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Fulguração da palavra
O ensaísta e escritor é elogiado pela sua escrita instigante e sem limites de gêneros, mas diz não acreditar cegamente na divisão estabelecida por tais categorias literárias
Juliano Garcia Pessanha estudou Direito e Filosofia, e é mestre em Psicologia. O autor já dirigiu oficinas de escrita em hospitais psiquiátricos, trabalhando voluntariamente durante cinco anos em um Centro de Atenção Psicossocial (Caps). O seu interesse principal era encontrar filiações, famílias literárias e autores que conversassem com as questões pessoais dos participantes.
Contudo, mesmo com todo o respaldo acadêmico, o escritor menciona que em seu livro, Certeza do Agora (Ateliê Editorial, 2002), sua intenção não era abordar as relações entre literatura e filosofia, mas corporificar um autorreconhecimento. “Quando me utilizo de filósofos me interessa mais a experiência subjacente àquele pensamento do que a sua armação conceitual”, enfatiza.
Acompanhe o depoimento de Juliano à Revista E.
Transitando entre os gêneros
Meus três primeiros livros nasceram de diários, nos quais estava tudo misturado. Eu escrevia os diários desde 1983 e, em 1996, uma amiga, olhando-os, me disse: “Veja, essa passagem é um poema em prosa, vamos mandar para um concurso nesse gênero. Essa história interrompida, se você colocar um fim, vira um conto; vamos mandar para um concurso de contos”. E foi assim que ganhei o concurso Nascente [em 1999, promovido pela Universidade de São Paulo e pela Editora Abril], nas categorias poesia e conto sem nunca ter me proposto a ser poeta ou contista. Essa história mostra por que não creio tanto nessas categorias.
Nesses diários, eu relatava experiências na mesma medida em que refletia sobre elas a partir de um repertório filosófico. Em geral, ruminava a experiência de existir numa identidade negativa ou num self negativo, como digo hoje. A perplexidade e a dor de existir dessa maneira levaram-me a um diálogo com outros testemunhos dessa mesma posição. Muitos desses autores eram filósofos e pensadores como Martin Heidegger (1889-1976), Maurice Blanchot (1907-2003), Emil Cioran (1911-1995), ou Georges Bataille (1897-1962), por exemplo. Nesse sentido meus livros já são uma crítica deles mesmos, pois eu próprio explicitava o sentido dos relatos. Nas palavras do escritor Evandro Affonso Ferreira, eu era simultaneamente passarinho e ornitólogo.
Em Certeza do Agora (Ateliê Editorial, 2002), não diria que abordo as relações entre criação literária e filosofia, pois sempre utilizei o que estava à mão indistintamente. O que eu queria era corporificar um autorreconhecimento. Não estou preocupado com as discussões de Paul Ricoeur (1913- 2005) e Heidegger sobre as fronteiras entre essas áreas. Eu agi mais como um saqueador antropofágico e não como erudito acadêmico.
Jamais me preocupei com o leitor. Escrevi o que era necessário escrever. Acho indiferente que o leitor tenha ou não feito leituras acadêmicas antes de conhecer minha obra, pois quando me utilizo de filósofos me interessa mais a experiência subjacente àquele pensamento do que a sua armação conceitual. Dialogo com os filósofos mais pelo amigamento da posição do que pelo domínio acadêmico da arquitetura exterior do pensamento.
A crise do experimentar
A palavra como ornamento ou pura técnica já nasce esvanecida, mas acredito na palavra que nasce banhada no experimentado. Escrevi a partir da crise total da experiência e exatamente na busca de um dizer do que restava diante de tudo o que já estava dito. Minha escrita é testemunha do parto de um corpo antes silenciado. Relato de uma vinda. Quando a palavra atinge seu ponto de fulguração ela não concorre com nada.
Não acredito que as oficinas literárias oferecidas hoje em dia formem um escritor. O surgimento de um escritor é misterioso, mas, de alguma maneira, elas podem estimular uma vocação e ser um espaço de troca de experiências de escrita.
Não acho que existam diferenças práticas ou emocionais em se dedicar a uma trilogia, como eu fiz em Sabedoria do Nunca (1999), Ignorância do Sempre (2000) e Certeza do Agora (2002 – todos pela Ateliê Editorial), em vez de a uma obra que se encerra em um único volume. E não tenho uma disciplina diária de escrita. Espero lentos períodos para saber se estou mesmo sendo escrito por alguma coisa. Só então posso escrever.
Há temáticas que sempre penso, mas ainda não desenvolvi em um livro. Um dia pretendo escrever sobre a questão do feminino e a morte de minha mãe.
“Não tenho uma disciplina diária de escrita. Espero lentos períodos para saber se estou mesmo sendo escrito por alguma coisa. Só então posso escrever”