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Sob o risco de extinção

O fruto: vagem com sementes que vão do marrom ao verde / Foto: João Prudente/Pulsar Imagens
O fruto: vagem com sementes que vão do marrom ao verde / Foto: João Prudente/Pulsar Imagens

Por: SILVIA KOCHEN

Tudo começou com Gonçalo Coelho. Ele foi o comandante da primeira expedição feita pelos portugueses ao Brasil com o propósito de explorar as conquistas de além-mar. Em 1501 e 1502, percorreu a costa do território brasileiro, que na época tinha o nome de Terra de Santa Cruz (de 1500 a 1501, o Novo Mundo descoberto por Cabral denominava-se Terra de Vera Cruz), e encontrou vários tesouros que, por questões óbvias, levou para Portugal. Um deles era uma madeira da qual os índios extraíam um corante vermelho usado para tingir penas e pintar seus corpos. Eles chamavam aquela curiosa árvore de ibirapitanga, nome indígena que significa madeira vermelha.

Naqueles longínquos anos, o tingimento de tecidos dependia exclusivamente de produtos naturais. A cor vermelho vivo era a mais difícil de ser obtida porque não existiam corantes com essa tonalidade na Europa. Para dar esse tom às roupas, os interessados tinham de arcar com os preços elevados, cobrados por uma madeira que vinha do oriente e da qual era possível extrair o pigmento vermelho. Levada ao Velho Mundo pelos comerciantes árabes, a madeira era conhecida como pau de tinta, mas tinha outros nomes que variavam conforme a região, tais como verzino, berzino e berzil (esta denominação se devia ao fato de que o vermelho resultante lembrava uma brasa).

A longa caminhada do pau de tinta até chegar aos grandes mercados – cruzavam desertos e montanhas em lombos de camelos e cavalos, esquivando-se de salteadores e de inúmeros outros obstáculos – era a grande responsável pelos valores abusivos cobrados. Por conta disso, só a realeza e o alto clero tinham meios para adquirir roupas na cor vermelho vivo. A ibirapitanga, que passou a ser chamada pelos portugueses de pau-brasil, parecia uma alternativa capaz de colocar um ponto final no monopólio de comerciantes gulosos por lucros elevados e, de quebra, criar uma promissora fonte de renda para a Coroa portuguesa.

Em 1505, quando três carregamentos da madeira chegaram a Portugal, a colônia passou a ser conhecida como “terras do brasil”, nome que se popularizou rapidamente. Por volta de 1512, surgiu o primeiro mapa da nova terra, feito por Diogo Ribeiro, onde “El Brasil” já aparece no lugar da Terra de Santa Cruz. Esse é o único caso na história mundial em que o nome de um país veio de uma árvore. Aliás, também foi o pau-brasil que motivou os portugueses a colonizar o território, conquistadores que estavam perdendo áreas importantes na Ásia e na África por causa da dificuldade de defendê-las da pilhagem empreendida por outras nações europeias.

A “Carta do Brasil”, mapa datado de 1519 e que ainda pode ser visto nas notas de R$ 10 mais antigas (e que estão sendo substituídas por notas em tamanho menor), mostra índios cortando árvores de pau-brasil. É o primeiro retrato da devastação que se seguiu. Ao longo dos séculos, a planta foi desaparecendo das matas nativas e hoje está seriamente ameaçada de extinção.

Ironia do destino, o pau-brasil é a árvore símbolo do Brasil, segundo a Lei n. 6.607, de 1978, embora muita gente acredite que esse título pertença ao ipê-amarelo. Uma confusão criada pelo fato de que a flor do ipê é considerada a flor símbolo do Brasil por ser amarela (que, junto com o verde, é a principal cor da bandeira nacional) e porque sua floração ocorre por volta de setembro, mês comemorativo da Independência do Brasil e que se traduz, simbolicamente, no nascimento da nação. À época do descobrimento, o pau-brasil era abundante ao longo de toda a costa brasileira, que vai do Rio de Janeiro ao Rio Grande do Norte. Todavia, a devastação foi tal que hoje é difícil encontrar populações nativas da madeira nesse trecho.

Espoliação geral

O alto valor do pau-brasil, além de incentivar a exploração da madeira pelos portugueses, também despertou o interesse de franceses e holandeses, que não reconheciam o Tratado de Tordesilhas (linha imaginária que dividiu as terras do chamado Novo Mundo, descoberto por Cristóvão Colombo, entre os reinos de Espanha e Portugal). Nos séculos 16 e 17, piratas franceses e holandeses pilhavam pau-brasil ao longo da costa, tanto que chegaram a investir na ideia de fundar colônias no território que pertenceria aos portugueses.

Segundo o pesquisador Yuri Tavares Rocha, professor do Departamento de Geografia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP), entre os séculos 16 e 19 pelo menos 466 mil árvores de pau-brasil foram derrubadas e enviadas à Europa. É o que revela levantamento feito por ele com documentos desse período consultados em arquivos históricos do Brasil e de Portugal. Na realidade, segundo Rocha, a população de árvores dizimadas nesse processo foi bem maior, pois boa parte da madeira foi pirateada ou contrabandeada, não sendo, portanto, contabilizada nos registros escriturais que serviram de base para sua pesquisa histórica.

Ana Cristina Roldão, da Fundação Nacional do Pau-Brasil (Funbrasil), avalia que a espoliação da madeira foi bem mais intensa. “Considerando que havia matas com pau-brasil que se estendiam do sudeste ao nordeste, florestas que se distanciavam da costa para o interior em faixas que iam de 80 quilômetros a 150 quilômetros, acreditamos que foram cortadas cerca de 70 milhões de árvores ao longo de 500 anos.” Em seus cálculos, ela considera que haveria duas árvores por hectare de Mata Atlântica quando os portugueses chegaram aqui, uma perspectiva que ela chama de “conservadora” (ou seja, subavaliada).

O curioso é que a exploração do pau-brasil também deu origem às primeiras vilas no país, observa o pesquisador Rocha. Depois de cortada, a madeira era armazenada à espera de navios para ser levada à Europa. As feitorias, núcleos de fixação temporária onde se concentravam o trabalho de obtenção (por corte ou por escambo com os índios) e armazenamento do pau-brasil, aos poucos se transformaram em vilarejos e povoados, dando início ao processo de urbanização do país. Somente na segunda metade do século 20 é que vários fatores contribuíram para que a criação de novos povoados tomasse o rumo do interior.

Ainda segundo Rocha, ao contrário do que muitos livros mais antigos de história afirmam, não foi a exploração do pau-brasil que devastou as florestas brasileiras. Havia um conflito entre os interesses da Coroa portuguesa de preservar o estoque de madeiras nobres no Brasil, e dos colonos, que exploravam a terra e, para isso, necessitavam antes desmatá-la. “Foi a cultura da cana-de-açúcar que, de fato, eliminou as áreas florestais do nordeste”, ele assegura. Já no sudeste, a partir do século 19, fazendeiros queimavam árvores nativas para dar espaço à plantação de café.

O pau-brasil foi considerado praticamente extinto por quase um século, entre 1876 e 1972, quando foram descobertas algumas populações nativas da árvore. Pesquisadores estão indo a campo para avaliar onde a madeira ainda dá o ar da graça, mas a grande extensão do território nacional dificulta, e muito, a hercúlea tarefa. No Espírito Santo, por exemplo, onde a extinção era dada como certa, foram localizadas muitas árvores nas proximidades do município de Aracruz. Na Bahia, ainda há muito pau-brasil, mas as plantações de cacau devastaram a maior parte das matas naturais. Em Pernambuco, havia duas áreas com pau-brasil nativo, mas elas foram invadidas por sem-teto que deram cabo da árvore símbolo do Brasil naquela região. Como a maior parte dos exemplares na natureza foi devastada durante o período colonial, não se sabe qual é a real expectativa de vida da espécie. Há um exemplar conhecido na Bahia com aproximadamente 500 anos.

Como sangue coagulado

O pau-brasil é facilmente confundido com outras plantas de igual aparência, tanto nas folhas quanto na cor da madeira. Tavares Rocha afirma que, fora de sua época de floração, só um botânico conseguirá diferenciar o pau-brasil verdadeiro do falso. Classificado como leguminosa, produz um fruto semelhante a uma vagem que traz em seu interior sementes achatadas, cuja coloração vai do marrom ao verde. Quando a Caesalpinia echinata (o nome científico da árvore do pau-brasil) é nova, o caule tem a casca clara e o cerne é acaju. À medida que vai envelhecendo, a madeira ganha uma tonalidade mais para o vinho, que escurece ao longo do tempo e se transforma em um vermelho bem escuro, como sangue coagulado.

A flor do pau-brasil, que dá em cachos, é bem característica. Tem cinco pétalas, sendo quatro iguais, de um amarelo bem vivo, e uma ligeiramente menor, também amarela, mas com uma mancha avermelhada. No clima quente do nordeste, a árvore começa a florir com dois a três anos de idade e com seis anos ou sete anos no sudeste. A estação das flores também é diferente: entre setembro e novembro, no Rio de Janeiro (sudeste), e entre janeiro e fevereiro, em Pernambuco (nordeste).

Em 1992, o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) reconheceu que o pau-brasil está sob ameaça de extinção por isso o comércio de sua madeira, que é considerado crime ecológico, é proibido em território nacional. O mesmo vale para bijuterias feitas com sementes da árvore. Em 2007, a espécie foi colocada na lista da Convention on International Trade in Endangered Species of Wild Fauna and Flora (Cites, na sigla em inglês), condição que passou a exigir licença prévia para sua exportação. Independente disso, contudo, o comércio ilegal da madeira continua, uma vez que a fiscalização é feita por amostragem. Eventualmente, há apreensões de pau-brasil ilegal, casos em que é misturado a lotes de madeira legalizada para exportação com o claro objetivo de burlar a vigilância. Por essas e outras, é difícil avaliar o tamanho do contrabando. Aprendemos na escola que o pau-brasil era usado para tingir roupas na Europa antes dos avanços científicos que criaram os corantes artificiais, no século 19. Mas o fato é que o comércio ilegal da madeira continua por causa dos altos valores de mercado.

O que torna o pau-brasil tão valioso no mundo de hoje? Desde 1860, ele é empregado na fabricação de arcos de violino e de outros instrumentos, como viola, violoncelo e contrabaixo, por causa das características únicas da madeira que garante uma acústica incomparável. O pau-brasil é flexível e tem fibras longas e retas, que podem adquirir uma curvatura e se manter assim por anos a fio. Um arco de violino da melhor qualidade chega a custar R$ 3 mil no Brasil e milhares de dólares ao redor do mundo.

As pesquisas apontam, entretanto, outras utilidades. A árvore é resistente a cupins e poderia ser adotada na arborização de grandes cidades. Há estudos para preservar as características de sua semente, que em condições naturais só germinam pouco tempo depois de se desprenderem da árvore. A ideia é permitir o plantio para uso comercial da madeira, que poderia ter inúmeras outras aplicações no ramo da marcenaria.

Do próprio bolso

Pesquisas também mostram que o pau-brasil pode ser de grande utilidade na indústria farmacológica, ajudando na cura de edema pulmonar, câncer e leishmaniose. Do miolo avermelhado da madeira é extraída uma tinta natural chamada brasilina, substância que quando cristalizada vira a brasileína, que está contribuindo para o combate do câncer em cobaias de laboratório.

Nos anos 1970, a importância do pau-brasil como árvore nacional foi reconhecida e iniciaram-se vários projetos para a recuperação da espécie no país. Um dos mais significativos foi o trabalho de Roldão de Siqueira Fontes, professor de história e geografia do antigo Colégio Agrícola de São Bento, pertencente à Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRP). Depois de descobrir, por acaso, um livro sobre o pau-brasil em um sebo, em 1969, ele resolveu criar mudas da árvore com o dinheiro do seu próprio bolso para reverter a situação de quase extinção. Ele distribuía as mudas aos pais de seus alunos que visitavam a escola.

Em 1972, Fontes conseguiu sensibilizar várias pessoas importantes a ponto de lançar uma campanha nacional em defesa da árvore. Nessa época, estava sendo construída a barragem do rio Tapacurá, que hoje abastece de água 75% da população da região metropolitana do Recife. Mas aquela construção iria destruir a última reserva natural de pau-brasil de Pernambuco. Isso mexeu com os brios do professor, que conseguiu firmar um convênio, por meio do qual o Departamento Nacional de Obras de Saneamento (DNOS) se comprometeu a replantar 50 mil exemplares de pau-brasil no entorno da barragem, no município de São Lourenço da Mata. Quando o convênio estava prestes a se encerrar, em 1977, Fontes mandou cartas a deputados pedindo uma lei que protegesse a árvore, e foi assim que a espécie se transformou em árvore símbolo do Brasil mediante a promulgação de lei federal.

Mesmo diante dessa conquista, ele não descansou. Seu trabalho em defesa do pau-brasil, por meio de palestras e repasse de mudas, continuou até que, em 1988, deu vida à Funbrasil. Um dos principais objetivos da fundação é o plantio de uma muda de pau-brasil em todos os municípios e em cada escola do país, permitindo assim que o brasileiro possa conhecer a árvore. A fundação chegou a enviar uma caixa com 15 mudas para cada governador eleito.

Em seus primeiros anos, a Funbrasil distribuía de 150 mil a 200 mil mudas de pau-brasil a cada ano, graças ao salário do professor e a convênios com algumas prefeituras. Mas essas parcerias não sobreviveram à morte de Siqueira Fontes, em 1996, aos 86 anos. “Hoje, temos apenas duas prefeituras conveniadas e nosso trabalho ficou menor, com a distribuição de algo entre 30 mil e 50 mil mudas ao ano”, diz Ana Cristina, filha do fundador da Funbrasil, que dá continuidade ao trabalho iniciado pelo pai.

Apesar de tudo, os resultados da Funbrasil, que é gerida por um conselho de cinco membros e mantém três funcionários fixos, são positivos. Ana Cristina lembra que a fundação mantém o Museu do Pau-Brasil (em Glória do Goitá, a 65 quilômetros do Recife), onde o visitante pode encontrar livros, vídeos, reportagens, mudas e material sobre a árvore. Em seus 26 anos de história, a Funbrasil distribuiu cerca de 3,5 milhões de mudas.

Em 2000, motivado pelas comemorações dos 500 anos do descobrimento do Brasil, foi criado um projeto multidisciplinar do Instituto de Botânica da Secretaria do Meio Ambiente do Estado de São Paulo, que investigou todos os aspectos da planta – desde sua importância histórica até alternativas para preservá-la no meio ambiente. O Projeto Pau-Brasil, que durou quatro anos, foi financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp).