Por outro lado, nossa aviação comercial, da forma que funciona na atualidade, é uma grande exportadora de serviços, produzindo enormes superávits comerciais. Receitas de bilhões de dólares deixam de ser desviadas para o exterior em função dessa atividade. Além disso, ela tem outro aspecto de importância estratégica: é um serviço público essencial. Faz a integração do país, uma vez que se pode considerar uma pista como um pequeno trecho de estrada de rodagem, que atinge locais muitas vezes inacessíveis a outros veículos.

Adicionalmente há o aspecto da representação no exterior. Ao longo de muitos anos de operação a Varig construiu uma marca brasileira importante lá fora. Infelizmente nosso país é pobre em marcas, as quais são no mundo moderno uma espécie de representantes diplomáticos e comerciais das nações.

A atividade aeronáutica é um dos grandes propulsores do desenvolvimento da tecnologia atual. Um avião moderno utiliza todos os canais tecnológicos hoje conhecidos, através de seus milhares de componentes, equipamentos e sistemas. É um verdadeiro organismo em funcionamento durante o período de vôo. Mal se nota a quantidade de sistemas em operação enquanto os passageiros, sentados na poltrona, esperam a chegada ao destino. Por outro lado, ela é um dos fatores determinantes da chamada globalização, dando condições aos empresários e investidores de gerar riqueza, empregos, novos negócios e oportunidades.

Enfim, o transporte aéreo e os fatores a ele associados contribuem para a globalização, ao mesmo tempo em que podem ser considerados vítimas do próprio processo. Não se pode esquecer que são poucos os países que produzem aviões, suas peças e equipamentos. Embora no Brasil tenhamos a Embraer, que participa do mercado mundial, todas as outras aeronaves de maior porte dependem de suprimento dos países mais desenvolvidos.

A globalização é portanto uma realidade para o transporte aéreo mundial. O resultado tem sido o estabelecimento de empresas grandes, as chamadas megacarriers, americanas em particular. Em que pese a tendência de as empresas atravessarem oceanos para crescer e oferecer mais assentos em seus aviões, vale a pena registrar, em termos de comportamento mundial, que recentemente a British Airways quis comprar 17% do capital da American Airlines nos Estados Unidos. Nesse país, a lei fixa uma limitação de 25% para a participação no capital das empresas domésticas. Embora o percentual fosse menor, o Congresso norte-americano recusou a proposta e não autorizou a iniciativa inglesa. Isso nos faz pensar que as propostas defendidas pelos Estados Unidos, como a dos Céus Abertos, parecem valer muito bem para o quintal dos outros, não para o dos americanos.

Uma das perguntas que faríamos no momento seria, por exemplo: que tipo de estratégias poderíamos seguir? Fazer parcerias, o code sharing? De algum modo a Varig tem procedido nesse sentido, participando, em 1995, da criação da chamada Star Alliance, uma aliança internacional hoje com 15 empresas. Isso garante hoje que nós, brasileiros, através das asas da Varig, possamos de qualquer localidade do Brasil atingir 140 cidades em 50 países, com conexões as mais variadas.

Em conclusão, gostaria de colocar como ponto fundamental que a atividade econômica de transporte aéreo é um elemento essencial para o desenvolvimento do país e, sem dúvida nenhuma, um serviço público extremamente importante. O Brasil não pode ter uma aviação comercial enfraquecida ou dependente. O novo contexto regulatório, em início de discussão, deveria estar centrado na direção de um sistema que estabeleça as linhas mestras de operação, garantindo a competição e, ao mesmo tempo, a fixação de regras claras e duradouras, que permitam a geração e a manutenção de empresas grandes e competitivas.

O modelo atual, que levou a empresas aéreas brasileiras enfraquecidas, operando em clima de regulamentação restritiva, precisa ser substituído. Os exemplos mundiais indicam que a desregulamentação, que já impregnou os países mais importantes do mundo – inclusive muitos asiáticos –, parece ter funcionado. Resultou no crescimento imenso do tráfego dos Estados Unidos, que hoje transportam 700 milhões de passageiros por ano, sendo que o tráfego aéreo mundial é de um pouco mais de 1,5 bilhão. No Brasil transportamos 35 milhões de passageiros. Vale dizer que cada americano voa três vezes por ano numa rota qualquer de seu país. Em cada cinco brasileiros, um faz uma viagem por ano. Essa é uma das razões que produzem grandes dificuldades para as empresas brasileiras competirem com suas equivalentes, por exemplo, dos Estados Unidos. Em função da sofisticação de nosso passageiro, as empresas daqui devem apresentar a mesma qualidade de serviços, de equipamentos, as mesmas condições operacionais de uma companhia norte-americana, embora operem num mercado caracterizado por escalas muito menores.

 

Debate

ISAAC JARDANOVSKI – Quais foram os pontos fundamentais do artigo publicado na imprensa que você mencionou?

OZIRES – O articulista reclama de um vôo de Brasília a Natal, com escala em Recife, realizado no dia 8 de agosto. Ele começa dizendo: "Essa poderia ter sido uma viagem como milhares de outras que diariamente singram o céu anil do nosso Brasil varonil. Mas não foi. Não por conta da pane (houve uma falha técnica, efetivamente, no avião) ou de atraso, que já fazem parte da rotina desse cartel que, descontada a equivocada interferência do governo no setor, é o mais incompetente do mundo, porque cobra a passagem mais cara do mundo e não consegue financiar o maior déficit do mundo".

ARNALDO NISKIER – Acredito que o Brasil, que trata mal sua aviação, não cuidou devidamente de um aspecto que se liga muito a ela: a produção de software. A pergunta que faço é: por que a Índia tem sido capaz de produzir e exportar tanto software, talvez inclusive como a primeira colocada nesse aspecto, sendo um país que, em termos de progresso e de globalização, não pode ser comparado ao Brasil?

Quanto à energia, gostaria de ouvi-lo falar a respeito da energia solar, utilizada no nordeste, e sobre a energia nuclear. Ela nos ajuda ou atrapalha?

O senhor disse que temos 35 milhões de passageiros, e imagino que o Brasil vá ter 40 milhões, daqui a pouco 50 milhões, mas o senhor acha que uma companhia como a Vasp pode ser competitiva e eficiente se dá um mau exemplo, inclusive de canibalização de aviões, desmoralizando o aspecto de segurança, que, penso eu, é o mais importante de todos? Claro que queremos competição com os Estados Unidos; temos condições e competência, como já demonstramos – mas como é que vamos competir?

OZIRES – A Índia, embora invista bastante em educação, enfrenta problemas. Mas há segmentos bem-preparados, em escolas de qualidade e de alto custo, além de gastos intensos na formação de pessoal no exterior. Percebi os resultados de intensos programas de treinamento na Embraer, onde tive a oportunidade, desde sua fundação, de lançar cursos, os mais variados, para a formação e desenvolvimento de pessoal, todos muito amplos. O software é, sem dúvida, a chave para o progresso de qualquer país, e depende de sólidos investimentos em educação. Como bem mostra a Índia, não basta a qualidade, precisa haver quantidade, num processo geral que atinja, se possível, toda a população.

O problema básico da energia solar é a pequena diferença de potencial. Ela decorre do reduzido ganho de temperatura, quer dizer, se uma placa de aço for colocada no sol a temperatura cresce, no máximo, uns 45 graus. Essa diferença inviabiliza o seu uso quando maiores potências são necessárias. Por outro lado a energia nuclear, que permite a utilização de maiores potências, sempre produz eletricidade ou força motriz através de processos termodinâmicos, que são notoriamente ineficientes. Pesquisas tecnológicas estão em curso buscando outras formas mais diretas de produção de força mecânica ou de propulsão, a partir da própria eletricidade. Através desses processos podem-se usar motores elétricos controlados digitalmente, em condições de produzir rendimentos da ordem de 95%.

JULIAN CHACEL – E as células fotovoltaicas?

OZIRES – As células fotovoltaicas sofrem o mesmo efeito da pequena diferença de potencial. No entanto, as células combustíveis e ainda outros processos que trabalham em nível subatômico de transformação oferecem um amplo espectro de oportunidades, podendo atingir potências mais expressivas. Embora ainda sejam caras, oferecem vantagens muito interessantes como a portabilidade, o que lhes assegura um lugar destacado na futura propulsão de veículos.

Com relação à Vasp, a empresa está sofrendo problemas diversos. Penso que um dos maiores que enfrentou foi o do intenso prejuízo decorrente da operação internacional. Provavelmente foi essa a razão básica que levou a empresa a abandonar o mercado externo e se dedicar tão somente à exploração de linhas domésticas. A Varig mantém um exército de pessoas por trás de cada avião que voa, uma manutenção com investimentos pesados em hangares, em tecnologia, não só em reparo do avião como de equipamentos e em componentes de uma forma geral, numa quantidade extremamente expressiva. Essa é a razão por que a empresa, em que pesem os problemas atuais, sobrevive.

CHACEL – Tenho algumas questões pontuais para ajudar neste exercício de reflexão. A primeira delas é que, digamos, as dificuldades por que passa a aviação civil, no Brasil, decorrem fundamentalmente, e este seria o cerne da questão, da escala. E, nessas circunstâncias, como seria possível minorar essas diferenças? Eu usaria aqui a expressão de um velho professor francês, no seu tempo o papa da economia na França, François Perroux, do efeito dominação, exercido sobretudo pelos Estados Unidos, em conseqüência da diferença do volume de passageiros e de cargas que as empresas aéreas americanas têm em relação a países como o Brasil. Eu me perguntaria se uma forma de minorar essa diferença de escala, dando maior rentabilidade à aviação civil no Brasil, não seria dar ênfase à operação regional, que levaria necessariamente à criação de uma infra-estrutura em pequenos aeroportos, de modo a permitir que a aviação se inserisse melhor na malha de um transporte intermodal. Penso sobretudo na questão do piggyback (transporte de veículos rodoviários e de trailers), que poderia talvez se valer da aviação. Pelo que me consta, o piggyback é pouco utilizado no Brasil em relação ao transporte ferroviário e rodoviário, e poderia, talvez numa extensão, incluir o transporte aéreo, sobretudo a aviação regional.

Não sei se entendi bem quando se falou sobre o excesso de intervenção governamental, se seria possível eliminar a idéia de uma agência governamental, até porque o que se está presenciando no Brasil, hoje, é a substituição da figura das autarquias pela das agências reguladoras, de tal sorte que em termos de empregos na área pública nada mudou, tudo fica como antes no quartel de Abrantes. Entretanto, vejo com dificuldade como não ter uma agência governamental que regule uma atividade em que, como foi dito, a segurança é fundamental. E perguntaria se a FAA (Federal Aviation Administration) não tem nos Estados Unidos esse papel de agência governamental de regulação das atividades da aviação comercial, de tal modo que seja inescapável ter formas de regulação.

Por último, quanto ao fato de a negociação entre as companhias aéreas ser sempre feita através de mecanismos bilaterais, aqui a pergunta decorre de minha ignorância a respeito do que se passa no setor de transporte aéreo. A idéia da Iata (International Air Transport Association) não estaria também relacionada à iniciativa de levar essas discussões a um foro multilateral, ou ela fica circunscrita à matéria tarifária?

OZIRES – Quanto à questão da escala, eu diria que ela poderia ser conseguida com um número menor de empresas em operação, embora se assegurando os princípios básicos da competitividade. O sistema atual de concessão de direitos de tráfego deveria estar submetido a requisitos pesados de competência técnica, limitando o número de pequenas empresas que, muitas vezes, praticam serviços predatórios e sem o nível de conforto e segurança necessários. A ênfase regional que o senhor menciona talvez não ajude muito. Infelizmente, o avião não é igual a outro tipo de veículo. Quanto menor o avião, mais cara a sua operação. Por exemplo, um 747 oferece um custo de assento/quilômetro muito menor do que um Bandeirante. As pessoas pensam que ao voar num avião pequeno pagarão menos. É exatamente o contrário: quanto menor o avião, mais cara é a passagem. Talvez pudéssemos estabelecer um paralelo com ônibus e automóvel: é claro que uma passagem de automóvel deve ser mais cara que a de um ônibus. No entanto as pessoas não transpoem isso para o campo aeronáutico, e acreditam que, quando o avião é menor, o preço deve ser também mais reduzido.

No caso dos acordos bilaterais que ainda prevalecem na doutrina do direito internacional, no campo aeronáutico em particular, pode ser que o sistema seja denunciado através de uma revisão da Convenção de Chicago de 1944, que é muito provável em futuro próximo. A Iata, em particular, é uma instituição privada constituída por linhas aéreas associadas. Ela estuda aspectos doutrinários de caráter geral em benefício das empresas associadas. Pode funcionar como coadjuvante, mas, por ser uma organização privada, não creio que os governos concordem em delegar a ela o poder de negociação multilateral, embora seja efetivamente uma associação competente, tenha técnicos de alto nível e os estudos que produz sejam normalmente de boa qualidade.

CLÁUDIO CONTADOR – Ao longo de sua palestra não ouvimos ou ouvimos pouco falar do consumidor. Quanto à questão de segurança das empresas menores, por que não deixar o consumidor escolher? Todos aqui são usuários freqüentes de avião e sabem que tudo funciona muito bem até que surja o primeiro problema, já no atendimento no aeroporto. A partir desse momento existe um desrespeito total ao consumidor. Algumas empresas agem às vezes até de forma agressiva, tirando todo mundo do balcão, e os pobres consumidores, que já estão com a passagem, prontos para embarcar, ficam perdidos. Por que não se força mais uma legislação para punir esse tipo de abuso?

OZIRES – As autoridades precisam fixar requisitos de capacidade operacional para garantir aos usuários que um concessionário de serviço público realmente é capaz de prestar o serviço que postula. As reclamações podem ser dirigidas ao Departamento de Aviação Civil, que, ao que estou informado, tem sido célere e capaz de inspecionar e multar as empresas faltosas. Quanto a esse aspecto asseguro-lhe que, em relação à Varig, temos feito muito esforço para prestar serviços cada vez melhores, colocando um foco intenso no processo de tentar oferecer o máximo aos consumidores. Por vezes nos deparamos com uma falha operacional, decorrente de causa humana, de forma nenhuma aceita pela companhia. No mais das vezes trata-se de um problema de educação. Por cultura básica entendo que nós, brasileiros, não somos fortes na prestação de serviços.

JANICE THEODORO – Quando estive na China, economistas locais me disseram que o país tinha escolhido como estratégia, diversamente do que eu imaginava, que uma empresa para atuar dentro do país teria de comprovar competência internacional. Ela conseguiria registro para o mercado interno dependendo do perfil que assumisse no exterior. Eu me lembro de minha filha na escola, na China: as crianças discutiam em que companhias aéreas viajar. E existia o consenso de que só suicidas viajariam nas companhias chinesas.

Tendo em vista tudo isso e sabendo-se que a Varig aqui dentro tem um perfil conhecido, em que medida ela pode se desenvolver no exterior? Ela poderia se tornar mais agressiva no mercado externo e a partir daí constituir uma política no mercado interno? Fico me perguntando se o Brasil, que já tem uma credencial boa internamente, inclusive em termos de número de acidentes aéreos, não teria condições de expandir esse mercado.

OZIRES – Sua pergunta envolve uma série de ângulos. Na China o transporte aéreo doméstico é feito somente por companhias locais. Então o consumidor não tem alternativa: ele tem de voar numa companhia nacional. Por outro lado havia, até um passado recente, uma exigência das autoridades de que os aviões e seus equipamentos fossem chineses. Isso era conseqüência de o país estar sujeito a uma política que determinava um fechamento tecnológico, e do ponto de vista operacional criava problemas muito sérios. Mesmo considerando o razoável avanço local em alguns campos do conhecimento, os aviões chineses ainda são realmente pobres, em termos de concepção, de projeto, de performance e coisas dessa natureza. É claro que o Brasil tem uma competência instalada nesse campo mais acentuada e poderia certamente passar seus conhecimentos e experiência não somente para a China, mas também para outros países. Entretanto, não é fácil para um país como o nosso, cercado por uma quantidade de regulamentos ultrapassados, gerar oportunidades para as empresas irem para o exterior. Para isso precisamos encontrar o caminho da rentabilidade e de maior eficiência, o que parece estar impedido por um sistema tributário complexo e caro. Desde que estou dirigindo a Varig oriento meus colegas de trabalho a pensar que, levando em consideração a competência da companhia, poderíamos exercer alguma liderança no mercado internacional.

ROBERTO PENTEADO – Gostaria de ouvir suas considerações a respeito do aeroporto internacional de Viracopos. Parece que os interesses continuam divididos entre o aeroporto internacional de Guarulhos e Viracopos.

OZIRES – A questão aeroportuária de São Paulo tem sido um dos pontos positivos na agenda de discussão da aviação de transporte no Brasil. O sistema aeroportuário de São Paulo tem batido todos os recordes em termos de crescimento, inclusive em relação às projeções colocadas no passado. Acho que muitos se lembram da polêmica de localização do novo aeroporto internacional de São Paulo, que envolveu a sociedade paulista durante certo tempo, até que se decidiu por Guarulhos. Lembro-me dos estudos de mercado, que fizeram projeções para as próximas décadas de demanda de passageiros e de cargas. Hoje constata-se que o sistema aeroportuário de São Paulo simplesmente dobrou a parada. Na atualidade já se nota a necessidade de expansão dos terminais de passageiros e de carga. Infelizmente, em termos econômicos, nosso país tem insuficiências endêmicas. Isso, ao lado da imensa necessidade que temos de aumentar o número de aeroportos construídos e em operação no país, gera um horizonte de escassez de recursos financeiros. Neste momento as autoridades da Infraero (Empresa Brasileira de Infra-Estrutura Aeroportuária) estão engajadas em determinar mecanismos legais e financeiros que permitam o grau necessário de expansão.

ISAAC – Foi assim que se escolheu também o Galeão como o aeroporto principal do Brasil 40 anos atrás, quando os estudos já mostravam que o pólo gerador de tráfego número um era São Paulo.

OZIRES – Isso era verdade há 15 anos, quando Guarulhos começou a operar. Hoje, a verdade é ainda mais clara e, apesar das indicações muito evidentes da necessidade de priorizar Guarulhos, foi construído o Terminal 2 do Rio de Janeiro. Ontem mesmo embarquei no Terminal do Galeão, e fiquei com pena, sinceramente. Estava quase vazio: salas imensas e poucas pessoas no aeroporto. Recentemente o prefeito Luiz Paulo Conde, do Rio de Janeiro, procurou-me na Varig dizendo que deveríamos mudar isso, simplesmente programando os aviões para pousarem lá. Minha resposta foi direta: "Prefeito, as empresas dependem claramente de tráfego de passageiros e de cargas. Sempre teremos de estar onde estão os passageiros". E isso depende do desenvolvimento da cidade ou do estado. Em São Paulo o quadro é diferente. A atividade econômica é intensa e a capacidade de gerar demanda é significativamente maior. Por outro lado, o sistema aeroportuário na zona de aproximação local dispõe de quatro aeroportos: Campinas, Guarulhos, Congonhas e, eventualmente, para o futuro, São José dos Campos, que está a cem quilômetros da cidade. A experiência internacional mostra que colocar 30, 40, 50, 60 milhões de passageiros por ano numa única área, sem algumas soluções peculiares, torna-se difícil. Não se pode considerar simplesmente a questão do congestionamento no solo. O problema em vôo é equivalente. Estudos recentemente realizados indicam que Guarulhos precisa de um terceiro terminal, muito em particular nos horários de pico, tanto de manhã, com a chegada dos vôos internacionais, como à tarde ou à noite. Principalmente à noite, em razão de uma cultura provocada pela limitação tecnológica do passado. Os passageiros estão educados para viajar à noite. Os motores aeronáuticos, até há pouco tempo, não permitiam decolagem nas horas quentes do dia. O Rio de Janeiro, que se situa no nível do mar, facilitava as decolagens, desde que fossem à noite. Na época esse foi um argumento que justificou a localização do nosso mais importante aeroporto internacional no Rio de Janeiro. Essa condição acabou por conscientizar os passageiros, e hoje todos os brasileiros preferem voar durante a noite. A Varig está agora tentando alguns horários diurnos, ainda sem grandes resultados.

O presidente da Infraero teria declarado há pouco tempo que a construção de um terceiro terminal em São Paulo não seria viável, em curto prazo, devido a limitações financeiras. O governador Mário Covas reagiu com rapidez. O assunto ficou resolvido e a Infraero declarou que está estudando um projeto para uma licitação em breve, que contará com a participação da iniciativa privada.

Com relação a Viracopos, esse aeroporto é especializado em cargas aéreas e opera com boa eficiência. O aeroporto, situado na região de Campinas, oferece uma belíssima infra-estrutura e uma pista ótima, além de condições climáticas em geral muito boas. As autoridades aeronáuticas do passado tiveram a visão de fazer uma desapropriação bastante ampla, quer dizer, em Viracopos não há problemas de espaço. Será possível a construção de novas pistas, de hangares e tudo mais.

EDUARDO SILVA – O período de globalização afetou muito fortemente a área de transporte como um todo, e não apenas o setor aéreo. Se passarmos os olhos rapidamente no transporte rodoviário, no ferroviário mais ainda e mesmo no marítimo, notaremos uma espécie de decadência. Não foi só a crise, parece que houve uma derrubada geral, e o que se percebeu, até entre empresas de engenharia, é que aquelas de porte médio também não conseguiram se equilibrar. Hoje vemos um renascimento a partir das pequenas empresas que sobreviveram e que estão conseguindo de alguma forma se realinhar, e há esperança de que esse setor de transporte volte a ter alguma vitalidade. Quero dizer que a tendência principal que se viu na globalização foi de fusão, de concentração, e as empresas que por qualquer razão, estratégica ou não, não conseguiram fazer isso, estão passando por apertos, até financeiros. Então, uma coisa que sempre me chamou a atenção: por que na área de transporte aéreo a Varig não acabou fazendo uma associação com as outras nacionais?

OZIRES – Quanto à questão da fusão, eu me remeto a um artigo publicado pela revista "The Economist", que fez uma análise muito interessante sobre as fusões no mercado mundial. Segundo a matéria, 65% das fusões fracassaram nos seus primeiros cinco anos de funcionamento conjunto. O autor do artigo assegura que a seguinte pergunta tem de ser satisfatoriamente respondida, sempre que se pensa em fusão: "A operação agrega valor ao conjunto e a cada uma das companhias?" Em todos os casos de fracasso, esse fator esteve ausente. No momento, quando se começa a analisar os problemas do transporte aéreo, o procedimento se aplica. Um pouco de reflexão convence-nos de que as possibilidades não oferecem, no Brasil, algum esquema viável que satisfaça de um lado a operação e de outro a legislação contra a cartelização.

MOACIR VAZ GUIMARÃES – Gostei do que você falou a respeito da importância da educação. Educar não apenas no sentido técnico, mas também no do relacionamento humano. Lembrei-me então de que anos atrás a Unesco produziu um documento magnífico que, baseado numa estatística, afirmava que o trabalhador que tinha melhor educação geral era aquele que com maior facilidade e rapidez assimilava as mudanças da tecnologia, as mudanças que havia na vida, e que hoje são aceleradíssimas.

Acho que já é hora também de o Brasil se preocupar com uma revisão curricular, em que se casasse uma sólida formação geral com uma educação especializada voltada agora para a nova realidade que foi criada pela globalização. Realmente, o exercício consciente da cidadania hoje pressupõe, a meu ver, esses dois pilares: uma educação geral sólida e uma capacidade de absorver com maior rapidez as mutações que nos deslumbram às vezes e que outras vezes nos deixam até um pouco angustiados. Então esse ponto de sua palestra me tocou porque acho que não cabe mais aquela idéia que certo tempo atrás alguns responsáveis pelo processo político brasileiro inventaram, que existiria uma dicotomia entre humanismo e tecnologia.

Especificamente sobre o assunto da palestra, gostaria de saber o que seria possível fazer em relação ao custo da passagem, porque esse é um item que está pesando talvez no desequilíbrio da clientela do tráfego aéreo. Que medidas poderiam ser adotadas e por quem para que esses preços, na medida em que ficassem mais acessíveis, representassem um estímulo para maior utilização de nossas aeronaves?

OZIRES – Quanto à educação, creio que é absolutamente necessário não simplesmente formar as pessoas, mas sobretudo informá-las. Com relação ao preço da passagem, gostaria de fazer algumas considerações. O primeiro avião a jato que foi vendido no mundo, de transporte aéreo de longa distância, foi um Boeing 707, em 1958. Ele tinha 130 lugares e foi vendido por US$ 3,5 milhões. Um avião a jato de 130 lugares hoje vale no mercado US$ 35 milhões, dez vezes mais. Nesse período, em dólares, o preço do combustível foi multiplicado por três, está chegando a quatro agora, em função dos US$ 35 que custa o barril do óleo. As folhas salariais cresceram enormemente no período. O custo de infra-estrutura foi ao infinito, porque era zero no passado, uma vez que os aeroportos eram primariamente administrados pelos respectivos governos, que colocavam isso como prestação de serviço público. Na atualidade, o custo de infra-estrutura é muito pesado. O seguro de responsabilidade civil, por exemplo, era algo que não existia em 1958. Hoje é um dos itens mais pesados que as empresas aéreas têm de enfrentar. Por outro lado, enquanto todos esses custos cresceram, as passagens decresceram. Se isso aconteceu com a despesa, o inverso ocorreu com a receita, que, no período, teve um decréscimo de no mínimo 30%. Por outro lado, em termos de demanda física, nos Estados Unidos 700 milhões de passageiros entram nos aviões, enquanto no Brasil apenas uns 10% desse número constituem o universo de nossos viajantes. Paralelamente há a questão tributária. O órgão de classe, representante das empresas de transporte aéreo brasileiras, acentua que a tributação atinge 7% nos Estados Unidos e cerca de 16% na Europa, enquanto aqui chegaria a 35%.

Somando tudo isso, creio que os senhores aceitariam que uma empresa local, com as naturais deficiências de nosso mercado, o nível mais baixo de demanda e, ainda, os custos e a tributação mais altos, sempre terá dificuldade para competir com as empresas gigantes do mercado internacional.

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