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Padre Anchieta, santo e cientista

"Anchieta Escrevendo na Areia", tela de Benedito Calixto / Foto: Reprodução

Por: PAULO NATHANAEL PEREIRA DE SOUZA*

Agora que José de Anchieta se fez santo, mediante ato do papa Francisco, fui ler algumas de suas cartas, datadas do período compreendido entre 1554 e 1560 e dirigidas a seus superiores sediados na Europa, entre eles Inácio de Loyola e Diogo Laines. E pude nelas surpreender informações preciosas sobre o Brasil e aos primitivos habitantes desta terra, que somadas a seus comentários e reflexões, nos indicam a presença, nessa figura ímpar de missionário e sacerdote, do naturalista e do antropólogo, que conhecia climatologia, flora e fauna dos trópicos, costumes dos índios e técnicas de sobrevivência nas selvas. E tudo isso sem a vã glória dos que se dizem eruditos, antes, assinando-se sempre como “o mais pequeno, o mínimo, o último, ou, ainda, o filho indigno da ordem inaciana”.

Uma dessas missivas, por sinal endereçada diretamente a Inácio de Loyola, começava por informá-lo sobre o papel dos curumins órfãos no esforço da catequese e o das mulheres indígenas no seu trato com os colonizadores. Os primeiros eram “línguas e intérpretes para nos ajudar na conversão dos gentios”, e as mulheres (que representarem um perigo incontido para todos os brancos, padres ou não), eis que “não se sabem negar a ninguém, antes elas mesmas acontecem e importunam aos homens, lançando-se com eles nas redes, porque têm por honra dormir com os cristãos”. Pelo visto, deve ter sido um tormento para os missionários terem de resistir a tanto assédio que, dia e noite, punha em risco sua abstinência canônica de sexo!

Outrossim, explica ao fundador da Ordem, que o governador Tomé de Souza costumava mandar piquetes de colonos ao interior da capitania de Porto Seguro, em busca de ouro (entradas) e que havia necessidade de agregar padres a essas expedições. Nessa entrada do mês de março de 1554, quem acompanhou os entrantes foi o padre Navarro: “Eles vão buscar ouro e ele vai buscar o tesouro de almas”. Como se sabe, a maioria dessas peregrinações pelo desconhecido não achava metais preciosos, mas retornava ao litoral com magotes de tapuias para aldear e catolicizar! Por isso, era urgente providenciar a vinda de mais padres da Europa para o Brasil.

De São Vicente, escreveu em 1555, aos irmãos enfermos da Companhia, que se recolhiam aos cuidados do hospital de Coimbra, para exortá-los a viajar para o Brasil, a fim de aqui se curarem de seus males, pelos métodos e fármacos dos índios. “A terra é muito boa e não tinha xarope, nem purgas, nem os mimos da enfermaria. Muitas vezes e quase o mais continuado era o nosso comer folhas de mostarda cozidas e outros legumes da terra, e outros manjares que não podeis imaginar”.

Vestidos e sapatos

A falta de padres era tão grande e o seu recrutamento para o Brasil, tão difícil, que mais valia buscá-los no hospital, com tentadores acenos para a farmacopeia naturalista da colônia! Para melhor convencer os enfermos, acrescentava que: “Sem dúvida, segundo o que cá tenho visto e experimentado em mim, conheço quão enganado vivia, enquanto usei dessas tão esquisitas mezinhas, de Europa, as quais tenho para mim que servem mais de acrescentar a doença, que de sarar”. É bom lembrar que enquanto viveu, na Espanha e em Portugal, Anchieta arrastou sempre um precário estado de saúde, tendo conseguido fortalecer-se depois que veio para São Paulo e, aqui, se utilizou das curativas ervas indígenas. Ainda que o tratamento hospitalar europeu fosse bem conceituado, a verdade é que, para a saúde dos jesuítas instalados em São Vicente e Piratininga, o curandeirismo dos pajés se mostrava tão ou mais eficiente que o dos doutores de lá.

A mais longa e minuciosa das cartas, e que continha indiscutíveis erudições sobre a ciência natural, foi endereçada por Anchieta, em maio de 1560, a seu superior em Roma, padre Diogo Laines. Nela procura explicar com clareza aspectos da cosmologia brasílica, curiosidades da climatologia da colônia, sua fauna, sua flora e os costumes selvagens da população indígena, naquele início do processo civilizatório e catequético. Primeiro, um testemunho sobre as tarefas diárias dos padres nestes trópicos: “Fazemos vestidos, sapatos, principalmente alpargatas, de um fio como de cânhamo, que extraímos de uns cardos lançados nagua e curtidos, as quais alpargatas são necessárias pela aspereza das selvas. Barbear, curar feridas, sangrar, fazer casas e cousas de barro, de maneira que a ociosidade não tem lugar algum em casa”. Isso tudo, sem contar a fadiga “das cousas da doutrina que se trabalham com muito esforço e cuidado”.

Um escândalo para os jesuítas era o costume bárbaro de sacrificar crianças nascidas aleijadas. Como foi o caso de uma menina de Piratininga, que veio ao mundo com o nariz fundido ao queixo e mais abaixo a boca, deformidade que lhe concedia aspecto repelente, e que pereceu enterrada em vida, por ordenação do próprio pai. A antropofagia também se praticava, com os prisioneiros sacrificados na praça central das aldeias, onde a borduna do carrasco lhes arrebentava o crânio, após danças e uma sessão de insultos e humilhações.

No que dizia respeito à flora e à fauna, acentuava Anchieta o papel dos peixes e das raízes na alimentação dos bugres. Também assinalou a preferência pela carne de macaco, “alimento muito são, até para os doentes – com frequência o experimentamos”. E alinhou como carnes preferenciais, além dessa, a de anta, de tamanduá, de veado e de capivara.

Centopeia vermelha

Como curiosidade, comenta o uso que o índio fazia de uma centopeia vermelha, extremamente venenosa que, colocada sobre o pênis, o excitava a ponto de permitir várias cópulas (ardente luxúria). Só que com alto risco de irreversíveis aleijões, eis que o uso mal dosado daquele bichinho, “mancha e infecciona as mulheres com quem têm relações”. Quanto ao pênis, “três dias depois apodrece”.

Dedica o missivista um grande trecho de sua carta à descrição das cobras venenosas, abundantíssimas nas matas úmidas e aquecidas das terras litorâneas: cascavéis, jararacas, corais, pintadas, chatas, bem como aquelas que, embora não matassem com suas picadas, poderiam engolir um bicho maior que elas (jiboias e anacondas): “Engolem um veado inteiro e ainda maiores animais, e não os podendo digerir, ficam por terra como mortas, sem se poderem mover”. Outro trecho de grande interesse é o que se refere ao peixe-boi, pelo jeito, abundante àquela época, nos rios do sul do Brasil, tanto quanto nos do norte (até, pelo menos, nos do Rio de Janeiro e Espírito Santo). “Muito grande no tamanho, alimenta-se de ervas. No corpo é maior que o boi, cobre-se de pele dura, parecida na cor à do elefante. A boca é em tudo igual à do boi, é muito bom para se comer e mal se pode distinguir se é carne ou se antes, se deve considerar peixe.”

O estilo científico dessas informações coloca Anchieta entre os mais famosos cronistas do período colonial brasileiro. E a ninguém, que queira bem conhecer essa fase de nossa história, seria lícito deixar de ler e avaliar essa dúzia de cartas que, no século 16, retrataram o Brasil para os próceres maiores da Companhia de Jesus.


* Da Academia Paulista de Letras.